Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 34
Complexidade Póstuma


Notas iniciais do capítulo

sugiro ler esse capítulo com muita atenção e qualquer dúvida ou erro, me avisem ok
ps tem essa música do woodkid que eu achei tão paper women, mesmo que a história do clipe não tenha nada a ver com essa história, mas o clima é praticamente igual, é esse aqui: https://www.youtube.com/watch?v=RWMMdX6KYGM



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/458320/chapter/34

Eu pensei que depois de ontem, tudo mudaria. Porque mudou mesmo. Parece maior que apenas vinte e quatro horas, com tanta coisa acontecendo. Tanta coisa tomando forma, encontrando perspectiva, é como se eu usasse óculos e alguém limpasse-os para mim. Mas eu ainda vejo a mesma coisa. Isso é estranho. Nada mudou realmente: eu vou para escola, eu faço as tarefas, tudo que eu preciso fazer, eu converso sobre a formatura, faculdade, planos, eu vejo as mesmas pessoas. Conversamos sobre as mesmas coisas, mesmo que as palavras mudem. Eu fico esperando algo sobre ontem entrar na realidade de hoje —meus pais, Vincent, Vivian, Richard —mas é como um dia qualquer. Isso me faz ter uma experiência estranha, como se eu estivesse observando a vida de outra pessoa. Como quando você conversa com alguém e sai da conversa porque fica pensando que está conversando com a pessoa. Que aquilo está realmente acontecendo. E parece surreal como ontem causou tantas emoções e ninguém mais percebe. Eu não pareço diferente. Becker também não. Não sei dizer se isso é bom ruim. Até Richard Fawkes entrar na sala.

Eu estava esperando por esse momento. Esperando para ver o que aconteceria, se ele olhasse nos meus olhos e percebe que eu sei sobre ele. Mas quando ele me chama para responder uma pergunta qualquer, e olha para mim, é a mesma expressão de sempre. Porque ele não faz ideia do que eu sei. O mais estranho é que ele também continua o mesmo. Richard Fawkes é o professor Fawkes, e isso não muda nunca. A percepção dessa mudança de foco, mas da permanência de todo o resto me mantém no mundo da lua o dia inteiro, me perguntando sobre as pessoas. Vivian. E como todo dia, nós falamos com pessoas sem ter a menor ideia de tudo que já aconteceu com elas. Todas as coisas que elas sabem. Perceber as pessoas não é o suficiente. Isso me choca porque se nós somos cometas que se cruzam, então todos ao nosso redor passam tão longe que nunca vamos ter chance de saber sua história. Há apenas casos sortudos. Ou talvez não tenha nada a ver com sorte, mas com vontade.

Becker fica mais nervosa que eu. Durante uma explicação do professor, ela não consegue ficar parada. Até Robbie perde a paciência. Ela olha para mim toda hora, mas não sei como reagir. Quando a aula acaba, observamos ele ir embora.

—Devíamos ir falar com ele. —Becker sugere.

—Vincent disse que a gente devia esperar.

—Eu duvido que você vai conseguir ficar uma semana sem falar sobre a Vivian para ele.

Ela está certa em duvidar.

—Eu sei. —Então eu repito, com mais convicção. —Eu sei. É só... eu fico imaginando. Se não vai ser meio esquisito...

—Então você quer esperar até a gente se formar pra falar com ele e não ter que olhar na sua cara depois?

—É uma boa ideia.

—Não é, não. —Pegamos nossas mochilas, e fazemos nosso caminho até encontrarmos Gordon. Ele quer comparar os resultados das provas de francês ou algo assim. No caminho, Becker continua. —A gente tem que fazer isso antes. Tipo... agora. E se o Vincent decidir voltar atrás?

—Você acha mesmo que ele iria voltar atrás? —Ela nem precisa pensar para admitir que não tem a mínima chance de Vincent desistir disso. Ele tem a mesma convicção que eu tenho. Será que ele tem o medo também? Porque depois do que aconteceu com Helen, o receio está sempre ali.

Helen.

—Sabe o que a gente devia fazer? Devíamos falar com Helen primeiro.

Acabar com uma coisa antes de começar a outra. Eu sinto que com toda essa confusão com os nomes, somos aquelas pessoas que correm, correm, correm atrás das outras e quando alguém para, todos os outros se esbarram. Uma confusão.

A julgar pela expressão, Becker não gosta muito. Não sei dizer se é algo como me deixe longe disso ou se é estou com medo. Então eu pergunto.

