Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 15
Desejos


Notas iniciais do capítulo

eu espero muito muito muito que vocês gostem



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Quando Vivian morreu, a escola se tornou em um grande funeral que durou um mês. A psicóloga da escola nunca ficou tão ocupada durante aquele período. Haviam pessoas chorando em todos lugares e conversas sobre Vivian. Em todos os lugares. O diretor da escola —um antigo advogado que largou a carreira para cuidar de adolescentes —ficou meio abalado, talvez mais do que a maioria. Diziam que ele sentia uma atração física e emocional por ela, mas Vivian sempre ria quando perguntávamos para ela. E ele é casado. Nesse mês inteiro, fomos chamados para assembleias organizadas pela escola, onde alguns alunos podiam falar sobre as marcas que Vivian havia deixado. Ela trabalhou durante quatro anos e deu aulas para praticamente todos os alunos ali. Não havia uma só pessoa que não a conhecesse na escola. Em uma dessas reuniões, quando perguntaram se alguém queria falar alguma coisa, foi Gordon que se levantou. Geralmente, ele só levantava a voz para reclamar de alguns dos alunos babacas que diziam coisas legais sobre Vivian quando ela estava morta e a desrespeitavam ela quando viva. Era ridículo mesmo, mas eu nunca falaria nada. Nadaria na minha própria raiva em paz e silêncio, sem incomodar mais ninguém. Porém, Gordon explode rápido demais. Em um dia em especial, quando ele se levantou, achei que ia reclamar usando nomes feios e xingamentos, mas ele foi até o centro e levantou a garrafinha de água e disse:

—Um brinde ao espírito livre cujo espírito está livre. —então tomou alguns goles da garrafinha e saiu da sala, com os olhos já vermelhos (ele gostava dela tanto quanto eu e Becker). E agora, alguns meses depois, a frase volta a minha cabeça.

O espírito livre. Foi essas as palavras que ele usou para descrever Vivian. Com toda razão; na minha mente, a mente dela era feita de cores fortes, sabores picantes, viagens exóticas, coragem, poesia, pérolas, brilho e xingamentos. Ela xingava como um marinheiro, ria alto demais, comia qualquer coisa que dessem para ela e falava olhando nos nossos olhos, sem hesitar. Tanto nas críticas quanto nos elogios (ela me disse uma vez que é mais fácil criticar do que elogiar). Nada ficava preso em sua garganta ou coração, tudo ia para fora. Cada palavra era como um pássaro fazendo seu caminho até as pessoas, um pássaro fascinante. A vida dela —até onde eu sabia— era feita de impulsos e adrenalina, mesmo que vivesse a vida de uma professora de ensino médio. Ela conseguia ser todas essas coisas, dar um jeito de dar agito às vidas das pessoas de uma cidadezinha insignificante. Como um animal selvagem em um zoológico.

Sendo o espírito livre que ela era, certa vez contou que acreditava em Buda. Não nele inteiramente: nos seus ensinamentos. Gandhi também, com a filosofia da bondade, do carma e equilíbrio na vida. Ela tinha um colar com o símbolo de Buda —aquele sorriso quase infantil que estampa seu rosto —e revirava-o toda hora. Eu nunca tinha conhecido um adulto que acreditasse nessa religião —"estilo de vida", como alguns chamam— apesar de já ter visto algumas pessoas da escola espalhando que acreditavam em Buda, depois aparecendo com roupas hippies e uma visão melhor do mundo, que durava uma semana. Ninguém dá muita importância pra essas coisas.

Mas com os adultos é diferente. Parece que cada decisão que eles fazem, é permanente e baseada em dias e dias de uma batalha interna para decidir quando a melhor escolha. Porque é pra sempre e ninguém mais cuida da vida deles por eles, então não podem ser tão irracionais. E para uma criatura responsável, adulta e com a vida inteira para sofrer com as consequências das suas decisões, acreditar em Buda parecia uma crença inesperada —e incrível. Era como se uma versão mais velha de todos nós —a pessoa que nós queríamos ser —estivesse ali na nossa frente, provando que existia de verdade. Que era possível. Passei todo esse tempo acreditando que ela era Budista, já que era óbvio. Todos os caminhos levavam a essa conclusão. Mas então, por que —por que— ela me trouxe à uma igreja?

