Contos aleatórios de ASOIAF escrita por Caio Tavares


Capítulo 6
Jon


Notas iniciais do capítulo

No futuro.



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Ele enxergava melhor no escuro. Correu pela neve, o suave e confortável chão da floresta, em busca de algo que já farejara. As árvores o vigiavam de longe, mas nada importava agora. Precisava de carne, e o cheiro vinha ficando cada vez mais forte. Estava sozinho na escuridão. Não porque não houvessem outros animais, mas todos tinham medo dele. Há não muito tempo matara um - olho, o lobo comum que pensava ser o mais poderoso de todos. O som dos roncos o atraiu ainda mais para as suas presas, mas alguém afiava uma espada. Rowland Martin, ele soube. Ele o conhecia, não em sua forma atual, mas o homem na Muralha. Cabelos castanhos, barba farta e olhos verdes. Era um belo homem, sem dúvida. E o melhor patrulheiro de todos. Todos os jovens queriam ser como ele, e os velhos se vangloriavam de seus atos no passado para aplacar a inveja. E agora estava de vigília, protegendo seus irmãos.

Os cavalos também dormiam, tal qual os cães e sete dos oito homens que andavam com Rowland, mas mesmo se estivessem acordados, não fariam a menor diferença. Ninguém era mais poderoso que o grande lobo branco. As histórias circulavam na Muralha e entre os selvagens, mas ninguém sabia ao certo. Um lobo gigante, sim, o homem tinha um desses, mas este nunca mais foi visto. Seria ele na floresta¿ Sim, sou eu, ele queria dizer, mas não podia chegar perto do castelo. O outro vigilante, Bern, estava de pé circundando as árvores. Deveria ser o primeiro, sem dúvida. Um uivo surgiu do nada, um eco temível na floresta que fez os cavalos relincharem e os homens se revirarem no sono. E mais um. Pare com isso, Verão, ele quis gritar, mas se uivasse só pioraria as coisas. Correu desesperadamente até o a origem dos uivos, e lá estava ele. Cinza e preto, gigantesco forte. Não era tão grande quando Fantasma, mas certamente era temível.

Pare de uivar, está estragando minha caçada.

Não, não posso deixá-lo fazer isso. É terrível, terrível.

Eu também não quero mas é a maldição.

Lute contra ela, faça alguma coisa!

Não posso, preciso ir. Por favor, não uive mais.

E voltou à posição anterior, desta vez desfrutando da resignação do irmão. O chão estava macio e a neve, profunda, mas suas longas patas forneciam um caminhar confortável. Eu também não quero. Era só meia verdade. Ele queria aquilo mais que tudo na vida, precisava daquilo Era a sua maldição. O homem se sentia horrível com isso, mas o que fazer¿ Precisava matar. Atacaria Bern primeiro, mas agora ambos estavam de pé. Então será Rowland. Eliminaria o melhor primeiro, como sempre fazia. Sem um grande, os pequenos não valem nada, mas um grande pode muito, mesmo sozinho. Correu em seu silêncio absoluto e pulou no pescoço do homem. O sangue se espalhou pela sua boca, o doce e maravilhoso sangue humano. A carne e os ossos se dilaceraram ao toque das presas do lobo, e o defunto nem teve tempo de gritar de dor. Quando saiu de cima dele, estava estatelado no chão, com a mandíbula desfigurada e as roupas cobertas de sangue. Os outros se levantaram.

Por favor, não o mate... – A voz ecoou dentro de sua mente, não a do seu irmão, mas a do homem. – Ele é um bom homem...

Não existem bons homens, esta é a maldição.

O primeiro foi Bern, o garoto órfão da Baixada das Pulgas que fugira de Porto Real antes de esta ser incinerada. Levantou sua espada em posição de ataque, com fúria e desespero no rosto, mas não teve chance alguma. O lobo já se acostumara com essas garras metálicas e sabia como se defender. Um rápido salto na barriga, o horrível gosto de entranhas e o toque da espada caindo. O lobo nem sequer sangrou, mas o homem foi partido ao meio. Os cães despertaram e vieram atacá-lo, mas eram tão perigosos quanto moscas. Ele os chutou e pisoteou, quebrando seus ossos com a suavidade de uma caminhada. Precisou arrancar a cabeça de um, mas os cães não tinham gosto bom.