—Só de pensar em falar com Helen eu me sinto enjoada. Mas eu sei que a gente tem que ir. Mas o professor Fawkes está bem aqui.

—Uma coisa de cada vez.

—Você só está com medo, Diana. —Ela me atinge.

—Verdade, mas você também. —Ficamos nos encarando, Becker impaciente e eu impassiva, tentando ganhar a batalha. Ela solta um suspiro irritado.

—Eu não quero falar com ela! —ela confessa.

—Não precisa. —Engulo seco, fazendo esforço pra tirar as minhas próximas palavras. —Só vá lá comigo e não precisa nem olhar para ela. —Acho que ela fica com pena de mim (porque Becker tem um ponto fraco no seu coração) e joga as mãos para o alto, em desistência.

—Tudo bem, tudo bem!

—Eu não entendo o por quê dessa raiva. —digo —Você mesma disse que tinha mais história pra ser contada sobre Helen.

—Ela só me deixa nervosa.

Passo meu braço pelo seu ombro, dando apoio. No fundo ela me assusta também. Mas eu não quero voltar pra casa. Eu quero fazer algo que me faça esquecer do que me espera depois. E sou corajosa o suficiente para querer enfrentar Helen.

Becker faz como prometido. Ela entra no meu carro —olhando quase melancolicamente para onde o carro do professor Fawkes está —e nós vamos até o hospital onde ouvimos que Helen se encontra. Um hospital psiquiátrico, que parece um lugar normal do lado de fora, mas quando entramos, consegue ser mais deprimente que o hospital onde Vincent está. No balcão de informações, uma mulher indiana me olha séria, e eu fico mais nervosa ainda.

—Posso ajudar?

—Estou procurando Helen Gluck.

—Nome?

—...uh, Diana. Novak.

Ela digita alguma coisa no computador, e depois de algumas buscas balança a cabeça. O olhar severo me diz que eu estou fazendo algo errado. Becker se aproxima, curiosa.

—Seu nome não está aqui.

—Não sabia que precisava estar.

—Ela é paciente da ala azul, e só pessoas autorizadas podem visitar pacientes dessa ala. Você não está aqui, e de qualquer forma, precisaria ter mais que dezoito para assinar os papéis.

—Eu tenho dezoito anos. —me defendo, como se eu tivesse cometido um crime. Então é isso? Não? Nada?

Graças à Deus Becker vem ao meu socorro nesse exato momento, com uma de suas perguntas inteligentes.

—Quem está na lista?

Mas a mulher não acha inteligente. Ela fica mais irritada ainda, e nos analisa de uma forma que eu me sinto com doze anos. Becker suspira, irritada ou apenas fingindo irritação, e tira sua identidade da carteira.

—Eu tenho dezoito anos. Podemos não entrar, mas eu gostaria de saber quem está na lista. Essa mulher, —ela pausa, respira fundo, recomeça. —Helen Gluck, eu estava com ela. Quando ela pirou e teve que voltar para cá. Isso... isso é muito importante para nós.

—Quem são vocês?

—Nós conhecemos pessoas que estão relacionadas a ela. Nós a vimos ontem. —explica minha amiga, e a mulher indiana coloca óculos pretos, nos encarando acusadora. Ela volta a mexer no computador à sua frente, e enquanto digita, diz para nós:

—Preciso anotar os seus nomes e um número de telefone, como garantia.

Garantia do quê?

Enquanto eu e Becker deixamos nossos nomes, ela continua pesquisando. Eu coloco o número do celular de Ian depois do meu nome, porque não quero arriscar uma ligação de um hospital psiquiátrico para a minha casa. Provavelmente seria para cá mesmo que os meus pais me mandariam. Devolvo o papel para a mulher, que o lê, e depois olha para a tela do computador.

—Aqui diz que as enfermeiras e os médicos são os visitantes comuns. Tirando eles e os psiquiatras, hm, uma mulher chamada Vivian. —Meu coração acelera, mesmo que eu não esteja nem um pouco surpresa. Deve ser esse reconhecimento de que, depois de tanto tempo encarando que Vivian está morta, em alguns lugares, ainda há provas dos dias em que ela estava viva. —E R. Fawkes. É a única identificação. Não me perguntem mais nada.

Muito obrigada. —diz Becker, o tom genuíno. —Mas caso queira saber, essa Vivian morreu.

—Com licença?

—Ela morreu um ano atrás.

—Como vocês sabem?

Becker sorri, o nervosismo de antes evaporando.

—Como eu disse, estamos todos relacionados.

Saímos sem fazer mais perguntas, e no carro, logo Becker começa a falar.