É meio óbvio. Que era uma igreja, é o que eu quero dizer. Não o porquê. Eu ainda quero um resposta para essa pergunta, mesmo sabendo que não vou ganhar nenhuma. Tantos desejos que nunca serão realizados, tantos sonhos que nunca se tornaram realidade —como alguém sobrevive a uma decepção atrás da outra? Tantos mistérios irresolvidos?

Reconheci a igreja pela estátua que eu vi quando estava na casa de Vivian —ou Ian —na noite em que ele ficou bêbado. Não parecia uma igreja no escuro, talvez pela mesma ter uma cruz minuscula que não conseguia se destacar na escuridão. Parece uma casa —grande, velha e sombria, mas é uma igreja, onde —de perto— você consegue delinear os traços que fazem de uma igreja, uma igreja. As torres em cada lado. A grande cruz de madeira. As formas torneando a entrada, dando um ar antigo. E Santa Filomena na frente, com seu olhar dócil e uma aura pura, que faz com que você queira ser tão boa quanto ela. Na Wikipedia, a história é que ela havia sido pedida em casamento pelo imperador da Grécia, mas devido ao seu amor incomparável e irrefutável por Jesus (ou Deus, ou Cristo, ou qualquer uma dessas coisas) negou o pedido de casamento. O imperador então, mandou que encarcerassem a jovem (ela era muito jovem mesmo) e a ferissem, dando origem ao simbolo do palmo aos seus pés. No dia seguinte, seus machucados haviam desaparecido. O imperador ordenou que a a jogassem em um rio junto com uma âncora. Mesmo assim, ela conseguiu ser levada até as margens do rio por dois anjos que a levantaram. Furioso, o imperador manda que atirem flechas em sua direção, mas todas as flechas se voltam contra quem as lançou, provocando a morte desses. Finalmente, ela é decapitada na idade de treze anos. Com seus restos mortais, foram achados a âncora, o palmo e a flecha, interpretando-se então como símbolos do seu mártir.

Eu não sei o que pensar. Como interpretar. Tudo isso me faz ficar com uma sensação de culpa, após comparar minha vida a dessa menina, hoje uma santa. Eu sinto inveja também, por ela acreditar em algo com tanto fervor que os céus foram ao seu socorro. Aí está Deus outra vez —e com ele todas as perguntas e as dúvidas. Aquela coisa de sempre: ele existe? Por que não me ajuda? Por que não consigo acreditar nele? Porque temos que falar dele com letra maiúscula? Se não existe, por tantas pessoas acreditam nele? Tantas perguntas. Tantas, tantas.

Vou à procura comigo mesma. Eu e eu, sozinha. Nem menciono para Becker a minha descoberta, caso eu esteja completamente errada mesmo que não me sinta errada. Não quero perder seu tempo. Não é difícil sair de casa, porque minha mãe me ignorou completamente, mesmo depois que eu perdi o controle e lhe perguntei com toda minha hesitação se ela queria falar comigo.

—Ainda não. —ela me respondeu. Acho que está esperando pelo meu pai. Imagino o que ele vai dizer. Volto para o presente e mando essa linha de pensamentos para um canto escuro e úmido na minha mente, onde várias outras linhas-de-pensamento proibidas nadam em minha própria ignorância e medo de encará-las. É o Canto das Fraquezas, eu gosto de chamar. Tudo aquilo que algum dia vai me destruir.

A igreja está vazia. Não há carros por perto, muito menos pessoas. Vazia.

Mas não fechada.

Isso é estranho.

A medida que vou entrando, as filas de bancos de madeira pesada aparecem, alinhados com uma simetria perfeita, como se o espaço que ocupam fosse calculado.

É tudo escuro. As paredes são escuras, com um tom de madeira, e continua assim até o centro, onde há uma grande cruz de ouro —ou algo que parece ouro. Tem silêncio. Muito silêncio.

