Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 18
Pessoas Reais


Notas iniciais do capítulo

oieeeeeeeeeeeee esse é quase meu preferido fksdjh espero que gostem



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Estou lendo novamente. Silêncio. No trem e em nós, —Ian e eu —e parece que somos as únicas pessoas aqui. Sei que não, mas com a porta da nossa cabine fechada, nos isolamos. Ele escuta música e eu leio. Ambos com as pernas apoiadas nos bancos uns dos outros, as pernas lado a lado. Ele fecha os olhos e pende a cabeça para cima, alheio ao que está acontecendo e sem perceber que eu o encaro. Não consigo evitar —é como se ele se tornasse mil vezes mais interessante. Ele colocou os fones por minha causa, percebo. Porque quando entramos, olhei para ele com aquela expressão perdida que eu uso às vezes, quando não sei o que fazer, esperando por uma resposta. Ele piscou. Pegou os fones. Sentou e começou a ouvir música. Apenas não sei se isso é uma coisa boa ou não.

Se ele não quer conversar comigo porque acha que não quero conversar ou se ele não quer conversar comigo porque não quer e ponto. Gostaria de poder ler a mente dele agora. Me sinto esquisita, tentando decifrar o que se passa por trás dos seus olhos fechados e na mente dele conforme uma música toca e ele canta baixinho. Arcade Fire. Consigo ouvir a música saindo dos fones e da boca dele. É engraçado, porque nunca passei por isso com meus pais mesmo que eu fale até menos com eles e não faça a menor ideia do que se passa dentro daquelas mentes. E agora eu estou aqui, frustrada. Me sentindo um pouco culpada e irritada ao mesmo, e então me pergunto como isso foi acontecer?

É dez horas da manhã. Talvez meu cérebro não tenha acordado ainda, ou eu esteja nervosa demais para raciocinar com lógica. Volto meus olhos para o livro, mas não consigo me concentrar. Qual é o meu problema?

Fale com ele!

É Vivian falando. Ela aparece nas piores horas. Muito obrigada, cérebro.

—Ian?

Nada.

Talvez não tenha me escutado.

—Ian? —nem se mexe, e minha coragem vai embora. Sei que se eu quisesse, poderia chamar a atenção dele, mas não sei o que quero fazer. Sobre o que conversar nem nada assim. Percebo que não estou apenas nervosa, mas tímida. E é como se eu fosse o incomodar, então guardo minha voz e volto para o meu livro.

Um segundo depois, ouço sua voz.

—O quê?

Então olho para ele, surpresa e afetada.

—Pensei que não tinha me escutado. —ele encolhe os ombros, constrangido.

—Eu ouvi.

Então por que não me disse nada?

Só fico olhando para ele.

—O que foi?

Balanço a cabeça, porque nada me vem a cabeça. Nada que eu possa comunicar, de qualquer forma. O que eu falo e o que eu penso são coisas completamente diferentes. O que eu estou pensando realmente é por que você está agindo desse jeito? e eu nunca poderia arranjar coragem de perguntar isso, parte porque estou com medo da resposta.

Porque eu não gosto de você e estou aqui por educação, ele pode dizer. Ou repetir todas aquelas coisas que me disse quando estava furioso, nas duas vezes. Não quero ouvir isso porque é cansativo. Brigas, culpa e tudo fica bem novamente. Aos poucos, tudo isso se acumula. Não quero que aconteça dessa forma. O que quer que aconteça.

Mas ele me pressiona. Não fala nada, mas ergue uma sobrancelha com a expressão séria e é como se houvessem milhares de microfones apontados em minha direção. Ensaio na minha mente algumas vezes antes de dizer certas palavras.

—Queria poder saber o que você está pensando.

—Você não pode.

—Disso eu sei.

—Não, você não pode porque eu não estou pensando em nada.

Isso é impossível, é claro. Todo mundo está pensando em alguma coisa, toda hora.

Faço que sim, desviando o olhar. Olho para a janela e a paisagem que corre rápido. Prédios e pessoas. Ruas ao longe, carros. Árvores. O trem se move algumas vezes, mas nada que pareça que estamos indo bem rápido, nos movendo de um lugar para o outro. Daqui, as pessoas não parecem com pressa, talvez porque estamos indo mais rápido do que elas estão indo para algum lugar. Mas não estou com pressa, diferente delas. Todo mundo na cidade está com pressa. Parecendo séria. Talvez desejando estar aqui, onde nós estamos.

Não tem muitas pessoas no trem. No máximo dez. Sterling Lake não é o lugar mais legal do mundo, ao que parece.