—Então sabemos que Vivian e Richard Fawkes vinham aqui visitá-la. Isso só nos dá mais um motivo para ir falar com ele.

Eu reviro os olhos, sem conseguir me segurar. Mas agora eu sei que somos obrigadas a falar com o professor Fawkes primeiro. E temos que quebrar a regra de Vincent. Mas não hoje. Pergunto se Becker quer ir para o hospital, e quando diz sim, cinco minutos depois, é lá que estamos. Temos um acordo silencioso em que nenhuma das duas comenta nada sobre Helen. No hospital, um homem proíbe nossa entrada e Ian precisa descer até onde nós estamos para dizer que nós "somos família". Isso pesa em mim mais do que qualquer coisa, exceto, talvez, o modo como ele me beija depois que o homem nos deixa passar. Ou o jeito que ele me olha quando eu puxo ele pela camiseta para mais perto quando se afasta depois do beijo. Estamos no meio do corredor, e Becker nos olha com uma careta.

—Se é assim que eu pareço com Robbie, então peço desculpas a qualquer pessoa que nos vê juntos.

—Agora você conhece a minha dor. —retruco, e ela me dá um tapa.

—Temos amor para todo mundo. —Ian brinca, puxando ela e envolvendo nós duas em um abraço, cada uma em um braço. Quando conseguimos escapar, e a brincadeira morre aos poucos, eu pergunto para Ian como as coisas estão. Seu rosto fica sério também, mas não perde a leveza. As coisas não estão completamente ótimas, mas elas estão melhores.

—Está tudo bem. Sem mais lágrimas ou surpresas. Eles conversam, Vincent está contando aquelas coisas sobre ele e a minha mãe, o pai dele... Helen. —Engulo seco. —Mas... tirando isso, não é tão ruim. Eles só... brigam. Toda hora.

E ele está certo. Eu fico apenas uma hora no quarto de Vincent, enquanto um médico faz check-ups, e ele arranja três brigas com Victoria e cinco com Visia, sobre praticamente tudo. De ir falar com Richard Fawkes até o que ele vai comer hoje. Yasha não está em nenhum lugar, e quando pergunto, Visia sussurra para mim que ele voltou pra casa por causa da escola.

—Quem está cuidando dos outros? —pergunto, alarmada. Não tinha pensado nisso antes. Mas ela só sorri um sorri misterioso e tranquilo, que me lembra Ariel.

O marido de Victoria.

—Ele voltou? Da Rússia? Eles... voltaram? —sussurro em resposta, porque sinto que não é algo que deve ser falado na frente de Victoria ou dos outros. Visia e eu estamos sentadas no canto do quarto. O sorriso não vai embora, mesmo quando ela balança a cabeça em resposta, um não. —Eu não entendo.

—Não foi o amor que fez ele voltar. Na verdade, foi. Mas não o que você está pensando. Foram as crianças.

Eu paro no lugar, mas ela continua falando sobre a volta do marido de Victoria há uma semana, detalhes, informações. Foram as crianças. Foram as crianças. Penso no meu pai. Foram as crianças.

E a minha mãe, e Gwen, e algo se forma na minha garganta. Isso faz sentido. Eu olho para Victoria. Ele conversa com Vincent sobre Yuri e algo que ele fez. Eu vejo ela se iluminar, Vincent olhar com curiosidade. Ela não fala do marido. E ela parece bem. Acho que as vezes as pessoas tomam decisões erradas e podem ficar a vida toda sofrendo as consequências, e em outros casos, a decisão é grande demais. Então temos que aprender a contornar, adaptar-se a isso porque não é algo que ninguém possa desfazer. Mas não acaba com a sua vida. Não se você é forte. Não se você é Victoria.

E a sua mãe, minha mente adiciona. Eu tenho uma sensação estranha de novo. E se tudo isso, nossa vidas, minha e de Gwen, o casamento dos meus pais, todo esse sofrimento foi baseado numa decisão errada, que ele decidiram tornar certa? Ou tentar. Não deu muito certo.

Mas não sei como provar isso. Quando eu vou para casa mais tarde, minha mãe está lá. Ela me observa, mas não diz nada. Eu pergunto onde meu pai está. Quando digo a palavra "pai" parece que tem um peso a mais. Uma história a mais que eu espero que ela perceba, e diga algo a respeito mas ela só responde que ele está trabalhando e não vai poder voltar hoje.

—Por quê?

—Porque ele está ocupado.

É agora ou nunca.

Talvez ele não queira voltar.