—Procura por alguma coisa?

Eu pulo, assustada com a voz, virando-me. Sinto meu rosto ficar quente, como se a pessoa tivesse me flagrado fazendo algo que não deva. Até onde eu sei, entrar em uma igreja ainda não é pecado.

É um padre, reconheço pelas roupas. Ele veste aquela batina longa e branca, com detalhes característicos. Será que ele pode vestir outra coisa? Meu rosto fica ainda mais vermelho pela qualidade dos meus pensamentos.

É óbvio que ele pode usar roupas normais. Duh.

É negro, rechonchudo e usa um óculos estilo Harry Potter, embora essa seja a única semelhança. Deve ser mais baixo que eu. Por volta dos quarenta anos; no entanto, parece mais jovem.

—Sim, —eu começo, mas paro. E agora? Procurando pelo quê? Eu já achei Santa Filomena.

Será que era só isso? E minha cabeça que criou toda essa confusão? Meu vocabulário consiste de palavras que apenas constroem perguntas.

Por causa da minha pausa, o padre ergue uma sobrancelha e sai da porta por onde entrou, onde ela não chama atenção por ser da mesma cor que as paredes.

—Por que a igreja está aberta se está vazia?

—Jesus está bem ali. Não está vazia. —ele aponta para a cruz. Uh... —O que deseja? —indaga, quando demoro para responder, usando tempo demais para formular algo coerente.

—Eu estou procurando por alguém que conheça Vivian Winter. Você sabe de alguém?

Ele parece decepcionado, talvez estivesse esperando que eu lhe perguntasse sobre a igreja. Mas não tenho a melhor relação com Deus. Levando em consideração tudo que acontece não apenas comigo, mas com o mundo, duvido muito que ele exista. Tantas tragédias e crueldades. Todo o sofrimento de milhares de pessoas que suplicam por salvação todos os dias, e mesmo assim são recebidas com o silêncio da divindade lá em cima. Isso é masoquismo —ter esperança em algo irreal. Quando confessei isso para Vivian, ela falou que a prova de que alguém crê em Deus está no simples fato de duvidar que ele exista. Eu não disse para ela que eu discordava. Ao invés disso, aquiesci e continuamos a conversar. Mas agora que ela se foi, é fácil dizer que ela estava errada, porque eu não acredito que alguém vai me repreender.

Tenha um pouco de fé, pelo amor de Deus, ouço sua voz tão parecida em minha mente, tão parecida com a que um dia realmente existiu —em tom e personalidade. Aquele senso de humor distorcido e inteligente dela. Ha-ha.

—Hmmm, não. Mas talvez o padre Jonah saiba.

—Quem é o padre Jonah?

—O padre desta igreja. —responde-me como se fosse óbvio. —Ele conhece todo mundo que vem aqui.

—Onde ele está? —finalmente, meu coração exclama.

F i n a l m e n t e .

—Eu não sei. —Ótimo. —Mas tenho certeza que poderá falar com ele na missa de amanhã.

Tudo que consigo pensar é que é mais um dia perdido. Porém, ainda há chances.

—Que horas?

—Sete. Mas se quiser um lugar bom, venha cedo. Os bancos se enchem rapidamente.

Sempre ouvi isso em conversas sobre shows, mas nunca em uma igreja. Algo começa a cutucar meu consciente, como um alarme para algo que eu não ainda não tenho conhecimento. Não é um aviso para algo ruim que vai acontecer, mais como se eu tivesse que me lembrar de alguma coisa muito importante.

—Tudo bem, então. Obrigada. —sorrio, prestando atenção nos detalhes talhados na cruz de ouro. Acho que é Jesus. Nada aqui faz referência a Santa Filomena.

Viro-me. O padre ainda está parado ali, me observando.

—Por que o nome dessa igreja é Santa Filomena?

Ele sorri. É o mesmo sorriso que Ariel usa quando está escondendo alguma coisa. Curiosidade percorre por cada célula do meu corpo tão rápido quanto um raio atinge a terra. Se espalha como água.