Três homens montaram os cavalos, quatro atacaram a pé. Dois fugiram correndo. Estes morrerão nas suas mãos, homem. O lobo era vez e meia maior que o maior dos cavalos, e mil vezes mais forte e ágil. Com um golpe de calda podia derrubar um quadrúpede e quebrar suas pernas, e com suas garras rasgava as gargantas dos homens. Não demorou muito até que o cheiro de sangue e triunfo invadisse o ar, e o sabor em sua boca o deixasse ainda mais faminto. Devorou a carne de três cavalos e se sentiu satisfeito, então deixou o único suficientemente bom fugir, e os outros, morrerem de frio. Os nove homens ele não comeu. Não gostava de sua carne, apenas do sangue. Não suportava passar uma noite sequer sem matar, e os de hoje haviam sido um banquete à sua ânsia. Precisava disso, essa era a sua maldição, e o eterno fardo do homem.

Acordou na madrugada fria do Norte. A esta hora o Castelo Negro ainda estaria adormecido, tal como os outros dezessete castelos da Patrulha da Noite. O homem tinha ombros largos e braços fortes, um rosto triangular e olhos cinzentos. Seus cabelos e barba eram salpicados de cinza, mesmo que ele não se considerasse velho o suficiente para isso. Tinha o peito expoente por causa dos músculos, mas estes não faziam causa comum com a barriga cada vez maior. Tocou um sino para chamar seu intendente pessoal. Podrick Payne era um homem quieto e metódico, sempre obedecendo a ordens e agindo de maneira neutra. De início fora difícil aceitar o serviço daquele homem, afinal era da casa Payne, a mesma de onde viera o executor de Ned Stark, mas com o tempo ele conquistara sua confiança por meio dos bons serviços. Nunca demonstrara nenhum interesse em realizar outra atividade na Muralha, mas também não servia para o comando. Jon não se importava em morrer para que alguém o substituísse, mas rezava para que este alguém não fosse Allister Throne. Podrick chegou ao alojamento da Torre do Senhor Comandante em menos de dez minutos, já vestido com sua farda negra habitual e um resquício de sono no rosto. Tinha olhos castanhos e um rosto redondo, apesar de seu corpo magro. Pingentes de gelo se formavam em sua barba, onde ele provavelmente jogara água ao despertar. Era só três anos mais novo que Jon, mas a ausência de preocupação o davam uma aparência imensamente mais jovem.

– Bom dia, Podrick. – ele o cumprimentou, depois de vestir as calças de lã e uma camisa fina de algodão – Vá até a cozinha e peça para Yonh me preparar dois ovos fitos e um pão. Traga também um copo de leite quente, certo¿

– Sim, senhor. – e se virou para sair.

Lorde Snow vestiu mais uma calça de lã e então uma de couro, e por cima da camisa de algodão pôs três casacos espessos. O frio não dava trégua há duas luas inteiras, e talvez o verão estivesse perto do fim. Ou talvez já seja inverno, pensou, mas a Muralha será a última a saber. Ergueu uma perna, depois a outra. Andou pelo quarto para não congelar, e então olhou pela janela. O sol nascia ao longe, em uma vermelhidão que se espalhava pelo branco da floresta. Até hoje havia lugares onde não crescia planta alguma por causa das batalhas da Grande Guerra, mas não era algo bom para se lembrar. Guerra nenhuma era boa, apesar do pensamento estúpido dos cavaleiros do Sul de que a glória era a coisa mais importante da vida, e de que esta só poderia ser conquistada travando guerras e mais guerras. Há quatro anos a Patrulha desfrutava de uma doce e silenciosa paz, desde que oito mil irmãos juramentados haviam derrubado o último avanço selvagem por meio da ocupação de Archotes, finalizando assim a reestruturação de todos os castelos. A situação não era tão boa há séculos, mas mesmo assim ele não conseguia ter uma noite tranqüila. O intendente chegou com uma bandeja e se retirou silenciosamente do quarto, fazendo apenas uma pequena reverência.