Isso é tão cruel.

E ela sabe. Vejo a mágoa nos seus olhos, e eu sei que é verdade.

—O que você quer, Diana?

—Pensei que queria "conversar" quando eu voltasse.

—Agora não. —murmura ela, e depois indica para que eu feche a porta, colocando os olhos em uma pilha de papéis no seu escritório. Fico alguns segundos por trás da porta fechada. Abro de novo, e ela me olha alarmada.

—Se você não tivesse engravidado, acha que estaria com o papai?

Ela levanta os olhos, surpresa. Um momento de hesitação passa, mas ela abre a boca e fala.

—Sim.

—Por quê? Ele é tão... —assustador.

—Nunca duvide disso, eu amo seu pai.

—Ele te ama? —Soa tão cruel falar isso em voz alta, mas é uma pergunta presa na minha garganta por um longo tempo. E eu quero saber porque pode ser que sim, e pode ser que não, e pode ser que ela não veja a situação claramente. Se ele a trata de um jeito horrível, vale a penar ficar por amor? E quando eu for embora? No que essa casa —essa família —vai se tornar? Posso ver o efeito que minhas palavras tiveram, e é como se eu fosse a mãe e ela a filha, na necessidade de ser consolada. Não faço nada, porque ela nunca me consolou. Eu espero.

—O que você quer que eu faça? Saia? Eu sei que eu não te conheço, Diana, mas eu sei que nós temos visões bem diferentes sobre o que precisamos. Eu não estou dizendo qual é errada ou a certa, mas não fale desse jeito. Como se soubesse de tudo.

—Vocês nunca me contaram nada.

—Alguma vez você perguntou? —alguma vez vocês me perguntaram?

Mas então eu paro. Porque ela está certa. Vivian sempre me disse para falar mais alto, caso contrário as pessoas nunca me ouviriam. E eles podem ter me silenciado primeiro, mas fui eu que continuei quieta. Eu nunca perguntei. Eu não sei as perguntas certas.

—Me desculpe. —digo, engolindo meu orgulho. —O que você quer que eu pergunte?

—É meio tarde pra isso.

Mãe, eu estou tentando... então por favor...

Quando você conheceu aquele garoto? —ela me interrompe, e eu sinto o sangue descer, sumir do meu rosto. Ela lê minha expressão. —É meio tarde pra isso, huh?

Foda-se.

—Não é, não. Quer ouvir?

Como ela não diz nada, eu penso em sair. Mas ela está me encarando, então eu entro no escritório e fecho a porta.

Me sinto esquisita quando saio de lá, em direção ao meu quarto. Eu estou vermelha, e com o coração palpitando forte. Eu estou... tímida. Porque eu acabei de contar para minha mãe sobre um garoto, e muito mais que isso. Eu contei sobre Vivian. Não o que estamos fazendo agora —os poemas, as pessoas —mas, Vivian antes. Como ela ajudou Gwen. Como ela me ajudou. Como ela morreu. Como eu fui visitar a família, e então conheci Ian. E então nós "ficamos amigos", mesmo que na realidade tenha sido diferente. Eu não contei tudo, editando algumas partes. Principalmente porque é a minha história, é uma que apenas eu vivi e eu não quero libertá-la de mim por completo, porque eu sinto que ela ainda não acabou. E então minha mãe não disse nada, mesmo que tenha aquiescido várias vezes, como se dissesseentendi, entendi. Ela escutou. É suficiente. E eu sai.

Não me sinto uma merda.

É como se eu conseguisse respirar direito. Leve. Meus pulmões entram em um estado de felicidade que faz com que eu respire mais rápido e estou toda emocionada, mesmo que sozinha e que minha mãe não tenha feito nada de mais. São as pequenas coisas, digo à mim mesma. Um passo de cada vez, até o final.

No dia seguinte, Becker praticamente me arrasta para falar com o professor Fawkes depois da aula. Ela pega na manga do meu casaco e me obriga a acompanhá-la, ignorando meus protestos. Devo ter ficado irritante, porque ela me olha furiosa e diz: Não seja covarde.

Eu escuto o que ela diz. É bem conveniente estarmos na frente do professor Fawkes e do carro dele nessa hora, porque com minha bravura momentânea sou eu que abro a boca primeiro.

—Eu preciso falar com você sobre Vivian.

—Sim. —complementa Becker.

