Dear Gringo escrita por Gaby Molina


Capítulo 17
Capítulo 17 - Wunderbar


Notas iniciais do capítulo

Você já olhou para a vida e pensou em como pode algo tão errado e tão injusto ser tão incrivelmente bonito?



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Isaac

Você tem que entender que aqueles Converses eram de couro. Eram meus fucking Converses de couro, então quando a monitora do acampamento disse "Ah, gente, choveu bastante ontem à noite, então vamos ter que passar por bastante barro para chegar aos dormitórios", eu soltei um riso baixo e disse:

— Não. Nem um pouco a fim.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— O único outro caminho é dando a volta no sítio inteiro.

Nem hesitei.

— Então é melhor eu já ir andando.

Apreciei o tempo sozinho. Deus sabia que eu gostava de caminhar por lugares desconhecidos, como uma versão hipster patética de Indiana Jones. Então contornei o refeitório, acenando para as tias da cozinha. Passei pelo campo, pela escalada, pela trilha da floresta. Não era realmente necessário, mas eu quis conhecer. Allison não entendia como eu conseguia saber mais de São Paulo do que ela. Era pela minha inerradicável (que eu não sabia se era realmente uma palavra, mas soava tão bonita que não pensei muito nisso) curiosidade e minha paixão estranha por caminhadas sem rumo.

O caso é que, eventualmente, cheguei aos dormitórios. Peguei minha mala e a arrastei até meu chalé, apenas para descobrir que eu acabara ficando com a cama ruim perto do banheiro. Não estava acostumado com acampamentos, desconhecia o espírito Jogos Vorazes deles.

Tirei os sapatos, jogando-os embaixo da cama, e peguei meus Converses fodidos de tecido. As biqueiras estavam cheias de resquícios de lama que eu jamais conseguira tirar.

Hey, Giorno! — gritei para Pedro, que estava jogado a duas camas de distância de mim.

— Sim? — ele ergueu o corpo, me fitando.

— O que a gente faz agora?

— Ah. Arruma as coisas e toma um banho. O jantar é em uns quarenta e cinco minutos.

Havia tempo, então nem me preocupei. Eu só não esperava demorar quinze minutos para achar minha toalha na mala. Claro que depois ficou mais difícil de achar qualquer outra coisa, já que ela se tornou um furacão.

— Ei, Alemão — chamou um cara do outro lado do quarto. Demorei um tempo para me tocar que ele estava falando comigo.

— Eu sou do Tennessee — corrigi. — Digo, não é grande coisa, é só... Hum, um continente diferente.

Ele abriu um sorriso entretido.

— Tu não faz ideia do que isso significa, faz, Alemão? — Não respondi. — Bem, que seja, só ia avisar que tem uma cueca tua jogada desse lado aqui do quarto.

— Ah — fui buscá-la. — Valeu por avisar.

* * *

A comida era razoável, ou talvez eu estivesse apenas acostumado demais com a comida da Dona Cláudia, que era excepcional. Sorri sozinho, admirado por conseguir me acostumar com uma realidade tão diferente da que eu crescera. Mas ali estava eu, cercado por pessoas que eu jamais deveria ter tido a chance de conhecer, se pensarmos em probabilidades. Mas ali estava eu. E simplesmente saber disso, saber que minha simples posição geográfica era um desafio ao comum e ordinário, fez com que eu me sentisse tão vivo. Porém, logo depois essa sensação se foi, dando lugar a um vazio, porque tudo o que eu queria fazer com aquele sentimento era dividi-lo com Allison.

Allison

Passei o primeiro dia inteiro sem conversar com Isaac, e agora, olhando para trás, não há nada de que eu me arrependa mais.

Houve algum tipo de balada de boas-vindas na primeira noite, mas ignorei sua existência, preferindo escrever mais um pouco em meu caderno. Voltara a ser um hábito, o que me deixava feliz. Eu sentira falta de escrever.

Dormi mal no colchão sem espuma, e acordei com galos dando bom dia ao sol. Achava que aquilo era coisa de filme. Mas não. Obriguei-me a rastejar até o chuveiro antes que as outras garotas monopolizassem o banheiro. Quando saí do banho, era tarde demais. Eu jamais conseguiria usar o espelho. Chapinha, maquiagem, creme... Qualquer que fosse a desculpa de cada uma delas, era impossível ficar ali.

Vesti uma camiseta qualquer e jeans, penteando meu cabelo com cuidado para que ele não armasse. Peguei meu iPod e pus no aleatório.

I-I, I did it all

I-I-I, I did it all...

Onerepublic logo de manhã. Era só o que me faltava. Pulei a música, e foi para Taylor Swift.

I'm standing alone in a crowded room and we're not speaking (Estou em pé sozinha em uma sala lotada e nós não estamos nos falando)

And I'm dying to know, is it killing you like it's killing me? (E estou morrendo de vontade de saber, isso está te matando como está me matando?)

Desisti do aleatório e fui ouvir Cee Lo Green, a única música dele que eu realmente sabia a letra: Fuck You. Melhor jeito de começar o dia.