Senhores passageiros, nossa viagem termina em quinze minutos, uma voz fala. Seguro minha mochila, mas sem desespero. Eu sempre tive essa paranoia em aeroportos ou em qualquer lugar que requira um pouco mais de atenção em caso de roubos pequenos e etc. As pessoas perdem as coisas o tempo todo, mas hoje não. E se alguém quiser minhas roupas, não farão muita falta. Só meu livro, mas sempre levo na mão. Mais para ter algo para fazer com as mãos do que por segurança. É como se fosse um escudo, uma pessoa a mais do meu lado, espantando os outros. Tem Ian, mas...

Nos preparamos para sair. Um tempo depois, quando saímos do trem, ele se vira na minha direção e me diz,

—Você não tem que fingir que gosta de mim.

Sua voz é fria e calculada. Minha mão vai para o meu coração, automaticamente, acho que para me proteger do frio vindo dele ou impedir que um nó se forme. Não adianta. Começo a cair da montanha russa lentamente, uma forma de tortura para mim mesma.

—Eu gosto de você. Não daquele jeito, mas você é... legal.

—Por favor.

Ian volta a andar, evitando meu olhar. Seu rosto selvagem parece um livro aberto cujas palavras não consigo ler. Algo que não consigo identificar, fazendo-me paralisar e encarar enquanto ele continua andando, distanciando-se.

—Eu estou irritada com você. Só isso. —consigo murmurar quando chego mais perto dele. A saída da estação está há alguns metros, ficando cada vez mais perto. Minha mochila pesa.

—Não dê desculpas por mim. —ele faz uma careta. —Não crie expectativas. Eu não sou tão legal assim.

—De onde isso surgiu?! —ele é tão complicado. Minha cabeça gira como um parafuso agora e é como se alguém me jogasse do lado errado de uma balança e eu perco o equilíbrio. Com os meus saltos, não consigo andar na velocidade dele, então ele sempre fica alguns passos na minha frente.

Eu não vou correr atrás dele. Não desse jeito.

Paro no lugar. Cruzo os braços até ele perceber que eu não estou atrás dele. Deixo meu rosto o mais impassível possível, porque agora eu estou mesmo irritada mas não posso deixar que ele veja, senão estraga as palavras que pretendo dizer em seguida. Ele fecha os olhos, dizendo não acredito que ela está fazendo isso, então vem em minha direção. Junto todas as partes de mim que são corajosas e aqueles restos que se mostram confiantes nas horas que eu preciso. Apesar de eles serem partes da Diana-Ela, uso com a maior sinceridade.

—Eu vi os seus remédios. Na sua casa. Eu não acho você um babaca... na maior parte do tempo.

—Eu não quero que você sinta pena de mim.

Por que não?

Eu não entendo quando alguém fala isso. Em livros e em filmes. Honestamente, eu adoraria se alguém sentisse pena de mim. Sentisse compaixão por mim e se importasse com o que eu estou sentindo. Isso não acontece todo dia, e eu sei que em parte é porque as pessoas não veem o que eu estou realmente sentindo, mas quantas vezes eu imaginei alguém olhando para mim e dizendo pobre Diana. Eu sei que o seu coração está fraco, deixe que eu dê um abraço em você e eu prometo que tudo vai dar certo. Vou estar sempre aqui pra te ajudar.

Eu sei. Eu sei que devo parecer manhosa e mimada e centrada em mim mesma, porque todo mundo está passando por tempos difíceis, mas...

e quanto a mim? Eu também quero ajuda. E aqui está Ian, e aqui estou eu, mostrando que eu me importo com ele e sei quão frágeis as coisas parecessem ser, e ele rejeita meus sentimentos. E não é algo tão difícil de aceitar, como amor ou ódio, é simplesmente pena. Compaixão. É praticamente a mesma coisa, e estou oferecendo ambas. E sei que ele não é de ferro e precisa disso tanto quanto eu.

—Bem, eu quero. Tenha pena de mim, Ian. Minhas únicas amigas são Becker e a minha irmã. Seja meu amigo. Eu acho você um babaca, sim, mas eu não me importo.

—Você só está dizendo isso porque quer saber mais sobre a minha mãe.

—É isso que você pensa? —não foi uma pergunta muito inteligente, eu admito. Ele faz uma cara de é óbvio. Está na minha frente agora, e ficamos nos encarando com fulgor. Não o tipo de fulgor que gera desejo, o tipo mais comum. Um fulgor que queima tão intensamente que me faz querer gritar, com Becker, naquele campo antes do karaokê novamente. E dessa vez, muito mais alto. —Eu posso saber coisas sobre a sua mãe sem falar com você.