—O que que tem a Vivian? nunca percebi isso antes, mas ele a chama pelo nome. Como se fosse normal. Mas é claro que é normal, porque ele conhece ela, só eu não sabia disso. E a normalidade com que ele fala, deve achar que quero saber algo relacionado a escola. Ele sabe que eu fiquei meio enrolada na morte dela e minhas notas na matéria dele foram péssimas depois disso. —Você está aqui por causa das suas notas?

—Não, eu estou aqui pela Vivian. Por causa dos... poemas dela.

Não me pergunte, mas eu sei que ele sabe do que eu estou falando. Mesmo que esse ciclo que nos encontramos não tenha passado por ele ainda. Ele sabe, a expressão dele me diz tudo. É como se o rosto dele se iluminasse e escurecesse ao mesmo tempo. A claridade do conhecimento, por assim dizer.

—Poemas? Quais poemas?

—Para mim, foi Lady Lazarus, Sylvia Plath. Há também Anne Sexton, Mary Oliver... Há uma lista. Seu nome está em um deles. —Então, reconhecimento passa para choque. Mesmo que ele saiba dos poemas, não sabia que estava em um deles.

—O quê?

—Sim, depois de Helen Gluck. —Becker solta a bomba em cima dele.

Como vocês sabem sobre Helen? —o professor Fawkes diz, meio afetado. Não sei se ele quer fugir ou dar um tapa em nós duas. Não vou deixar ele fazer nenhum dos dois.

—Por causa dos poemas.

—Mas isso não é possível, eu...

Becker franze o cenho.

—Você o quê?

Ele abre a boca para falar, mas fecha rapidamente. Olha para nós como se fossemos fantasmas, e eu não entendo porque mesmo quando mencionei os poemas ele não ficou tão surpreso. O que ele sabe? Qual é a história dele?

—Você o quê? —eu repito as palavras de Becker. O professor Fawkes balança a cabeça, joga as chaves no bolso do casaco e aponta para dentro da escola.

—Me sigam. —murmura, e logo depois começa a caminhar. Vamos acompanhando um pouco atrás, curiosas e confusas. Penso em Vincent, e não deixo de me sentir culpada porque ele disse que queria estar junto para falar com Richard Fawkes. Ele vai ficar furioso, mas Becker está andando com uma confiança que me diz que isso não está errado. Vamos até a sala dele, que antes era a sala da Vivian, e ele senta na sua cadeira. Inclinando-se para frente, apoia os braços nos joelhos, juntando as mãos, como se estivesse rezando. Mas só nos olha, tentando descobrir a melhor maneira de começar.

—O que você sabe? —eu pergunto, levemente intimidada. Minha voz não é tão confiante.

—Eu sei de tudo.

—O que isso quer dizer? —pergunta Becker.

—Quer dizer que eu sei sobre os poemas. Só não sabia que eu estava em um deles ou que Helen estava, também.

—Como você sabe sobre os poemas se o seu nome só apareceu agora?

Ele fica em silêncio, com medo de responder, numa calma perigosa antes da tempestade. Eu me preparo para o pior, mesmo sem saber o que isso seja exatamente. O ar fica rarefeito.

—Por que, —ele diz. —eu ajudei ela a criar tudo.

E então nós paramos. Aquela montanha russa para, e me joga para frente mas não saio do lugar. Ele a ajudou? E nunca disse NADA? Como?

Mas que merda? —Becker exclama, acusadora. Eu sinto milhares de coisas ao mesmo tempo. Confusão. A claridade. A fúria, porque ele sabia de tudo e olhava para mim todos os dias sem dizer uma palavra. Todas aquelas vezes que eu perguntei sobre as poetisas. Todas as notas baixas, toda a pressão para eu ser uma versão diferente da que eu era com Vivian, quando eu só queria me proteger, e ele sabia? —Você sabia? Sobre os poemas? Então você também sabia que ela ia se matar?! —agora ela está incrédula, assim como eu. Ele balança a cabeça veemente. Deixamos espaço para ele falar, porque as palavras me fugiram e Becker ainda está tentando processar isso.

—Eu... nós... —ele pensa no que vai dizer. Decide-se. —Sentem-se, e se acalmem.

Não.

Becker arqueia uma sobrancelha.

—Eu não sabia que ela ia se matar. Como eu poderia? Ela era um furacão. Acho que você sabe disso... como você sabe sobre Helen? Sobre mim?

—Por causa dos outros nomes. Termine o que você ia dizer. —acho que ele considera me colocar na detenção ou algo assim, mas não estamos em aula. E nesse exato momento, ele não é mais meu professor, e sim um cara no meio de uma história, uma vida perdida. E ele pode engolir o orgulho e me responder, senão eu não saio daqui. Ele desiste.