* * *

As atividades matinais incluíam pescaria, futebol, vôlei e canoagem, então eu e Marina resolvemos fugir para a floresta e subir em árvores.

— Aquela ali parece legal — apontei para uma árvore.

Marina torceu o nariz.

— Acho que não rola subir nela.

— Não é tão difícil... — falei, já pegando impulso. Pulei e agarrei os braços num dos troncos, jogando as pernas para o alto e prendendo-as no tronco. Deixei que minha cabeça pesasse para baixo. — Isso é legal.

— Como diabos você vai sair daí?

Pensei por um minuto. Girei meu corpo para cima, ficando com a barriga contra o tronco, e então fui devagar até o centro da árvore, por fim ficando em pé e me apoiando nos pontos onde os galhos se encontravam.

Subimos em algumas árvores, mas Marina por fim desistiu. Então, caminhamos de volta pela trilha discretamente, por fim passando pelo campo de futebol. Percebi que a torcida gritava uma coisa, e uma coisa apenas:

GIORNO! GIORNO! GIORNO!

Pedro fez mais um gol, direitinho no ângulo, do jeito que eu nunca fazia direito (pelo menos, não de propósito). O monitor juiz apitou e Pedro gritou alguma coisa, tirando a camisa e a rodando no ar. Possuía o maior dos sorriso no rosto, e imaginei que esse sorriso fosse sumir quando ele visse Marina, mas em vez disso ele se alargou.

— SOLEIL!

Logo Pedro estava correndo até nós e, sem desacelerar, puxou Marina para perto de si e a beijou, mais uma vez me impressionando com suas habilidades labiais. Ponderei se eles haviam se reconciliado, mas, pela cara de Marina, concluí que não.

— Você tem que parar de fazer isso sempre quando quer — murmurou ela, mas não parecia realmente irritada. Devia ser difícil ficar qualquer coisa depois de um beijo tira-fôlego daqueles.

Isaac não estava lá. Conhecendo-o, ele devia ter fugido para algum lugar proibido também. Talvez com alguma garota.

A razão pela qual comecei a ter esses pensamentos foi que Marina me largou pelo Giorno — mas não posso realmente culpá-la —, levando-me a vaguear pelo acampamento e, consequentemente, pela minha mente.

Mas não houve realmente muito dano, pois logo depois anunciaram o almoço.

Depois do almoço, fomos chamados ao campo para uma atividade em grupo. Pediram que formássemos duplas, e eu já estava procurando algum secundarista que eu não odiasse totalmente quando Marina agarrou meu braço.

— Tretou com o Giorno? — indaguei. Ela fez que não com a cabeça, deixando escapar um sorriso.

Alguns monitores foram dividindo todo mundo em quatro equipes. Uma monitora nos empurrou para o lado da equipe vermelha e continuou escolhendo mais gente.

— Vocês dois — ela apontou para Pedro e Isaac.

Pedro sorriu e Isaac sequer desviou os olhos do próprio iPhone, o que me lembrou o dia em que nos conhecêramos. Eles se aproximaram de nós.

— Primeiro, vamos fazer alguns aquecimentos, já valendo pontos, para vocês se conhecerem melhor. Quero que se juntem por... — ela sorteou um papel. — Signo astrológico.

Corri para perto das pessoas do Vermelho que gritavam "GÊMEOS!". Demorou menos de um minuto para todo mundo se acertar.

— Ponto para o time Amarelo! — anunciou a monitora. O pessoal perto de mim murchou, desapontados. — Se juntem por time!

Eu não torcia pra nenhum time, mas Marina me arrastou para os torcedores do Santos e eu não reclamei. Ia dar trabalho, mesmo, achar alguém que não torcesse para nenhum time.

— LAKERS? — gritou Isaac. — ALGUÉM? LAKERS?

— Ela quis dizer time de futebol, Geymer — especificou Marina.

— Ah — ele franziu o cenho. — Futebol americano?

— Ponto para a equipe Azul! — anunciou a monitora. — Última vez: — ela sorteou outro papel. — Bem, este aqui é bem estranho... Encontre alguém que fale fluentemente a mesma língua que você... Exceto português! Ou encontre alguém que não fale mais nenhuma, se for o seu caso.

Uma massa esmagadora se juntou no grupo de "Só falo português", e eu quase corri para lá, mas Isaac já havia parado ao meu lado e murmurou, sem desviar os olhos do iPhone:

— Fica aí, não quero perder de novo.

Com exceção de duas meninas que falavam francês e um pessoalzinho que dizia falar espanhol (eu apostaria meu rim que era apenas um portunhol maroto), todo o resto se juntou à esmagadora maioria dos monoglotas.

— Ponto para o time Vermelho! — anunciou a monitora. — Agora vamos para o jogo de verdade. Forme duplas com alguém do grupo da última divisão.

Ah, mas que maravilha. No meu grupo havia... Isaac! E Isaac! E Isaac! Porque ninguém mais naquela porra de escola falava inglês!

Isaac finalmente desviou os olhos do iPhone. Ele franziu o cenho por um minuto, e então voltou a mexer nele.