—Então você não acha que eu me pareço com ela? Que eu falo como ela?

As palavras me atingem como um raio e eu não sei o que dizer, porque o que ele está falando é verdade. Meu coração sabe, mas meu cérebro se recusa a processar a informação porque não quer admitir que ele tem razão. O seu rosto me mostra que ele sabe que ganhou a briga, mas tenho uma última carta na manga. No estupor do momento, o ápice da minha irritação e angústia causado por todas as palavras idiotas que ele pronunciou até aqui, eu prendo a respiração ao mesmo tempo que a solto em forma de palavras.

Sua mãe era apaixonada por um padre.

As reações dele são diferentes e exatamente iguais as que eu imaginava. Já me acostumei com o rosto dele e o modo como transparece as reações cruas. Isso eu consigo ler nas linhas de expressão —a surpresa, choque e aquela traição irracional que eu também já senti nessa corrida maluca.

Ian dá um passo para trás.

O quê? —vocifera.

—Eu posso saber coisas sobre a sua mãe sem falar com você. —repito, para provar meu argumento. Não faz diferença. Ele ainda está se recuperando, e por um segundo acho que está a ponto de chorar, mas a rachadura no seu coração se torna ódio em menos de um segundo, consumindo-o por inteiro. Eu espero pelas palavras duras e verdades dele que podem sair de sua boca, mas ele apenas se vira. Fico esperando. Depois de trinta segundos, ele está de volta a me encarar, e quando abre a boca para falar mais alguma coisa, o rosto cheio de uma raiva perceptível até na íris dos seus olhos, ouvimos uma voz.

—Vocês dois estão brigando? Eu deveria apartar? Ela recusou seu pedido de casamento?

Nos viramos para a direção da voz, claro. Nós dois. E é apenas nessa hora que eu percebo como Ian estava —está —perto. Não apenas o rosto, mas o corpo também. Damos um passo em direções opostas e parece que assim conseguimos respirar novamente. Com a volta da clareza, chega a percepção: na minha frente, uma mulher parecida com Vivian de no máximo trinta anos sorri para nós, parecendo bem mais jovem. O cabelo dela é definitivamente loiro, não como o de Vivian que era quase-loiro e o sorriso é brilhante. Pura energia.

Parte meu coração para enchê-lo de luz. nessa mesma ordem.

Ian revira os olhos.

—Oi, tia Visia.

—Venha me dar um beijo, Dorian Winter. —responde ela, doce e o acolhendo em um abraço. Pisca para mim pelas costas dele. Depois, vem me dar um abraço e beija minha bochecha. Me pergunto se ela pisca para Ian nas minhas costas também. Ela tem cheiro de morango.

Quando se afasta, olha para nós, alternadamente.

—Vocês estavam brigando né? Tudo bem. Meu irmão sempre diz que isso acaba ou em sexo ou em casamento. Ou os dois. Às vezes divórcio, também.

—Inconveniente. —comenta Ian, sem se deixar abalar. Ao contrário de mim que fico mais vermelha possível. Tão constrangedor.

—Eu não terminei de falar! —por mais ou menos três segundos, ela parece brava. Tem as feições parecidas com a de Ian, que deixam a mostra as emoções. Mas volta ao normal logo depois. Sorri. —O que eu ia dizer é que mesmo que brigar seja muito bom para os nossos hormônios de adolescente, —ela faz uma expressão estranha e uns movimentos com a mão para dar ênfase ao que está falando— é melhor vocês pararem com isso se não quiserem um interrogatório da Vic. Ela está no modo super-mãe hoje.

—Quem quebrou alguma parte do corpo?

—Yoshi. E ele só torceu o pescoço porque a TV do quarto das meninas caiu em cima dele.

Começamos a andar. Me sinto um pouco deslocada mas continuo quieta, observando a dinâmica dos dois, maravilhada. Parecem uma família de verdade. O humor de Ian mudou completamente.

—Como isso aconteceu?

—Ele estava brigando com o Yuri para ver quem ia jogar GTA primeiro e acabou que ele puxou um cabo que não devia. —ela revira os olhos e balança a cabeça. Seu cabelo dourado balança também. Ela se vira para mim antes que Ian possa responder.

—Qual é o seu nome,dorogoy?

O que ela acabou de falar?

Diana.

—Hmmm. —ela faz um biquinho. —Me lembra Lady Di. Eu chorei no funeral no funeral dela, sabe?