—Ela me pediu ajuda, disse que era algo pro aniversário dela. É um esquema. Eu fiz a teoria, mas...

—Nós fizemos a prática.

—Exatamente. —Becker me encara, mas não entendo o seu olhar. Depois vira-se para ele e conta sobre todas as pessoas que conhecemos e o que aconteceu, o karaokê, a igreja, Cirque D'Haver. Sobre Ian, e a família dele, o livro dela, sem muitos detalhes, mas dá a visão completa. Posso quase enxergar as teias de pensamentos se formando no cérebro de Richard Fawkes. É tão estranho. Esse Richard Fawkes é o mesmo Richard Fawkes de Vivian e da história de Vincent. Becker conta sobre isso, também. Ela não conta sobre Helen. O que ela fez. Só que achamos o nome dela. Abruptamente, ele se levanta e vai até o quadro. Pega um pincel atômico e faz três círculos, como o diagrama de Venn, com todos os limites formando intersecções. Becker e eu trocamos olhares desconfiados. O que é isso?

—Esse é o grupo A, B, C. —ele categoriza os três círculos. —Na intersecção entre os três, ABC, há Vivian. Agora... quando ela me chamou, para fazer isso, tinha uma lista. Uma lista de pessoa. Não eram eu, ou Helen. Eram Victoria, Visia, Vincent, Diana, Jonah alguma-coisa, Ariel alguma-coisa.

—Seis. O suficiente para preencher as outras intersecções. —comenta Becker, maravilhada.

—Exatamente. Quem dessa lista permanece?

—Vincent, eu, padre Jonah, Ariel. Você conhece todos eles? —ele balança a cabeça.

—Só... a família.—Sei pelo que Vincent contou que tem mais assunto que isso, mas não pressiono.

—Você conhece o filho dela?

—Muito pouco. —ele me olha com uma mensagem que não consigo ler nos olhos. —Continuando, Ariel, Jonah, você disse Padre Jonah? —assentimos.

—Ele é bem maneiro pra um padre.

—Você é religiosa? —Richard Fawkes pergunta. Becker faz que não.

—Eu já vi filmes. —isso me faz rir, e o clima parece ficar mais leve. Como se isso não fosse um passo mais perto de uma execução, e sim algo bom, um caminho perto de acabar algo importante. Eu penso nas palavras de Ian, sobre toda essa loucura, e as palavras de Victoria e Visia. Então eu olho para Richard. Ele tem a idade de Vivian, mesmo que pareça novo. Inofensivo. Dessa vez, não vai doer. Porque você não está mais machucada. Eu relaxo.

Ele volta a escrever, preenchendo o nome de Ariel, padre Jonah, o meu —eu me sinto estranha com isso, pensando, wow, ele está escrevendo meu nome sem estar furioso comigo, e sim como uma pessoa normal, ou só como uma pessoa mesmo —depois Vincent, o nome dele —"R. F." —e, após uma pausa, o de Helen. Ouço Becker suspirar.

—Falta a senhorita Kowki. —eu digo. —E Ian...

—Ian é um dos nomes? —pergunta Becker, confusa. Meu rosto fica quente quando ela pergunta, porque a resposta é não, e vai parecer que eu estou automaticamente colocando ele nisso para que pareça importante, porque eu estou apaixonada. Mas eu apenas sei. Porque ele me deu meu poema. É isso que eu explico. —Faz sentido. —ela diz, e eu agradeço de coração, mentalmente.

—Quem é a senhorita Kowki? Como você soletra o nome?

—K-O-W-K-I. Ela cuida de um lugar perto de Nova York para pessoas com problemas. Qualquer tipo de problema. Vivian ficou lá por um tempo. —As sobrancelhas grossas dele sobem em surpresa, mas ele não diz nada, só escreve Kowki fora do diagrama, sem um círculo, porque todas as intersecções foram preenchidas. —Ian...

—...é o filho dela. Eu sei. —agora ele parece o professor Fawkes, irritado. Levanto as mãos em uma rendição frustrada.

—Ele não apareceu ainda, mas eu sei que ele está envolvido porque foi ele que me deu o poema. Então ela deve ter entregue à ele e por alguma razão.

—Vai ver ele só começou isso.

—Mas é como um círculo, começa e termina no mesmo lugar. E... a minha suposição é que você. Tenha. O nome. Dele. —digo pausadamente por nervosismo, esperando por sua reação. Ele considera, e uma coisa me vem a cabeça. Ela deu os poemas para todo mundo? Ou como Ian e eu, um passa cada nome para frente? Nunca tinha pensado nisso.