– Pode voltar a dormir se desejar, Podrick. O dia só começa em uma hora.

Mas Samwell não esperou uma hora. O homem gordo se fazia ouvir de qualquer parte do castelo, por meio de seus paços que mais pareciam passos de mamute. Bateu na porta e a empurrou sem esperar autorização. Sabia que ambos costumavam acordar de madrugada.

– Bom dia, Samwell. Problemas com o sono¿

– Bom dia, Lorde Snow. Problemas com a respiração. Acordei mil vezes esta noite, até que desisti e resolvi vir até aqui. Importa-se se eu me sentar com o senhor¿

– Claro que não. Quer que eu chame Podrick para trazer seu desjejum¿

– Ah, não, obrigado. Eu já comi.

Ele se sentou desajeitadamente sobre a cadeira, que fora projetara para medidas humanas, e retirou um rolo da manga de sua toga. Sua barba crescia quase tão rapidamente quando o seu peso, e a esta altura já tocava o que deveria ser o umbigo de Sam.

– Chegou um novo corvo de Atalaieste nesta madrugada.

– Foi o que acordou você¿

– Acordei uma hora antes. O ar não passava pelo nariz e a garganta estava seca. Eu certamente saberia como tratar isso se tivesse o elo de prata.

– Não sinto pena de você, Sam.

– E nem deveria. Quer ler a carta¿

Fez que sim com a cabeça e estendeu a mão. As letras pareciam tremer sobre o papel, a tinta era clara demais e borrada demais. Posicionou-o em várias posições diferentes sem conseguir ler nada.

– Que merda, Sam. Aquele problema de visão voltou.

– Não posso cuidar disso, não cheguei a forjar o elo de prata.

– Mande um corvo para Atalaieste mais tarde, peça para encomendarem aquelas lentes de Lorath.

– Isso vai custar caro.

– Pedirmos emprestado ao rei Tyrion, ele sempre ajuda. Agora me diga o que está escrito aí.

Ao Senhor Comandante da Patrulha da Noite.

Segundo as últimas notícias que vêm de Harrenhal, o rei Euron Greyjoy da Campina acaba de conquistar o Tridente e as Ilhas de seu irmão Victarion. Ninguém sabe ao certo, mas rumores dizem que ele teve ajuda dos meistres sulistas para matar o dragão do rei. O reino do Rochedo encontra-se em estado de alerta, mas garante que não quer guerra com o Tridente ou a Campina.

– Matou o dragão¿ - Jon perguntou incrédulo. Ele se lembrava bem do rei Victarion, alto e onipotente com seu dragão esverdeado. Fora o primeiro a chegar no Norte, enquanto Daenerys ainda se preocupava em derrotar Stannis em Porto Real e a crise além da Muralha não era tão forte. Fora coroado em Vilavelha junto com todos os outros, mas a sua não era feita de metal, e sim de madeira trazida pelo mar.

– Aparentemente sim, senhor. Não cheguei a estudar isso, mas alguns meistres têm um profundo conhecimento sobre a anatomia de dragões. Há histórias não confirmadas de que a própria Cidadela tenha arranjado a morte dos últimos, durante reinado de Daeron I Targaryen.

– Mas a Cidadela foi destruída. Pelo próprio Euron.

– Acha que eu não me lembro disso, Jon¿ Ou melhor, Lorde Snow. Eu estava lá cumprindo suas malditas ordens de me tornar meistre quando ele chegou, saqueando e destruindo o maior tesouro da cidade mais antiga de Westeros. E depois ainda foi coroado rei da Campina no que sobrou de Vilavelha.

– Ele não saqueou Vilavelha, apenas a Cidadela. Você sabe, os homens de ferro odeiam meistres. Foi por causa de um que a irmã de Euron morreu.

– Certamente não foi por minha causa. Mas por causa dele eu nem sequer sou um meistre.