—Porque quando foi construída, o principal objetivo era atrair um público mais jovem para a igreja. Santa Filomena não é uma grande mulher, apenas uma garotinha. Mas isso não importou quando ela acreditou no seu amor por Jesus.

Faço que sim. Nada de especial aqui. Hora de ir embora.

E é isso que eu faço. No caminho para casa, está tudo ótimo. Aquela sensação passa, e estou tranquila, calma.É uma estrada suspensa no tempo, onde não tenho que estar em nenhum lugar, ninguém precisa de mim hoje. É um sábado a tarde e eu não tenho nada de importante para fazer senão estudar, quão ruim poderia ser?

Mas então eu vejo o carro do meu pai na garagem quando estaciono o meu. Droga, é meu primeiro pensamento.

Droga, droga, droga, droga.

E fica ainda pior quando eu entro na casa. A cozinha é minha primeira parada, mas não há ninguém lá. Eles estão na sala.

Um frio percorre minha espinha e congela meu estômago, revirando-o furiosamente. Não sei se pelas memórias ou pelas que ainda não tenho na mente. Esse foi o sofá que testemunhou tantas brigas —da Gwen, dos meus pais, e até de mim e Gwen quando éramos menores— mas a principal é a briga que resultou em uma adolescente sem casa e com um bebê. Nesse exato lugar, onde agora meu pai senta, Gwen um dia sentou com lágrimas nos olhos, depois levantou-se, ergueu a voz até que meu pai voltasse a falar pela primeira vez com aquele tom assustador que passaria a usar até hoje.

Essa não é mais sua casa.

Seis palavras que destruíram nossa família.

Não foi eu estou grávida.

Nem eu vou ficar com o bebê.

Nem mesmo as minhas palavras, eu vou ajudar Gwen com tudo que ela precisar, que disse em uma época que ainda era permitido ter uma opinião própria.

Essa não é mais sua casa.

Não posso deixar de notar a distância entre meus pais no sofá. As mãos da minha mãe enterradas entre as pernas, perfeitamente imóvel. Meu pai apoiando um braço no sofá, com seu conforto arrogante que anuncia que toda essa casa é dele, não minha, e eu sigo suas regras. Seus olhos me dizem a mesma coisa. Então com tristeza eu percebo que no momento que essa deixou de ser a casa de Gwen, passou a ser a casa de ninguém.

No momento que meu pai disse essa não é mais sua casa, tais palavras acabaram entrando no coração de cada um de nós. E agora, os olhos da minha mãe confessam o que ela não diz para mim. Os olhos sussurram essa não é mais sua família.

Mas ainda é a minha casa.

E as regras deles.

Onde você estava?

—Na igreja. —posso ver a surpresa passar pela expressão do meu pai, como uma faca cortando seu rosto. Ele ignora minha resposta.

—Você está de castigo.

—Por ir na igreja?

—Eu quero saber com que frequência você vai pra beber com seus amigos.

O quê?

Nunca.

—Não minta pra mim, mocinha!

Ele começou a gritar. Minha garganta se fecha, em chamas, conforme um flashback voa acima de mim. Eu sou Gwen e estou chorando e papai está dizendo que eu não vou fazer nada de bom na vida. Porque estou grávida.

—Eu não estou mentindo, eu juro. Pai... —minha voz especial para acalmar pessoas não ajuda. Não funciona.

—Sua mãe contou sobre esse seu "amigo" bêbado. Eu pensei que você fosse a única que tivesse juízo, Diana.

—Pai, ele não é meu amigo.

—Você saiu com ele depois que sua mãe deixou vocês dois sozinhos. —por um instante, ele encara furioso minha mãe, sem acreditar na tamanha irresponsabilidade. E por um momento, eu sinto compaixão por ela e pela distância parecida com o Polo Norte que ele colocou entre eles. Ela está tão sozinha quanto eu. Ele vira para mim outra vez.

Eu quero explodir.