— Vocês vão procurar bolinhas de tênis pelo sítio, ao mesmo tempo que fogem dos monitores. Se um monitor pegar vocês, vocês vão para a cadeia. O único jeito de sair da cadeia é se o Salvador, que será escolhido um para cada time, libertar vocês. Se o Salvador for pego, não tem mais como sair. Quando acharem bolinhas de tênis, tragam-nas para cá e as coloquem no saco com a cor da equipe de vocês. É isso. Escolham um Salvador.

Pedro se voluntariou logo de cara, e ninguém contestou, porque ele era o cara que corria mais, mesmo. Eu só esperava que ele conseguisse ser discreto o suficiente para não ser pego.

— E mais uma coisa — anunciou a monitora. — Para garantir que vocês vão andar com a dupla... — ela tirou um saco de elásticos do bolso.

Ah, não.

* * *

Logo meu pulso estava preso ao de Isaac por um elástico.

— Se arrebentar, venham buscar outro — disse um dos monitores. — Se forem pegos sem elástico, estão fora. COMEÇOU!

Isaac agarrou minha mão e fez menção de começar a correr, mas ergui uma sobrancelha.

— Se não ficarmos de mãos dadas vai estourar com certeza — argumentou ele.

Eu odiava quando ele estava certo. Então corremos. Corremos por pelo menos cinco minutos sem achar porra nenhuma.

— Ali ao longe... Acho que vi alguma coisa... — disse Isaac.

— Não é nada, Geymer. Assim como não era nada nas últimas vinte vezes.

— Não, dessa vez eu realmente acho que é.

Depois de uma curta discussão, acabamos indo. Era quase na entrada da floresta, e quando nos aproximamos realmente achei ter visto um vislumbre cor de marca-texto no chão. Isaac estava prestes a pegar a bolinha quando ouvimos:

— IÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ! — e então um monitor pulou da árvore.

Eu e Isaac berramos a plenos pulmões e começamos a correr. Chegou um ponto onde nossas cabeças sabiam que não estávamos mais sendo seguidos, mas nossas pernas pareciam concordar em não parar de correr. Quando finalmente desaceleramos, estávamos exaustos.

— Você gritou como uma menininha — soltei, sem conseguir me segurar.

— Ei, você também.

— Eu posso. Eu sou uma menininha.

— Não é, não — retrucou ele, como se a ideia fosse absurda. — Não pensa como uma menininha. Até duvido que algum dia tenha pensado. E definitivamente não se parece com uma menininha.

— Temos que voltar para pegar a bolinha — falei.

Isaac estendeu a mão, mostrando a bolinha de tênis.

— Essa?

Deixei escapar um sorriso aliviado.

— Vem, vamos colocar no saco.

— Devagar — acrescentou ele.

— Devagar — concordei, e fomos andando, ainda tentando fazer nossas respirações voltarem ao normal, apesar de não conseguirmos desviar os olhos das árvores.

Chegamos ao campo e Isaac colocou a bolinha no saco vermelho. Continuamos andando à procura de bolinhas. Achamos uma perto da tirolesa, e outra na grama quando estávamos voltando ao campo. Estávamos quase chegando quando...

— Peruzzo...

— Que é?

— Peruzzo...

— O que foi, Isaac?

— Allison.

Ele me puxou, e paramos de andar. Ele apontou com a cabeça para trás, onde havia um monitor parado a alguns metros de nós.

— Ah, ele não vai... — tentei tranquilizá-lo, no mesmo momento que o filho da mãe começou a correr atrás da gente.

Gritamos de novo, como as menininhas que éramos, e desembestamos pela trilha.

— O campo! — gritou Isaac, e viramos para a direita.

Mas ali havia um morro, que não era tão íngreme, e não oferecia nenhum perigo... Exceto quando se estava a 200km/h amarrado a outra pessoa.

Rolamos barranco abaixo, os dois de cara na grama lá embaixo.

— Allison, as bolinhas, elas...

— Agora não dá tempo! — gritei, percebendo que o monitor estava descendo o morro atrás de nós. — Corre!

Continuamos a correr. Entramos no salão e eu arrastei Isaac até o banheiro feminino. Trancamo-nos em uma das cabines e subimos na tampa do vaso sanitário para que nossos pés não pudessem ser vistos, o que não ajudava muito, porque não conseguíamos controlar as respirações altas.

— Geymer...

— Sim? — ele me fitou, e percebi que estávamos muito próximos. Não que houvesse escolha. Se nos mexêssemos, cairíamos do vaso sanitário. — Shit, não tô enxergando nada.

Ele tirou os óculos embaçados e os limpou na camiseta, logo os pondo de volta.

—... Temos um certo histórico de banheiros femininos, não é? — ele sorriu, e eu não pude evitar sorrir também.

— Acha que podemos sair agora? — perguntei.

Ele deu de ombros e ficou em silêncio por um minuto.

— Acho que sim.

Abrimos a porta da cabine. Vazio. Suspiramos, aliviados, e saímos do banheiro. Quando fomos sair do salão, senti um toque em meu ombro esquerdo.

— Estão pegos — disse um monitor. — Sigam-me.


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Notas finais do capítulo

Cenas de perseguição baseadas em fatos reais.