—Ela nunca me deu nada, mas... eu vou procurar.

—O que mais você sabe sobre isso? —Becker questiona. O professor Fawkes encolhe os ombros, como se não soubesse, mas depois de um segundo recomeça.

—O que vocês querem saber? —pergunta em retorno. Becker e eu nos entreolhamos. Ela balança a cabeça, sem conseguir pensar em nenhuma pergunta, então eu falo.

—Você sabe como isso acontecia? Tipo, ela deu um poema para cada um pessoalmente, ou mandou entregar...

—Como você descobriu isso? —Conto o que aconteceu na casa de Ian. Então eu lembro uma coisa. —Ele me viu com a carta dela e perguntou se ela tinha escrito um poema também. Então ela deu a ele um poema, em mãos. Ele disse que Vivian deixou uma carta para ele quando morreu.

—E os outros?

—A senhora Kowki não recebeu nada. Não exatamente. Quando eu fui procurar o livro que tinha, uh, uma "pista" para o próximo nome, descobri que os livros de Vivian tinham sido despachados para o lugar onde a senhora Kowki mora, e o que eu queria estava lá. Então só foi uma parada no caminho, mas útil. —Ele balança a cabeça. —Os outros eu não sei.

—Espere aí. —diz Becker. Ela pega o celular e disca um número. Presenciamos a cena sem entender, ela dá um oi animado e pula para nossa pergunta importante. Então eu entendo que a única pessoa possível é Ariel. Ela desliga rápido. —O poema apareceu na mesa do escritório da Ariel no dia em que Vivian morreu. Mas ela disse que no dia anterior saiu mais cedo, então Vivian poderia ter colocado ali ou mandado alguém entregar antes. Um momento. —Ela levanta um dedo, discando um número com a outra mão. Dessa vez a conversa demora mais, e ela diz "não" várias vezes, e revira os olhos. Padre Jonah. Como ela tem o número dele? Que estranho. —O padre Jonah recebeu o poema dele no dia em que ela morreu, também. A mesma história de Ariel. Estava na sua caixa de correio pela manhã. Ele só entendeu o que era depois, quando Ariel apareceu.

—Nada apareceu para mim no dia seguinte. —Rápido assim, ele parece desconfortável. Faz quase uma careta e está nervoso, mas fecha os olhos e fala rapidamente. —Ela me viu. No dia anterior. Parecia... bem. Ela foi na minha casa. —Meu coração aperta. Por que ninguém percebe uma coisa tão horrível mesmo ela estando na sua frente, no limite? É tão horrível ninguém conseguir perceber quão profundas são as emoções de uma pessoa. Eu tenho que respirar fundo para me concentrar novamente. —Pode ter deixado algo lá.

Eu não sei mais o que dizer. Nem Becker, nem Richard Fawkes, então o silêncio reina por um tempo, até ficar estranho. Becker fala.

—Temos que falar com Vincent. Todos nós. —Ela olha para Richard, que encolhe os ombros e assente. —Algo mais faltando? —ela soa cansada.

—Por que ela mudou de ideia? —olhares confusos em minha direção. —Por que tirar a Victoria e a Visia e colocar você e Helen? —Ele arfa em surpresa.

—O significado! —demora um tempo para eu me ajustar a animação dele. Ele não responde minha pergunta.

—Quer dizer... por que ela colocou os nomes lá?

—Sim... mas não. O que você quer dizer? —é a vez dele de parecer confuso.

—Todas essas pessoas, ela colocou por algum motivo. Porque tinha algo da vida dela que ela queria que nós soubéssemos. Tipo, os pais dela, os poemas dela, os amigos, toda aquela merda, oh, droga, desculpe, —o professor balança a cabeça —toda essa... confusão, coisas ruins, que ela guardou por tanto tempo. É isso que a gente percebeu. É isso que você quer dizer?

—Não. Mas isso... é interessante. Quando eu perguntei o porquê de todos aqueles nomes... ela me deu um palavra. —Ele se vira para o quadro, o diagrama com todos os nomes. —Mas tem mais nomes agora, e há mais palavras.

—Que palavras? —Como códigos? Explicações? Me sinto tão perto de uma conclusão que meu cérebro trabalha a mil, tentando interpretar cada informação que conseguir. Becker se aproxima do quadro e cruza os braços, fazendo sua própria análise. O cabelo ruivo dela está preso, e vai quase até o final das suas costas, e por causa das roupas —botas, jeans, um cardigã —ele parece uma adulta. Uma professora, também. O professor Fawkes pega o pincel atômico novamente.

