Dear Gringo escrita por Gaby Molina
Isaac
— Isaac? — ela me chamou depois de uns dez minutos.
— O que foi dessa vez?
— Não estou me sentindo muito bem.
— Defina "muito bem".
— Encoste o carro, por favor.
— Já estamos chegando, aguenta mais um pouco.
— Geymer, eu vou vomitar nesse seu cabelo louro idiota.
Isso resolveu tudo. Parei o carro rapidamente em frente a uma praça.
— Vem — destranquei o carro e saí dele. Allison fez o mesmo. — Sabe onde estamos?
Ela assentiu.
— Alto de Pinheiros. Tem umas casas chiques daquele lado ali, eu moro atrás delas. Não venho aqui desde que era criança.
Allison desceu o pequeno declive com impulso, passando em meio às árvores altas sem se importar em manter-se na trilha. Havia poucos postes de luz, principalmente à direita, onde havia uma pequena quadra de cimento com duas traves.
— Por que parou de vir? — indaguei.
Achei que ela fosse me mandar cuidar de minha própria vida, mas resolveu responder:
— Costumava vir com o meu pai, mas ele parou de me trazer.
— Por quê?
— Arrumou coisas melhores para fazer.
— O que pode ser melhor do que a própria filha?
A expressão em seus olhos escuros me deu a certeza de que eu ultrapassara o limite da curiosidade.
— Então... Esse é, like, o Cafofo da Allison? — resumi.
Ela soltou um riso baixo.
— Não, não é. E pare de falar "like", é irritante. Existe uma coisa em Português chamada "tipo", que serve exatamente para isso.
Fingi ignorá-la, mas anotei a informação mentalmente.
— Alguma chance de eu algum dia conhecer o Cafofo da Allison?
Ela estreitou os olhos, torcendo o nariz.
— Provavelmente não.
Allison sentou-se em um dos bancos de pedra, batendo o bico de um sapato no outro levemente.
— Aqui também é um ótimo lugar para ser estuprada, se formos pensar.
Pensei no assunto, sentando-me ao lado dela.
— Vendo por esse lado... Aposto que podemos fazer um Top 10 Lugares Estupráveis de São Paulo até meia-noite.
— Não seja idiota, já viu o tamanho dessa cidade?
— Na verdade, não. Qual é, já está com sono?
Ela sorriu.
— Só pessoas que nunca dormem pertencem à cidade que nunca dorme, Isaac. "Tarde" não é uma palavra válida aqui.
— Então minta para mim. Diga que não há nenhum lugar onde gostaria de ir.
Ela pensou por um minuto.
— Na verdade, há um lugar.
Allison se levantou e começou a me arrastar pelo pulso pela calçada.
— Allison, meu carro, nós...
— Qual é! Está com medo de ser estuprado também? Pense nisso como um daqueles passeios turísticos, só que de graça.
Caminhamos pela calçada, dando a volta na praça. Atravessamos a rua e viramos à direita. Diante de mim estava uma sorveteria. Não sei o que era mais improvável: o fato de estar aberta, ou o fato de Allison estar entrando nela.
A decoração era toda meio casa de boneca, azul-céu com um amarelo bem clarinho. Havia uns dois casais sentados em mesas de dois. Na verdade, todas as mesas eram para duas pessoas.
— Boa noite! — uma garçonete de vinte anos com um pelo par de... Hm, olhos, sorriu para nós (mim).
— Querem uma mesa?
Não, a gente só queria dar uma passada para dizer oi e ir embora, obrigado, pensei.
— Sim — falei.
— Para dois?
— Claro que não, não está vendo meu amigo imaginário, o Alfred, aqui? — zombei. Allison me deu uma cotovelada. — É, para dois.
— Me acompanhem.
Allison
— Eu poderia ter encontrado uma mesa sozinho — Isaac resmungou quando nos sentamos.
— É que aqui é uma gelateria.
— Qual a diferença?
— Colocaram um nome mais bonito e dobraram o preço do sorvete.
— Maravilha. Não acha que é meio tarde para sorvete?
Sorri.
— Nunca é tarde para sorvete.
— Olá, o que vão querer? — apesar do plural, a garçonete (que não era a mesma que nos mostrara a mesa) sorria para Isaac e usava aquele tom de voz que só se usa quando está dando em cima de alguém. Minha presença estava sendo completamente ignorada.
— Um sorvete de flocos médio — Isaac sorriu de volta. — e o seu telefone, se não for pedir muito.
A garçonete riu. Meu queixo caiu. Ele sentiu meu olhar incrédulo, mas resolveu ignorar. Canalha.
— Quero um de chocolate médio — pedi, fingindo estar alheia a tudo aquilo.
— Claro, já está saindo — a garçonete piscou para Isaac e saiu rebolando até o balcão.
Encarei Isaac.
— Você deu em cima dela!
— O seu tom surpreso me lisongeia.
— Não consegue se comportar por meia hora?
— Olha, eu realmente ia me comportar, mas há simplesmente muitas outras opções!