Os relatos haviam demorado quase quatro luas para chegar à Muralha, mas vieram repletos de detalhes. Stannis Baratheon acabara de conquistar Porto Real e sentar no Trono de Ferro com o auxílio do Norte, mas Euron Greyjoy tinha um interesse maior pelas terras verdes do sul. Conquistara a Árvore em nove dias, dizimando completamente suas cidades e castelos, não deixando sequer uma videira viva. Após o terrível massacre que os homens chamaram de “afogamento”, Lorde Eddard Hightower rendeu Vilavelha antes mesmo de os invasores chegarem. Enviou navios abarrotados das riquezas da cidade e abriu os portos, recebendo seu novo rei de joelhos juntamente com a Patrulha da Cidade. Todas as mulheres e crianças haviam fugido, tal como a maioria dos meistres e noviços. Greyjoy ganhou a cidade contra três mil homens de armadura, mas que não moveram um membro sequer para impedi-lo. Que graça teria para um homem de ferro saquear uma cidade rendida¿, Jon se perguntou. Mas mesmo assim a Cidadela foi completamente destruída, assim como todos os castelos verdes que não se renderam. Um ano mais tarde, Euron foi oficialmente coroado na cidade que poupara, e Sam jamais se esqueceria disso.

– Samwell, será que você não tem nada a fazer senão lamentar isso¿ Já pensou que hoje poderia estar morto com uma espada de ferro enfiada no peito¿

– Talvez fosse um destino melhor. Você não viu a expressão de meu pai quando eu voltei rastejando para Monte Chifre, viu¿ Se tivesse visto, talvez não seria tão frio às minhas frustrações. E ele não tinha lá muita moral para me recriminar, afinal também estava fugindo de um rei; ele de Stannis e eu de Euron. Mas não me deixou passar uma noite sequer no castelo, a não ser que fosse nas masmorras.

– Está bem, Sam, eu entendo seu ódio por Euron. Mas o que quer que eu faça¿ Que reconstrua a Cidadela¿

– Não quero que faça nada, Lorde Snow. Às vezes desejo que o rei Tyrion pegue seu dragão e queime aquelas malditas Ilhas de Ferro, mas sei que não vai acontecer. Tudo o que tenho a fazer agora é coçar meu pescoço rosado e cuidar de corvos, coisa que já sabia fazer mesmo antes de chegar à Cidadela.

Jon terminou de comer e limpou a boca. Estava com preocupações demais para ouvir a auto piedade do quase-meistre Samwell Tarly.

– Bom, precisamos trabalhar. – disse isso se levantando, e então esticando a mão para ajudar o homem gordo – O reino de Euron Greyjoy é grande coisa, mas nosso mundo é outro. Há mais alguma mensagem¿

– Por enquanto não. – respondeu enquanto recusava a ajuda de Jon e se apoiava na mesa de madeira para levantar sozinho. – Eu também preciso trabalhar. Há seis semanas venho traduzindo aquelas placas de argila que encontrei nos fundos da Biblioteca, mas algumas runas estão apagadas e não dá pra entender as frases.

– Algum selvagem que conhece a Língua Antiga ajudaria¿

– Eles não sabem ler. Mas agradeço sua sugestão.

Eles se cumprimentaram e saíram do aposento. Há muito tempo a amizade que havia entre eles se tornara uma simples cordialidade entre colegas, e Samwell parecia gostar cada vez menos dele. Jon desceu as escadas rapidamente, e quando chegou à base da torre, seus dois guardas já o estavam esperando. Andaram alguns metros até o armeiro, que neste momento estava repleto de jovens se atando a placas de peito e pegando espadas de madeira. Dois deles haviam chegado depois de a última patrulha sair, e diziam estar ansiosos para conhecer o lendário sor Rowland Martin. Me perdoem, rapazes, ele pensou, se odiando, Espero que sejam melhores que ele.