Fora da estação, percebo que o outro lado da rua é coberto por árvores. O tipo mais profundo de verde que possa existir. Vai até eu perder a rua de vista. As pessoas conversam do lado de fora da estação e nós seguimos até o carro, estacionado na rua, logo a nossa frente. Entramos.

—Qual é o seu nome, mesmo? —lembro que Ian mencionou, mas eu já esqueci.

Ela liga o carro. Ian entra no banco do passageiro, e quando vai colocar o cinto, olha para mim. Por uns cinco segundos, depois vira-se para frente. Ótimo, é tudo que consigo pensar.

—Visia.

—Nome bonito.

—Obrigada. Eu ganhei de aniversário.

Ela sorri para mim. Eu sorrio para ela.

Posso ver que Ian está bem mais relaxado agora e quero falar com ele, mas não sei o que ele vai fazer, nem quero arruinar a expressão contente pintada no seu corpo inteiro, no modo como se porta. Então eu fico quieta. Do meu lado, no banco, eu acho milhares de potinhos de plástico, aqueles de cozinha. A mãe da Becker tem vários, mas não na quantidade dos que eu conto aqui. Vinte.

—Então... como vocês se conheceram?

Repito a palavra de Ian, mais cedo: inconveniente.

Nenhum de nós abre a boca, e começa a ficar esquisito. Ela olha para ele, depois para mim pelo espelho do carro.

—Estou falando sério. Larguem essa pose ou a Vic vai dar o maior sermão pra vocês. Você SABE disso. —ela aponta para Ian.

—Ela não é minha namorada, então achei que não ia ter que responder o questionário.

—Ah, deixa de ser otário! —Visia explode. —A última vez que você trouxe uma garota pra casa foi A Vadia. —Ela fala assim mesmo: com as letras maiúsculas. De repente, quero saber quem é A Vadia. Para ter nome próprio, deve ser alguém importante. Pelos bons e maus motivos. —E ela nem era de longe. Era praticamente na esquina da nossa casa.

—Cala a boca.

—Nos conhecemos por causa da Vivian. —intervenho, procurando por um pouco de paz.

—História boa para contar, suponho.

—Não. —comenta Ian, mas ele me dá um olhar de gratidão, ou talvez esperando que eu continue inventando.

—Eu estava procurando umas anotações que ela fez em uma das minhas provas do semestre e apareci na casa dela.

—Isso foi antes ou depois?

Tem uma pergunta não-dita no final, mas ninguém ousa dizê-la em voz alta nem reconhecê-la. Está jogado naquele mesmo canto escuro da mente de cada um de nós.

—Depois.

Minha voz falha.

Olho pela janela.

—Tudo bem. Podemos lidar com isso.

Ninguém comunica mais nenhuma palavra. A medida que ela vai entrando nas ruas, as casas se tornam gradativamente menos chiques e com o aspecto de interior. Não como em St. Mara. Diferente. Só não consigo explicar como. A estrada é de chão e as casas são extensas, mas não altas. E não tão bem cuidadas, mas devem custar bastante. A área é boa. Nunca vim para esse lado de Nova York, acho. Não venho muito para Nova York para falar a verdade.

—Como está o AA?

AA?

Ela está olhando para Ian. Ele responde tranquilamente.

Estou indo semana que vem.

—Uh-uh. —Visia não parece ter muita fé no que ele diz. —Vic me contou.

Contou o quê? quero perguntar. Quero saber sobre coisas. Qualquer coisa, me sentir conectada novamente. Mas a história dessa família é bem mais vasta do que eu devo imaginar. Pelos meus cálculos, são três irmãos, sem contar Vivian. Ela nunca mencionou a família nas nossas conversas, apenas uma vez ou outra, mas nunca se aprofundando, mergulhando no passado e no presente deles. A família Winter é um mistério.

—A Vic deve ter contado para todo mundo, então não estou surpreso.

—Você me prometeu, Ian. Prometeu que ia parar. Eu não quero você...

—Por favor, Tia Vi. —ele é mais quieto agora, discreto, tentando esconder a conversa de mim. Eu não culpo ele —sou uma estranha me metendo nos assuntos pessoais dele — mas admito que estou curiosa. AA significa Alcoólicos Anônimos, até onde eu saiba, então...

Ian deve beber bastante.

Ou devia. Lembro do que Eric falou sobre Ian quase entrar em coma alcoólico quando bebe, e ele aparecer bêbado na minha casa. Não lembro só dos fatos, mas do que eu senti —raiva, compaixão —e o que ele me mostrou naqueles momentos em que a razão não controlava seus atos. Ian é tão triste. Eu sei disso. Não há mais suposições e ele é uma exceção à regra dos Winter, porque não é um mistério para mim. Não nas coisas que importam. Ian é tristeza e escuridão, mas não como acontece em livros, onde uma pessoa assim se torna um Bad Boy para esconder seu coração e afastar todo mundo. Ele afasta as pessoas de certo modo, mas é diferente.