—Se eu me lembro corretamente, Ariel era sucesso, Padre Jonah era a sua fé, você —ele aponta para mim —era o seu coração. Seus irmãos eram família, mas agora, com esses novos nomes... —caímos em silêncio, cada um tentando descobrir o que Vivian estava pensando. Não deixo de ficar triste, porque ela gastou tanto tempo fazendo isso para se despedir. A quanto tempo ela tinha isso planejado?

Ou talvez, minha esperança se pergunta. Foi mesmo para o aniversário. Talvez ela não tenha planejado isso como um adeus.

—Ela disse que todos esses representavam ela. Ela inteira. —comenta ele. Mais silêncio. Então a voz de Becker.

—Eu acho que Helen representa a sua dor. A culpa dela.

—As merdas. —ele diz, e eu quase arfo em surpresa. Wow.

—Sim. —concorda minha amiga. —Eu não acho que Vincent é a família. Mas também não sei o que é. A senhora Kowki pode ser a esperança. De tentar melhorar. Ian... Ian é o futuro. Ariel, sucesso, Helen, dor. Richard... —a voz de Becker, agora envergonhada, desaparece aos poucos.

—Eu sou o cérebro.

—Ha. —diz Becker, com um sorriso. Ele continua sério, então imediatamente sabemos que é verdade.

—Vincent é o presente.

—Isso... não faz sentido.

—Vincent pode representar a família e o presente também. Ela sempre disse que família era algo que nunca ia embora. Está sempre lá. As duas coisas podem ter o mesmo significado. —Engulo seco, pensando na minha própria família. Algo que nunca vai embora? Não sei se me sinto aliviada ou condenada. Becker murmura alguma coisa. Eles discutem como colocar todos os nomes no diagrama. Como há nomes demais, ele faz outro círculo grande do lado, e coloca todos os nomes em círculos menores rodeando o do centro, que tem o nome de VIvian. Parece o desenho de uma flor que Claire faz, às vezes. Simples. Então minha melhor amiga bombardeia-o com perguntas sobre o que exatamente Vivian disse, pensou, o objetivo. Ele fala coisas que eu já sabia, mesmo que nunca tenha reconhecido. Se ela estivesse viva, e isso fosse parte de algum projeto dela, então ela teria como controlar o que acontecia —quando cada um pegava os nomes, o que eles faziam depois disso —mas como ela está morta, e isso começou logo depois da morte dela (mesmo que eu só tenha começado um ano depois, por uma "falha técnica", os outros já tinham feito a sua parte), não há sentido em procurar a lógica em tudo isso. Quando uma pessoa morre, se torna um mistério. Tudo que ela fez, disse, criou. Como ela não está aqui, não há regras. Como nós sabemos se criar uma amizade com Ariel e Bobby estava nos planos de Vivian? Ou se ajudar Vincent a encontrar a família dele era o que ela queria desde quando colocou o nome dele? E a Helen? E o padre Jonah, e as suas palavras legais, a igreja. É isso que Richard Fawkes diz, basicamente. Não com as mesmas palavras, mas se resume em uma frase: A morte vai até um certo ponto, mas a vida —a nossa vida —começa depois disso, e só nossa vida escolhe o próximo rumo. Vivian só esperou pelo melhor. Nós só vivemos para alcançar essa sua esperança. Ela não planejou nada disso. Foram nossas vidas, as escolhas, as ações, as palavras para cada um, as interpretações diferentes. Foram esses fatores que nos trouxeram até aqui. —É por isso que ela tirou Visia e Victoria. Vincent já estava representando a mesma coisa que elas. Eu e Helen representamos coisas diferentes, que ela achou ser importante. —A julgar pelo tom de sua voz, perceber isso é como tirar um peso dos ombros. Ele era diferente de Helen ao olhos de Vivian. Deve ser um alívio saber disso. —Uma última coisa. Eu perguntei o porquê. O porquê dos nomes. —depois de outra de silêncio, ele volta a falar, com a voz embargada de uma emoção contida. —Pensando agora, eu estou honrado de ter participado disso. Mesmo porque ainda está acontecendo, estou honrado de participar.

—O que ela disse?

—Ela disse que se você colocasse todos esses nomes junto, todas essas peças de um quebra cabeça, era a única forma de... recriá-la. Se colocássemos todos juntos... o resultado seria... uma Vivian inteira.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

o que acharam? *se esconde* não me matem eu amo vocês