A maldição. Tão breve em palavras, mas tão cruel na vida. Há quanto tempo fora isso¿ Vinte, trinta anos¿ Era o tempo de vida em que ele deveria estar morto. Morrera uma vez, de uma maneira cruel e traiçoeira, pelas mãos de seus próprios irmãos. Cortara a cabeça de cada um deles depois, mas também tivera que ceder às suas vontades. Todos os selvagens que não quiseram se unir à Patrulha foram empurrados de volta para lá da Muralha, e os castelos voltaram a ficar vazios, até que a Grande Guerra fez chover homens de negro. Obrigado, Outros, ele pensou, rindo de si mesmo. Não fosse pelos temíveis caminhantes brancos, o escudo que protege o reino dos homens nunca teria se tornado a maior promessa de glória de Westeros. Eram bons homens, apesar de tudo. Mas não existem bons homens. A lembrança lhe deu calafrios. Aparentemente, as bruxarias da mulher vermelha eram reais, ou talvez ela fosse melhor curandeira que qualquer meistre. Quadro furos de adaga, quatro cicatrizes eternas, mas só cicatrizes. Quando ele acordou, estava melhor do que nunca.

Mas a Muralha não. Uma guerra se instalara dentro dos próprios castelos, e depois que os homens do rei Stannis partiram para o Sul, os selvagens estavam por violar a grande barreira. Ele queria ajudar, queria poder comandar um ataque final, mas seus homens não acreditavam nele. O culpavam pela invasão do povo livre, pelas guerras que aconteciam e até pela chegada do inverno. E o pior de tudo, o culpavam pela morte de um irmão inocente. Soubera só depois das execuções, que Melisandre queimara o corpo de Edd Tollett em uma de suas malditas piras ao Senhor da Luz.

– Precisei sacrificar a vida dele para salvar a sua, Lorde Snow. – ela dissera, com seu tom suave e um pouco irritante de sempre.

– Não poderia ter feio isso! Um comandante deve morrer pela vida dos seus irmãos, jamais o contrário! Agora eles acham que eu sou um servo desse seu deus vermelho!

– E não é¿ Ele lhe deu a vida quando poderia ter deixado as adagas tirarem-na. Isso não é suficiente para merecer sua gratidão¿

O caos reinava em Castelo Negro, e já se ouvia rumores e mais rumores de rebeliões para assassinar o Senhor Comandantes. Ele não queria fazer aquilo, mas as circunstâncias o obrigaram. A maioria dos homens tinha medo de tocá-la em suas vestes vermelhas de Asshai, então a trouxeram nua para fora do castelo. Jon prometeu cortar a cabeça de qualquer um que tentasse violá-la.

– É a vingança por Edd! Não haverá nada além disso!

A amarraram no mesmo poste chamuscado em que o irmão morrera, e acenderam uma pira dez vezes maior. Jon teria preferido simplesmente cortar sua cabeça, seria a justiça digna do Norte, mas seus homens não queriam justiça. De uma forma assustadora, ela não gritou, mas ficou cantarolando um ritmo demoníaco de alguma canção de Asshai.

– Por que me matou, Jon Snow, eu salvei sua vida. – ela cantara em meio às chamas.

– Você matou Eddison Tollett. Ele era nosso irmão e um bom homem.

– Não existem bons homens. – as palavras saíram por entre um sorriso desfigurado – Nem mesmo você, que tirou a vida de um irmão para viver. Esta será sua maldição, Jon Snow.

Ele tivera medo naquele dia, e até hoje morria de medo. Esta era a sua vida agora, uma eterna luta contra a maldição infligida pela mulher que salvara sua vida. Dispensou seus dois guardas na porta da sala de trabalho e entrou. O lugar era pequeno e abafado, mas ideal para se concentrar. Uma cadeira simples mesa de madeira com algumas gavetas, essas eram suas companhias ao longo do dia. Ele deixara por verificar três relatórios da Intendência ontem à noite, então puxou-os para cima. Dez mil homens da Patrulha da Noite. Oito mil patrulheiros, mil e quinhetos intendentes e quinhentos construtores, cada um recebendo sua porção diária de comida. Muitos aposentos precisavam de cobertores e as estrebarias precisavam de reparos. E a Muralha precisa de mais castelos, ele concluiu. Talvez precisasse transformar alguns patrulheiros em construtores por um tempo, mas isso era para o futuro. A maior urgência, ao seu ver, era a falta de cobertores. Será que eles conseguem dormir¿.