De algum modo, por razões que vão além da minha capacidade de compreender coisas importantes nesse momento, ele é luz, também. Ele é bom. Culpado, mas bom. Furioso, mas bom. Um idiota, mas bom. Como isso pode colidir e criar uma pessoa tão complicada? Talvez essa seja a resposta. E mesmo que eu sinta tanta raiva por ele —mais do que eu já senti por qualquer um —e em certos momentos específicos, chego a conclusão de não o odeio nem um pouco. Nem para tentar me proteger dos espinhos que ele lança para se proteger.

Eu tenho que falar com ele. É uma urgência que beira ao ridículo da ansiedade.

Mas ainda estamos no carro, e eu ainda estou ouvindo a conversa deles. Visia começa a falar sobre voltar para o Egito e continuar a rota da África e depois voltar para casa e se casar com um tal de Asif (nomes estranhos por toda parte). Ian balança a cabeça e revira os olhos, replicando que ela deveria casar com ele de uma vez. Visia então me explica que Asif pediu ela em casamento três vezes e só na última ela aceitou, mas quando a oportunidade chegou (ela é fotógrafa de guerra) foi para o Egito fotografar uma rebelião que estava acontecendo por causa da caça de camelos de uns "cretinos britânicos metidinhos a besta". Ela acabou conhecendo um grupo que viaja pela África e concordou em levá-la para o coração das guerras civis que aconteciam por lá. Ian então diz que "ela deveria casar antes de ser morta por algum terrorista africano" e ela para o carro. Sério mesmo, ela para o carro. No meio da rua. Nossa sorte é que há três carros na estrada e todos eles ultrapassam sem reclamações. Eu congelo, sem saber o que esperar. Ela é como Vivian só que com um pouco mais de energia e vinte anos mais nova. Imprevisível. Olha para Ian e ele encara de volta, assustado mas com a expressão séria. Absortos na própria bolha. Nenhum deles diz nada por um tempão, até que Visia balança a cabeça lentamente, depois frenética e com a alma em frangalhos vazando pelos seus poros. O ar é tenso. É difícil respirar e olhar em outra direção.

—Não diga isso.

—Tudo bem. Me desculpe.

Nunca mais.

—Eu prometo. —então ele repete. —Eu prometo, tia Vi. Sério.

Visia Winter é assustadora. Não assustadora porque pode te machucar.

Ela é assustadora porque ela é real demais, e não tenta esconder isso, então você não sabe que caminho ela vai escolher. Ela é assustadora porque é autêntica e ela é autêntica porque conta a verdade sobre o que ela sente em tudo que ela faz —suas palavras, seus olhares, ações. Eu diria que o resto de nós vive em um mundo de falsos, mas não é essa a questão. O antônimo de autenticidade não é falsidade. É omissão.

A gente só esconde tudo em nós que ela expõe nela.

Ela nem se importa que eu esteja aqui para testemunhar isso.

Aos poucos, ela se recompõe. Visia olha para mim e sorri, mas é um sorriso triste, como se dissesse, bem, eu posso morrer mesmo, não é?

Só que não abre a boca, e apenas volta a dirigir. Meu olhar encontra com o de Ian, no espelhinho. Sua expressão não muda mas percebo a mudança. Ele está meio abalado. Eu estou meio abalada, também. Acho que Visia amava Vivian e a ideia de morrer não lhe caiu bem.

Pensando bem, não cai bem em ninguém.

Finalmente, chegamos. É uma casa grande, afastada por um jardim enorme que mais parece um quintal. A grama é cortada rala e há brinquedos jogados por ali. Uma cerca de madeira branca separa o limite da casa a rua de brita. Tiro minha mochila e olho com atenção até perceber que a casa é na verdade duas, uma atrás da outra. Afastadas minimamente. As paredes brancas estão manchadas por terra.

Saindo do nada, um menino começa e gritar em correr em nossa direção, urrando hinos de guerra.

—YURI É SÓ O IAN, NÃO O PÔNEI DAS TREVAS.

—TEM UMA MENINA ALI TAMBÉM! —contra-ataca Yuri.

—ELA É A PRINCESA DO NORTE, NÃO A BRUXA DO OESTE. ISSO NÃO É GTA E VOCÊ NÃO, —O menino finalmente nos alcança, mas Visia segura ele antes que se aproxime. Ele continua tentando passar por ela, mas ela segura seus braços com força. —NÃO PODE MACHUCAR AS PESSOAS QUE NÃO CONHECE.