—Eu fui levar ele pra casa! Eu não ia deixar ele dirigir bêbado, pai.

—Onde vocês se conheceram?

Percebo que essa é minha única chance de conseguir perdão.

—Ele é o filho da Vivian.

—Quem? —minha mãe pergunta.

—Vivian Winter... a minha professora.

—E essa sua professora não consegue controlar o próprio filho? Acho que ela precisa de umas lições.

Ele não sabe que ela morreu e muito menos quem ela é. Não sei por que eu achei que soubesse. Só achei que sim. Pergunto-me o que aconteceria se ela estivesse viva e ele quisesse dar "umas lições" para ela. Pergunto-me se ela seria demitida. Quase rio.

—Ela... morreu. Pai.

Ele fica em silêncio.

O mundo inteiro fica em silêncio e é como se uma tensão se formasse —talvez esteja —e eu só consiga ouvir um zumbido, um zzz, como uma cerca elétrica ligada. A tensão é tão forte que eu não me movo nem respiro, com medo de quebrá-la, fazê-la explodir. Mas então eu respiro outra vez, tentativamente, só para ver o que acontece. É esse o motivo da minha mente mas meu coração quer saber se quebrando-a eu não posso explodir. Se pudesse, respiraria cada vez mais nesse momento. Mas nada acontece. A quebra de tensão só quebra a tensão, e o silêncio do meu pai. Permaneço intacta. Com o mesmo coração partido ainda vivo para viver seu sofrimento.

Isso é masoquismo também. Talvez eu até comece a ir na igreja.

—Então o pai dele precisa de uns colhões novos.

É estranho ouvir meu pai dizendo isso. Não gosto nem de repetir a palavra, pois parece obsceno. Meu pai parece obsceno.

A menção ao pai de Ian, no entanto, me deixa curiosa. Ele nunca falou sobre o pai dele. E Vivian também não. Tudo que eu sei é que ela tem um ex-marido (pai de Ian) que vivia com Ian. Ela parecia bem normal falando disso, como se não machucasse. Às vezes eu me pegava sentindo inveja do tom de voz dela, de como ela podia falar sobre uma pessoa que um dia amou com tanta normalidade, mas ao mesmo tempo eu não queria transformar uma história de amor —que tenha ou não dado certo —em algo tão ordinário. Provar que poderia acabar tão rápido e tão fácil, com apenas um segundo de mudança. Então olho para meus pais aqui e agora e decido parar de ser romântica E romantista. Porque o amor deles é a prova de quão ordinária as coisas se tornaram hoje em dia. Troque seu amor por um trabalho que te deixe rico e pague uma viagem para a Europa com a sua família que você não vai fazer porque quando conseguir um tempo para viajar, sua família vai ter desisto de você por não ter passado tempo o suficiente com eles. São as pequenas coisas que um dia se tornam extraordinárias —bom ou ruim. Pequenas não significam ordinárias.

Meu pai ainda está esperando uma resposta mas eu não sei o que falar. Abro a boca e nada sai além de ar, porque tudo parece errado. Devo dizer que concordo com ele? Não?

—Acho que sim, pai.

—Eu não quero vê-lo por perto. Não quero que você beba com ele, nem se relacione com ele. Não ligo de quem ele é filho.

—Tudo bem.

—Eu não quero ser desobedecido.

—Tudo bem.

—Pode ir.

—Tudo bem.

—E quando sair, avise para onde vai e com quem vai.

—Tudo bem. —repito, e ele faz que sim com a cabeça, me desprezando, dizendo-me com seus movimentos que estou perdendo o tempo dele. Vai trabalhar, pai. Vá ganhar dinheiro para um futuro vazio.

Quando saio da sala, olho uma última vez para trás para ver se meus pais ainda estão com a expressão irritada ou se estão olhando para mim. Ambos estão virados de costas para onde eu estou, sem me ver. Minha mãe bota uma mão no ombro dele e aperta, dando apoio. Ele levanta bruscamente e sai da sala, passando por mim com olhos de gelo.

No dia seguinte, eu vou para a igreja.