Podrick Payne chegou à porta de sua sala alguns instantes depois, calado como sempre, mas com uma expressão que sugeria que estava pronto a cumprir alguma tarefa.

– Ah, ótimo, Podrick. Chame Dormer Flowers aqui, por favor.

Ele se retirou e foi buscar o Senhor Intendente. Dormer era o homem mais inteligente de toda a Patrulha, e talvez de todo Westeros. Fora noviço na época de Sam, mas quando o ataque ocorreu, ainda não forjara elo algum. O tempo passou e Jon leu todos os relatórios pendentes, fazendo anotações nos cantos e refletindo sobre os problemas. Flowers chegou e lhe entregou mais relatórios, debatendo um assunto ou dois enquanto o tempo passava. Jon já estava com dores de cabeça por tanto forçar a visão, mas decidiu que não descansaria até o intervalo para o almoço. Os passos pesados de Samwell Tarly se fizeram ouvir do lado de fora, e ele entrou suado como um porco. Ofegava tanto que o Comandante cedeu sua cadeira para ele.

– O que há de errado, Sam¿

Ele estendeu um pergaminho. Dessa vez não conseguiria ler para ele, então ele fez um esforço e apertou os lhos. As letras eram turvas, mas com a distância certa ficaram legíveis.

A Jon Snow

O glorioso reino do Norte, outrora posse da legítima casa Stark, hoje sangra nas mãos do terrível rei Ramsay Bolton. Mas essa era de sofrimento há de acabar. O herdeiro por direito é Rickon Stark, e este vem reclamar a ajuda da Patrulha da Noite para conquistar o reino. Envie uma resposta positiva no momento em que receber a carta, se não for assim desconfiaremos de sua boa vontade.

Rickon Stark, rei do Norte.

Ele levou um tempo para absorver as palavras, e mais ainda para reparar o lobo que estava preso no selo da carta. Rickon¿ Ele se lembrava muito pouco do irmão, um menino de três anos que mal sabia falar. Dera ao seu lobo o nome de Cão Felpudo, mais uma prova de que não passava de uma criança dócil. Não haveria como ele ser um rei. Estava morto há quase trinta anos.

– O que é isso, Sam¿ Algum tipo de brincadeira¿

– Eu não brinco, senhor. O corvo chegou há dez minutos. Vinha manchado de neve e era tão selvagem que não parou de gritar com os outros no poleiro. Este certamente não veio de nenhum castelo; talvez nem sequer tenha passado por Atalaieste.

– Não gosto que os corvos passem por lá. – ele divagou por um instante – Mas de quem será esse bilhete¿

– Eu não sei. Mas exige uma resposta imediata. O corvo está preso em uma gaiola, fazendo tanto barulho que temo que vá enlouquecer os outros.

– Não quero responder a algo assim.

– Senhor, se me permite aconselhá-lo, é preferível fazer a vontade de um estranho antes que ele se torne seu inimigo.

– Então escreva qualquer coisa. Que a patrulha não se envolve nos assuntos do reino, simplesmente isso.

– Sim, senhor. – ele se levantou e saiu.

Jon estava atordoado com aquela ideia. Rickon estava morto, claro que estava. E mesmo se estivesse vivo, como poderia se tornar rei¿ Winterfell caíra há décadas e fora reconstruído pelos homens da Patrulha, mas nada além disso poderia ser feito. Em outros tempos Jon se dobraria a qualquer um que dissesse ser Stark, mas isso fora antes de tudo. Antes de viver dentre os selvagens, antes de morrer e voltar à vida, antes de ver três dragões queimando criaturas na Floresta Assombrada. Sentou-se novamente e voltou a trabalhar, mas agora nem a solidão da sala lhe permitia ficar concentrado. O intervalo do almoço chegou com um toque de sino, e mais algum som distante. Oh, deuses, ele pensou quando percebeu. Dois toques de corneta. Selvagens.