—Mas elas podem roubar meu carro ou me tentar atirar em mim.

—Você não tem carro. —explica Ian. Yuri se vira para ele, franzindo a testa e parecendo bravo. Começa a fazer várias tentativas de tentar sair dos braços de Visia mas é praticamente impossível. Ele corre para lugar algum.

—Se acalme... eu disse se acalme, Yuri!

—OUÇA SUA TIA! —Uma voz feminina vem lá de dentro. Imediatamente, Yuri para de se mexer e joga o peso contra Visia, fazendo com que ela o apoie para ficar de pé. Visia revira os olhos e pega ele no colo. Dessa forma, Yuri parece ter seis anos, principalmente com o pijama que cobre o corpo todo, com desenhos de navios e piratas. Visia —apesar da personalidade exuberante —parece muito bem uma mãe. Ela abre a cerca para nós e eu seguro mais forte minha mochila, nervosa por estar conhecendo pessoas novas. Me sinto em território inimigo. A casa é bonita por dentro. Escura e aconchegante. Tapetes por toda parte e uma tevê enorme na sala, no canal da Disney.

Uma mulher aparece na nossa frente. É outra irmã Winter, tenho certeza. A presença delas é automática para mim. O cabelo é cacheado, loiro e rebelde, mas ela prende em um rabo-de-cavalo e as linhas de expressão mostram que é mais velha que Visia. Mas provavelmente, mais nova que Vivian.

Ela usa óculos de Harry Potter.

Diferentes dos do padre Jonah, mas é redondo do mesmo jeito. Eu sorrio, me sentindo meio zonza. Ela abre os braços e eu acho que ela vai puxar Ian para um abraço, mas ao invés disso vem em minha direção.

Me aperta.

Bastante.

—É um prazer conhecê-la. Estivemos esperando por você. Qual seu nome, querida?

—Diana.

—Victoria. Me chame de Vic. —Victoria tem um sotaque esquisito. Não sei de onde. Então, ela bota os olhos em Ian e a expressão endurece. —Ian Kent Winter, prepare-se para enfrentar a minha fúria.

—Também te amo, tia Vic.

Você ficou maluco? Aquela merda do AA não conseguiu te endurecer? Eu juro por Deus que se você continuar com essa merda eu vou te trancafiar no seu quarto e você só vai sair quando estiver na idade de mijar na fralda, garoto. —ela dá um tapa na cabeça dele. Ian se encolhe e geme de dor. Ela sai andando em direção a cozinha. —E que isso sirva de lição, tá me ouvindo? Se não fosse pela Diana aqui, você ia estar seriamente fodido, homem.

O que eu fiz? Ele me olha, espantando.

Me sinto no holofote. Super confusa.

—O-o que eu fiz? —pergunto baixinho. Apenas Visia me escuta.

—Você salvou a vida dele naquela noite, e estamos todos gratos.

Do que ela está falando? Meu primeiro pensamento é a boate. Aquela noite. Nosso beijo. Mas não pode ser. Tenho quase certeza de que são coisas completamente diferentes. Algo não está se encaixando na minha mente, mas não sei o que é.

Mesmo com meu olhar confuso, ninguém me explica. Victoria volta a sala. Ian parece sob tortura.

—Não precisamos falar disso agora, por favor. Eu acabei de chegar.

Não foi assim que a sua mãe te criou. —diz ela, ignorando o último comentário dele. Ian bufa.

—Ela não me criou então...

—CORTE O DRAMA, WINTER. —grita Visia, indo até a cozinha. Na porta de um dos quartos, uma garotinha aparece, quietamente. Ela apenas olha para mim, reconhecendo minha presença e então encara os outros. Victoria parece ultrajada.

—CORTE A PORRA DO DRAMA, WINTER.

—PORRA É FEIO! —Grita Yuri, de algum lugar. O que está acontecendo aqui? E quando isso aqui virou uma zona de guerra e caos? De repente, imagino que é assim que deve ser ver os fogos de artifício explodirem no mesmo nível de altura. Todo aquele barulho e explosões por toda parte. Cores se transformando em milhares de estrelinhas. Me pergunto se é assim a vida na família Winter, uma imprevisão e inconveniência, palavrões toda hora.

—Sim, querido, porra é feio por isso não me repita. —contrapõe Victoria.

Você é tão idiota, às vezes. —frustra-se Visia. Ela vai até o sofá e abre uma cerveja, assistindo Cinderela.