Mas antes, claro, eu aviso meu pai. Passo no escritório dele e lhe digo, com toda a paciência e afeto que consigo que vou para a igreja, na missa. Ele é relutante, mas eu esclareço que vou sozinha e venho direto para casa depois de terminar por lá. Ele ainda está desconfiando quando me deixa ir mas eu não ligo.

A igreja de Santa Filomena está cheia. Tenho que estacionar na própria rua porque o estacionamento está cheio e as pessoas vão entrando em montes, conjuntos de gente com terços e vestidos longos. Quando o padre que falou comigo me avista, acena, como se dissesse eu estava esperando por você!

Bem, aqui estou.

Sento no fundo pois todos os lugares da frente estão cheios de gente. Com um toque de vergonha, percebo que quase não há jovens na igreja. Os que estão aqui não parecem muito felizes. São mais crianças e idosos. Uma igreja meio decadente, apesar de cheia. Os rituais normais começam. Aquela coisa de sempre. A última vez que vim na igreja foi para a missa de um ano da morte de Vivian, e foi mais por Vivian do que por Jesus —embora eu esteja aqui pelos mesmos motivos —me sinto inadequada. Fazendo algo errado.

Curiosa, procuro por um padre. Qualquer um que não seja o que me atendeu, procurando por alguém que seja o Padre Jonah.

Então o padre negro que conversou comigo se apresenta.

—Boa noite, irmãos e irmãs. Caso ninguém saiba, eu sou o padre Jonah.

E é aí que eu percebo que tem algo errado. Ele mentiu para mim. Como se soubesse da minha realização, ele olha para mim e assente com um sorriso acolhedor, nem imaginando que eu quero me levantar e sair para nunca mais voltar por isso. Ele tinha as respostas ontem. Apenas não quis me dar.

Não vou perguntar por quê.

Mesmo que só tenha isso em mente.

Enquanto ele fala, e as outras pessoas falam, eu fico quieta observando, sem saber o que fazer. Não sei rezar o que eles rezam, nem tenho a disposição deles. Me pego me desculpando à Jesus por isso, por não estar aqui por ele. Todas essas pessoas com a fé delas me faz sentir bem pequena e errônea. Ei, Diana, você está vivendo a vida errada. Venha para a luz. Venha para Deus, é o que as vozes em couro me falam. Agora eles cantam sobre um rio atribulado e a mão de Deus para nos puxar para cima. Uma mulher que sentou do meu lado me olha esquisito, por eu não estar cantando junto. Ignoro-a com o coração pesado, desculpando-me com os olhos.

Mais tarde, todos ficam em silêncio para o padre falar.

Ele fala sobre Iron Man.

O padre Jonah, devoto fervoroso (já mencionei padre?) fala sobre Iron Man. Não Deus.

Iron Man.

Deus, também.

—O que nós fazemos na vida, é nos esconder atrás de uma armadura, assim como Tony Stark. Quantos de nós não escondemos nossas fraquezas, nossas dificuldades? No começo do terceiro filme, Tony quota a certa frase: nós criamos nossos próprios demônios.

A igreja exclama Aleluia e eu pulo, perplexa. O padre Jonah parece olhar nos olhos todo mundo antes de voltar a falar.

—Deus não quer isso. Deus enviou seu próprio filho para nos salvar dos nossos pecados, tornou-se um de nós. Com fraquezas! E nós as escondemos! Atrás de uma armadura. Escondemos nossos pecados de todos, até de nós mesmos e Deus, que nos conhece melhor do que qualquer um. Não, meus irmãos e irmãs. Não é assim que devemos viver. Deus é nosso amigo. Deus não é Pepper Potts! Não precisamos protegê-lo dos nossos demônios. Deus é Deus, ele quer que compartilhemos com ele nossas dores. Ele quer que compartilhemos nossas inseguranças, confiemos nele. Confiança é a base de qualquer de qualquer relacionamento. Deus é James Rhodes em sua relação!

Mais gritos de Aleluia.

Eu acho que eu gosto desse Padre Jonah.