Revirei os olhos. Ele ia pagar por isso. A garçonete morena voltou rebolando, com — surpreendentemente, já que eu tinha certeza de que ela não tinha ouvido meu pedido — duas taças de sorvete.
— Aproveitem — ela sorriu. Tomamos o sorvete em um silêncio tenso que se dava ao fato de Isaac estar completamente à vontade.
— Sabe aquela parte do cérebro que nos impede de dizer ou fazer as coisas? Como é o nome mesmo? — encarei-o. — Ah, sim. Bom senso. Você não tem isso, tem?
Isaac passou a língua pelos lábios para limpar os resquícios de sorvete, o que me fez notar seu pequeno piercing novamente. Ele abriu um leve sorriso e disse:
— Não é quem você é que te impede de fazer as coisas, Allison. É quem você tem certeza de que não é.
Eu não tinha uma resposta para aquilo, então apenas enfiei mais sorvete na boca. Quando terminamos de comer, a garçonete voltou, jogando o cabelo para o lado e piscando sensualmente para Isaac.
Maldita preguiça que não me deixou caminhar trinta e cinco minutos até a droga do ponto de ônibus!
— Só para ter certeza — a moça olhou para mim pela primeira vez desde que chegáramos. — Você não é namorada dele nem nada, né?
— Ela é minha irmã — Isaac respondeu por mim.
A garçonete não parecia ter acreditado naquilo — até porque Isaac e eu éramos completamente diferentes (tanto fisicamente quanto na personalidade) —, mas não ligava muito.
—... Então, quanto deu os dois sorvetes?
— Hoje é por conta da casa.
Calúnia! Trapaça! Eu ia àquele lugar há anos e nunca ganhara nada por conta da casa! Gringo idiota!
— Mas não fique muito animada com ele — falei para ela baixo, como se fosse um segredo. — Ele beija rapazes.
Se não houvesse uma mesa entre nós naquele momento, tenho certeza de que Isaac teria pegado aquela taça e quebrado na minha cabeça.
— Vamos, irmãozinho — falei antes que a garçonete resolvesse repensar os sorvetes grátis.
Arrastei Isaac para fora da sorveteria. Paramos na calçada enquanto ele gritava comigo.
— Por que diabos disse aquilo a ela?!
— Você ficou flertando com ela como se eu nem estivesse ali! E depois disse que eu era a sua irmã! Sua irmã! Já se olhou no espelho? Essa foi a pior mentira do universo!
— As pessoas acreditam no que elas querem acreditar! Qual o seu problema, Peruzzo? Já está se apaixonando por mim?
— Nos seus sonhos pervertidos, Geymer!
— Agora vai ter que ser mesmo, já que você arruinou as minhas chances com a Sasha!
— Sasha?
— Ela escreveu o nome dela na conta.
— Sasha é nome de cachorro, porra! Deve ser o nome dela na esquina! E não é como se eu pudesse dizer que aquele foi o ponto alto da minha noite — encarei-o, tentando não rir. Falhei. — Tudo bem, foi o ponto alto da minha noite. Obrigada.
— Que bom que um de nós se divertiu.
Isaac
Allison sorriu.
— Não seja tão sentimental, Geymer.
Voltamos para o carro. Ela ligou o rádio como se estivesse na própria casa e começou a cantarolar Bruno Mars.
Troquei da rádio para o CD. Sorri ao perceber que estava na minha faixa preferida.
— Hope when you take that jump, you don't fear the fall... Hope when the water rises, you build a wall...
Allison
Eu não conhecia a música, mas a letra era muito interessante.
I, I did it all (Eu, eu fiz de tudo)
I, I did it all (Eu, eu fiz de tudo)
I owned every second (Aproveitei cada segundo)
That this world could give (Que esse mundo poderia me dar)
I saw so many places (Vi tantos lugares)
The things that I did (As coisas que fiz)
Yeah, with every broken bone (É, com todos os ossos quebrados)
I swear I lived. (Eu juro que eu vivi)
— É o sonho de todo mundo, não é? — comentei. — Chegar ao fim da vida e poder dizer isso. Ter histórias incríveis para contar aos netos.
Isaac assentiu.
— Poder dizer que não só passou pela vida, mas deixou sua marca nela.
— De quem é essa música?
— OneRepublic. É do último CD deles, Native.
— Os caras de Secret e Apologize, não é?
— É — falou, apesar de não parecer ter gostado muito da descrição. — Seus pais não vão falar nada sobre você estar chegando tarde em casa com um cara?
Fiz que não com a cabeça.
— Minha mãe dorme cedo, e meu pai deve estar com alguma amante agora. Sem problemas.
Pela primeira vez, vi o rosto de Isaac assumir uma expressão perto de compassiva.
— Allison...
— Vire à direita — falei, ignorando-o.
Ele assentiu e girou o volante.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
A praça realmente existe, e a sorveteria não (que eu saiba. Algum paulista sabe de alguma sorveteria assim que fique aberta à noite aqui pela Zona Oeste? Vamos espalhar conhecimento! Haushaush).