Não houve tempo para reagir. O titilar de espadas inundou o castelo junto com o sangue dos irmãos negros, e durante três horas os patrulheiros foram massacrados pelos selvagens. Mas não, estes não vinham do Norte, não poderiam. A Muralha não permitiria que tantos passassem, os arqueiros e vigias jamais permitiriam algo assim. Jon tentou sair e lutar, mas em meio ao caos seus guardas acharam mais prudente levá-lo para o alto da torre com um arco e uma aljava. Matou dez selvagens, no máximo, talvez doze. Mas o desespero tomou conta dele. Um massacre sangrento por selvagens vindos de algum lugar do sul. Ele podia ver, para lá da face sem muralha do Castelo Negro, uma infinidade de homens, mulheres e crianças armados, e em um lugar ou outro também via cavaleiros com estandartes sulistas. Quando tudo acabou, ele se sentou no chão e se escorou na janela. Pressionou os olhos por um instante, pensando no que fazer. Precisava de ajuda, sim, certamente os outros castelos se ergueriam a seu favor. Sam já deveria estar enviando os corvos... Sam. Os passos pesados na escada, sim, era ele, ou então um urso montado em um mamute. A porta se abriu em um estrondo e os guardas de Jon se prontificaram, mas ele os mandou abaixar as armas.

Samwell estava lá, mas amarrado e amordaçado. Foi jogado no canto do quarto como um enorme saco de farinha, guinchando de dor, provocando risadas entre os guerreiros selvagens que entraram. Jon se levantou e ergueu a espada, mas o bom senso o fez abaixar. Um homem rude vestindo roupas selvagens e portando armas de bronze se aproximou enquanto outros dez se uniam atrás dele, todos selvagens com armaduras rústicas. O líder tinha pele clara e marcada por ferimentos de lâmina, parecia ter trinta anos, no máximo, e seus cabelos ruivos e seus olhos azuis pareciam familiares demais. Não, pensou, não pode ser, está morto. Os dois estão mortos!

– Você fica bem de negro, irmão. – a frase o deixou perplexo. Era o que ele esperava ouvir de Robb quando se vissem novamente. Por um milésimo de segundo, deixou-se acreditar que o momento era este, mas não, aquele não poderia ser Robb.

– Quem é você¿ - sussurrou.

– Rickon Stark, filho de Eddard e irmão de Robb, do sangue de Brandon, o Construtor. Por direito de herança, rei do Norte.

– Isso é mentira!

– Tirem a mordaça do gordo! – ele ordenou, e dois homens executaram a ordem. Sam estava de joelhos e choramingando por entre suas barbas fartas, e se sentou antes que o ruivo voltasse a falar. – Você não pareceu muito surpreso quando me viu, gordinho, tem algo a dizer ao seu comandante¿

Ele suspirou três vezes antes de abrir a boca, e mesmo assim as palavras saíram como um guincho.

– Perdoe-me, Jon.

– Perdoar¿

– Por favor, perdoe-me. Eu jurei... Ele me fez jurar...

– Quem te fez jurar, Sam¿ - gritou – O que¿

– Há muito tempo, muito mesmo. Há quase trinta anos. Eu atravessei a Muralha com Goiva para chegar até aqui. Bran estava lá.

– MEU IRMÃO BRAN¿ E VOCÊ NÃO CONTOU NADA¿

– Maldição, Jon, ele me fez jurar! Fugiram, os dois fugiram...

– Fugimos. – o homem que dizia ser Rickon voltou a falar – Bran foi para o Norte e eu fui para o leste. Osha, lembra-se dela¿ Ah, claro que não. Chegou a Winterfell depois de você sair. Foi minha mãe depois disso. Me levou e cuidou de mim até Porto Branco, e depois até Skagos. E também esteve comigo quando precisei desaparecer. Hoje está morta, mas me ensinou muitas coisas antes de morrer. Uma delas foi manejar uma espada.