—Mãe! —uma menina chama. Provavelmente a garotinha que vi na porta do quarto. Minha suposição se prova correta quando ela sai do quarto e vai até Vic.

—O que foi, amor?

—Estou com fome.

—O almoço já vai ficar pronto, eu prometo.

—Quando o papai vai chegar?

—Tarde, Lena. Tarde. —Vic parece cansada, mas faz carinho nos cabelos escuros da filha.

—Quando o Yasha vem pra casa?

—Vamos fazer assim, porque você não chama Zoya e vocês duas vão até a casa da tia Visia ver se o Yasha não está lá... hm.... conversando com o vovô?

Lena assente, na mesma hora que Ian explode. Internamente.

—Vocês chamaram o vovô?

Pela primeira vez desde que chegamos, Victoria parece normal. Mais parecida com um ser humano e menos com uma estrela ou um fogo de artifício, calma. Remorso é evidente na sua expressão. Já Ian parece um cachorrinho perdido. O avô dele é uma má pessoa? E eu salvei Ian? E as pessoas dessa casa tem nomes estranhos? E eu

não entendo

mais nada.

Fico de pé ali, de braços cruzados, esperando que alguém me note e me salve dessa pequena avalanche.

—EU ODEIO VOCÊS DUAS. —Grita Ian.

—A gente não teve escolha, Ian! Ele disse que queria ficar em casa esse final de semana e o pessoal do asilo deixou. O que eu posso fazer?

—Esse cara é um terrorista mental, tia Vic.

—Uh...

É a minha voz. Não escolhi falar, mas é a minha voz e agora ele olham para mim.

—O que você precisa, querida?

—Onde eu coloco as minhas coisas?

Ótima pergunta.

—Claro, claro. —Vic balança a cabeça. —Ian, mostre o quarto de hóspedes para ela. Tudo bem se você dormir no quarto do Yasha? —ela pergunta com delicadeza, afeto. É a primeira vez que se dirige à Ian dessa forma, talvez para não deixá-lo mais bravo ainda por qualquer que seja o motivo.

—Tanto faz. —ele vira-se abruptamente e entra em um corredor. Faz um sinal para que eu o siga. Para em uma porta e a abre, descobrindo um quarto que vai ser meu por uma noite. Eu entro e ele fica parado na porta, respirando fundo.

—Ian...

—Não —pausa —não fale comigo agora. Se você não quer ouvir coisas.

—O que é AA?

—Você não sabe o que é a porra de um AA?!

Por que TODO MUNDO nessa casa SOA COMO VIVIAN?

Estão me deixando louca.

—Só quero ter certeza.

—É exatamente o que você está pensando. —responde ele, ríspido.

Algo aparece na minha mente.

—Elas disseram que eu salvei sua vida porque eu te levei pra casa quando você estava bêbado.

Não é uma pergunta, é uma afirmação. Tão triste e tão verdadeira e ele sabe disso. Observo sua linguagem corporal, que me fala mais do que ele realmente diz. Seu corpo está encolhendo, inconscientemente fazendo seu caminho até a porta, querendo se proteger. De mim. Eu não sei as exatas palavras que eu posso dizer, não sei quais são as minhas intenções ou se isso é certo ou errado, —palavras já estragaram vidas —no entanto eu tenho um desejo em mim de falar. Talvez conversar. Com Ian. Saber mais. Não agora, mas preciso garantir que isso aconteça num futuro próximo. Preciso lhe dizer alguma coisa.

—Eu sei que você provavelmente me odeia, e eu respeito isso. Mas tem uma hora que isso fica demais, não fica? Isso? —faço um movimento com a mão, indicando a casa inteira, depois aponto para meu próprio coração. —Isso também. —o rosto dele fica impecavelmente vazio, mas eu vejo galáxias de emoções e segredos e estrelas sendo escritas no silêncio do seu rosto. E eu consigo identificar as constelações. Ele sabe do que eu estou falando. —Você não tem que falar pra mim. Essas coisas, elas falam por si mesmas. Não posso... sabe... forçar você a falar quando eu não falo. Está tudo certo. Só não deixe essas coisas que você não fala pra ninguém entrarem no seu coração, sabe? Nem tudo é verdade, só que quando você não fala sobre isso não tem como saber. E... as pessoas não podem adivinhar. Que você está triste ou depressivo ou ansioso ou se sentindo mal. E a pior parte é que eu sei que você quer que alguém perceba. Mas elas não veem você como você vê você. Então... eu não sei bem o que eu estou dizendo, uh... talvez seja só isso. Eu... acho que é só isso. Então. É isso. Sim. Uh.