Quando ele termina de falar, todo mundo aplaude. No fim da missa, eu espero até todos saírem e ele também. No começo, acho que o perdi de vista mas encontro-o na entrada, dando adeus a todos que vieram, apertando suas mãos num gesto que diz volte sempre, mas não tão superficial ou profissional. Depois disso, ele passa por mim, mas não para. Só pede que eu espere. Espero cinco minutos, então ele está de volta com uma calça jeans e uma blusa de botão, que deixa em evidência sua barriga. O padre precisa de uma academia.

Como eu fico sentada, ele senta do meu lado mas não olho para ele. Tenho medo de olhar e pensar coisas ruins. Coisas que as pessoas pensam quando estão com raiva ou qualquer coisa assim, mesmo que eu não esteja.

—O que posso fazer por você, jovem?

—Por que você mentiu?

Ele não quer falar sobre Vivian? Fugir do assunto? O que mais? Por que NINGUÉM me conta nada?

Padre Jonah encolhe os ombros.

—Eu queria que você viesse à missa. Está faltando jovens na comunidade. Aparentemente Deus não é mais suficiente. Achei que você atrairia outros da sua idade mas não parecia muito satisfeita.

Minha raiva vai embora.

—Só não estou acostumada. O que você falou foi muito legal, sobre o Iron Man. Não sabia que padres podiam ir no cinema.

—Eles não vão. Geralmente. Fazemos o voto da caridade então temos que viver na pobreza, mas tenho que achar alguma modo de me comunicar com o público mais jovem, que não passa os finais de semana em casa rezando. Vai pro cinema, namora... você me pareceu diferente. Parecia que tinha o chamado de Deus.

—Minha irmã ficou grávida na minha idade. Acho que não, padre.

—Você apareceu em um sábado à noite na igreja. E não parecia perdida. Não se esqueça que os pecados dos outros não são seus por associação.

Mas eu estava perdida. E ela é minha irmã. O padre se levanta e eu o sigo até fora da igreja, onde há um banquinho de madeira perto da estátua de Santa Filomena. Observamos o lado de trás da casa de Vivian, e eu imagino a cena: ela cruzando a rua todos os dias para vir aqui, rezar na igreja. Pedir ajuda com a sua tristeza incontrolável, forças para sua vida. Imagino ela trazendo um mini-Ian e ensinando coisas que Buda não a ensinou. Preenchendo os espaços que Gandhi não conseguiu. Vejo Ian olhá-la com adoração, tão pequeno, pensando que não havia alguém mais inteligente.

Como eu queria que isso se comprovasse verdade.

—Você conhece a Vivian?

—Eu conheço, é claro.

—Como?

—Como? —pergunta ele em uma voz alterada, quase sarcástica, apontando para a igreja. Tudo bem. Óbvio. Depois ele ri da cara que eu faço diante do fato irrefutável. —Conheci Vivian vinte anos atrás, quando acabara de ser ordenado padre e fui colocado em uma igreja miserável que antes existia aqui. Há vinte anos, tudo isso era barro e estrada de chão. A comunidade se juntou e tornou o que hoje.

—Inclusive Vivian?

—Não, jovem. Ela não participava da igreja tão efetivamente. —ri melancolicamente.

—Mas então, —questiono, curiosa como sempre. —como vocês mantiveram contato durante vinte anos?

Ele não responde de imediato. Acho que é para me dar tempo de preparar meu coração e mente para as suas palavras seguintes.

—Porque, —responde Padre Jonah, mirando uma flecha invisível para o meu coração, preparado para desarmá-lo. —ela era apaixonada por mim.


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Notas finais do capítulo

eu to muito curiosa pra saber o que vocês estão achando da fic mas principalmente hoje eu quero perguntar o que vocês acham dos pais da Diana. Se eles estão certos ou errados e da relação deles com a Diana. E da Diana com eles. Qualquer opinião, podem me falar.
e caso queiram saber, o nome do próximo capítulo é Como Vivian Se Apaixonou Pelo Padre Jonah he he