Jon estava perplexo demais para pensar. Seus irmãos estavam vivos, e um deles invadira Castelo Negro. Ele já tivera uma surpresa assim antes, quando soubera que Arya Stark era a rainha do Norte, mas na verdade não passava de uma farsa, Jeyne Poole disfarçada, explicando entre lamentos que a verdadeira Arya estava morta. Mas este... Este era Rickon. Não sabia como, mas o reconhecia tão claramente quando a palma de sua mão. Talvez... talvez...

– O lobo. – Jon exclamou.

– O que tem o lobo¿ - questionou Rickon.

– Você está com ele, não está¿ Só assim consigo sentir esta certeza.

– Estou sim, mas não neste momento. Cão Felpudo cresceu até o tamanho de um cavalo, e precisa ficar ao ar livre. Não vejo seu lobo por aqui, Jon. O que houve¿

– Nos separamos. – era só meia mentira – Eu tenho visto na floresta, tenho visto o lobo de Bran.

– Também o vi, mas está muito distante dos meus objetivos. Alguns dos meus homens dizem que ele pode ter se tornado um vidente verde, e um dia hei de verificar isso. Mas por hora, preciso de sua ajuda, irmão.

– Isso é impossível.

– Como assim¿ Não quer ajudar o sangue do seu sangue a reclamar o trono¿ Você sabe que esses malditos Bolton têm nos importunado ao longo de oito mil anos, Jon, eles mataram Robb! Já é hora de pôr um fim nisso. Eu estou aqui oferecendo uma oportunidade melhor ao reino e você nega¿

– Rickon, você é uma criança.

– UMA CRIANÇA¿ - ele berrou, apertando os dedos em torno do cabo de sua espada e depois soltando – Tenho trinta anos de idade e tantas experiências que assustariam o mais bravo dos seus patrulheiros, Jon Snow. Vivi como um indigente por anos, vi coisas que você nunca viu.

– Lutei na Grande Guerra.

– E eu não¿ Eu estava lá em sua maldita guerra, oras, todos nós estávamos. Matei Outros com obsidiana e criaturas com fogo, vi a rainha valiriana com seu dragão e aquele anão louro que só chegou no final. A diferença, meu caro, é que quando tudo acabou você voltou para a sua confortável torre e eu voltei para Skagos. Lá existem clãs que comem carne humana, sabia disso¿ Lutei contra eles durante anos, mas não pude impedir que levassem minha mãe. Não estou exigindo que se ajoelhe para sempre, só que entre ao meu favor nesta luta. É muito simples.

– É muito bom te ver novamente, irmão. – Jon suspirou – Mas não posso fazer nada pela sua causa. Não nos envolvemos nas disputas dos Sete Reinos.

– Eu conquistei o Vale recentemente. – deu uma risada e continuou – O rei Baelish disse que não pretendia se envolver, que isso não era assunto seu. Sabe onde está agora¿ Em algum lugar bem abaixo do Ninho da Águia. O matei como ele gostava de matar, jogando pela porta da lua. E você, irmão¿ Terei de cortar sua cabeça¿

– Não faria isso. Não pode, seria fratricídio, um dos maiores crimes existentes.

– Assim como violar a Muralha, mas eu acabo de fazê-lo. Vamos lá, quero apenas que tenha bom senso. Não precisa se ajoelhar, se quiser, venha como aliado. Comande seus homens em segredo, lute comigo por Winterfell e lhe farei rei da Noite.

– Eu já lhe disse, Rickon. Não me envolverei nisso. A Patrulha não se envolve, e essa é a verdade que sei.

Ele deu uma ordem a dois homens na Língua Antiga, algo que Jon não pôde entender, mas que fez Samwell guinchar de medo. Agarraram o comandante pelos braços e mataram todos os guardas que tentaram impedi-los. Ele mesmo tentou se debater, mas os selvagens eram muito maiores e mais fortes que ele. Rickon puxou do cinto um punhal de bronze, algo singelo, mas fatal. Rodopiou pelo quarto e andou na direção dele. O metal foi um beijo frio em sua garganta.

– Essa é a verdade que você sabe¿ - ele disse, gargalhando depois. – Então você não sabe nada, Jon Snow. – E o beijo foi mais profundo.


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Notas finais do capítulo

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