Estou vermelha. Meu rosto está em chamas, mas eu seguro seu olhar, esperando por uma resposta a algo que não existe, porque eu não fiz uma pergunta que possa ser respondida. Os olhos dele são verdes, na luz da lâmpada. Nunca tinha percebido isso. Esse é Ian Winter. Filho de alguém que eu queria ser e que acaba sendo igual a mim.

Cometas.

—ALMOÇO NA MESA! —nós dois damos um pulo de susto com a voz de Vic. —IAN WINTER VOCÊ JÁ DEVERIA ESTAR FORA DESSE QUARTO. —nos apressamos para fora. Meu estômago ronca, mais por nervosismo do que por fome. Imagino isso: um experiência de vida com os Winters. Agora, imagine minha ansiedade. A mesa da cozinha é grande, e cheia de pessoas. É enorme, então tem lugar para Ian e eu.

—Diana, esse é meu filho Yasha. —Vic, que está ocupada colocando comida em um prato para uma menina de cabelos negros que eu acho que se chama Zoya, gesticula com a cabeça para a direção de um garoto, no máximo dezesseis anos que olha com olhos mortos, odiando estar ali. Acho que ele está chapado. Acena uma vez para mim e volta a comer. —Ele é idiota assim na maior parte do tempo, mas é um garoto ótimo.

—É isso que o vovô diz sobre o Ian.

—Vá se foder, babaca. —replica Ian, me estendendo um prato. Olho com gratidão para ele, mas ele está concentrado em olhar com raiva para Yasha. —Você tá chapado.

—FODER É FEIO! —Yuri, no canto da mesa, exclama. Vic suspira e entrega o prato para Zoya, então segura as bochechas de Yuri.

—Isso mesmo, Yuri, foder é feio, por isso você não pode repetir. E você —Aponta para Ian —vai calar a boca.

É um comando. Ian fica quieto depois disso. O tom autoritário de Vic congela até os meus ossos, mas não é frio como o tom que os meus pais usam. É... meio normal. É o suficiente para fazê-los respeitarem suas ordens mas sem que tenham medo.

—Continuando, as meninas são Lena e Zoya. Yoshi é o do meio, —ela aponta para um garoto com espuma envolta do pescoço. Me lembra Ariel, depois da queda no karaokê. Ele tem cachos e olhos grandes. Bochechas também. Acena. Sorrio. —e Yasha é o mais velho. —ela olha dura para Yasha, e eles começam outra briga sobre o cheiro de maconha nele. Aparentemente, ele foge com os amigos para a casa da tia Visia (que é atrás da casa de Vic) para fumar com o avô, que diz que maconha é medicinal. Então ela começa a brigar com Ian porque ele bebeu, depois ela briga comigo porque estou magra demais e coloca mais pedaços de carne no meu prato. Mas eu não ligo. Eu gosto dela, mesmo com seu jeito rígido. Ela é uma Winter, sem dúvida. Me pergunto se Visia não vem, e onde o avô-terrorista está. Provavelmente mantendo distância de Ian, por alguma razão. Quero saber sobre isso também. Quero saber sobre tudo. Conforme a conversa se desenrola na mesa, e todo mundo fala alguma coisa ao mesmo tempo, eu tenho um tempo para respirar, mas minha mente vai de um assunto ao outro seguindo uma voz a outra. Tenho tempo de cruzar olhares com Ian, e perguntar alguma coisa indefinida com meus olhos.

Ele responde com um aceno, dizendo está tudo bem. E um olhar que adiciona, trégua.

Então por enquanto, está tudo bem. Ele começa a conversar com Yasha, como amigos, esquecendo da briguinha de segundos antes. Eu fico quieta e parece uma cena de filme, onde a câmera se distância e você vê todas essas pessoas conversando e a beleza do momento é explícita e existem todos esses cometas que eu nunca vi antes, chocando-se, como uma chuva de cometas.

Vivian me disse uma vez que o mundo é bem pequeninho e eu vou adicionar adjetivos a essa descrição, enquanto a cena de filme ainda está acontecendo. O mundo é pequeninho e maravilhoso e lindo e o paraíso desde que existam pessoas exatamente assim vivendo nele.

Não personagens dos livros que eu leio, ou pessoas das minhas fantasias, das minhas ideias romantizadas que vivem na minha cabeça, cenários que não vão acontecer.

Não.

Exatamente assim.

Reais.


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Notas finais do capítulo

e então???? o próximo capítulo vai ser legal legal legal esperem pra ver e o próximo depois desse melhor ainda