Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 1
Dia 0


Notas iniciais do capítulo

lalalala



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Já faz um ano, mas é bom ver que as pessoas ainda não esqueceram.
Do meu lado, Becker suspira baixinho, e dá um passo a frente, para olhar para a água mais de perto. Eu fico parada, olhando de longe, porque é exatamente assim que as coisas ficam mais bonitas. É quase romântico, e pensar nisso me deixa quase nauseada. No entanto, é impossível não pensar nisso, com todos os corações colados na parede, os balões vermelhos e as rosas seguradas pelas pessoas que caminham atrás de nós. Uma menina — provavelmente da nossa idade — anda comendo um chocolate, de mãos dadas com o namorado, uma perfeita visão do Dia Dos Namorados.
Não consigo pensar nisso, não agora. Hoje o dia é uma montanha russa, e eu estou começando a subir. Não subir emocionalmente, para coisas melhores, como as pessoas sempre pensam quando falamos isso. Subindo porque a viagem só está começando, e eu tenho que aguentar todas as descidas e viradas abruptas, sem saber se vou sair viva. Na maior parte do tempo, eu saio, só que o medo ainda é o mesmo. Não importa se é seguro ou não — se eu caio ou não — vai sempre fazer estrago no final.
Aperto meu casaco longo mais perto, indo até meus joelhos, para impedir que o frio de fevereiro me atinja. Quero continuar assim — quente — por dentro e por fora, deixando a emoção fazer o trabalho internamente. Não sei qual deveria ser minha reação, mas tenho que admitir que é um cenário lindo. No centro da escola, no meio de todas aquelas escadas que levam para todos os andares e todas as salas de aula, uma piscina rasa se encontra. Sempre esteve lá, com uma fonte no meio, adornada com o símbolo da escola — um leão, no estilo Grifinória — cascatando água. Hoje a fonte está desligada, por isso a água está calma, pura, quase celestial refletindo as listras do teto acima de nós, apenas interrompido pelas dezenas de flores de papel flutuando sobre a água. Uma homenagem. Uma lembrança. Para mim, é uma necessidade; lembrar, homenagear, deixar Vivian Winter viva nem que seja por mais um dia, nem que seja durante o dia da sua morte. Meio irônico.
—Isso está me deixando enjoada. — diz Becker. — Eu tenho uma prova pra fazer na primeira aula, não posso ficar aqui, nem ficar enjoada. — ela se vira para mim, então vejo. Aquela emoção devastadora, igualando-se àquele dia, a vontade de chorar, um pouco de culpa também, seu cérebro tentando listar as emoções para saber como lidar com elas. A sensação de cair da montanha russa, de sentir o carrinho descendo em toda velocidade, de... —Estou indo, Di. Não fica muito tempo aí porque você tem prova na segunda aula. Vai conseguir aguentar?
—Sim. — sou boa nisso. Aguentar. Becker assente.
—Ei, Robbie quer fazer alguma coisa hoje por causa do seu aniversário. O que eu digo para ele? — ela mantém sua voz neutra, para não deixar sua opinião vazar na sua voz. Robbie é o namorado dela, e Becker odeia dizer não a ele, principalmente quando se diz a respeito de dar um pouco de atenção aos amigos dela. Não perderia a oportunidade, só que ela tem coração o suficiente para me dar espaço nesse dia.
Nesse dia.
Dia dos namorados. Poderia ser doloroso se eu tivesse um amor não correspondido, ou se tivesse ao menos um amor. Não tenho ambos.
Meu aniversário. Legal, claro. Nasci nesse dia, dezoito anos atrás. Entrei para a história nesse dia, super.
Também é o dia da Vivian Winter, professora de literatura.
Estamos celebrando a vida dela também, só que ao contrário de mim — que está celebrando por estar viva — estamos celebrando o dia dela porque ela está morta. Já faz um ano. Ainda deixa todo nós um pouco enjoados por causa disso.
— Claro, Vamos fazer alguma coisa. Só que eu tenho que passar na casa da minha avó primeiro, então digamos que... podemos nos encontrar lá pelas oito. Pode ser? — minto. Já passei na minha avó às seis da manhã, antes de vir para a escola, porque é geralmente a hora que ela acorda, e minha vó queria me desejar feliz aniversário. Tenho outros planos para mais tarde, e não estou pronta para compartilhar com Becker ainda.
Ela abre um sorriso. Então corre para dentro do campus estudantil, correndo para sua prova e para seu namorado.
Não preciso da primeira aula. É francês, e eu detono no francês, modéstia à parte. Em vez de me virar, eu permaneço no mesmo lugar, esperando um milagre. Esperando Vivian chegar pelas grandes portas de vidro e dizer:
—Parem com isso, foi um engano. — mas não foi um engano. Eu vi o corpo dela no caixão. Então estou esperando por nada, e é essa a sensação de cair do carrinho outra vez. Sem esperança. Me recordo da música do The Vaccines com esse mesmo nome. No Hope. Era uma das preferidas da senhorita Winter.
—Uma mensagem escrita nas entrelinhas. Ao mesmo tempo que parece uma música sobre perder a esperança te dá a mesma coisa exatamente por mostrar que alguém se sente tão desesperançoso quanto você. — ela diria. Só que — ouvindo agora — parece uma carta de suicídio.
But I — I don't really care about / Anybody else when I haven't got my whole life figured out.
Essa é a música da vida da minha professora. Essa é a música que eu escuto quando tento entender porque ela se matou, e me dá a resposta, egoísmo. Mesmo assim, não consigo ficar com raiva. É claro que eu queria — eu seria capaz de sair do pátio, ir para a aula e passar o meu aniversário sem ter a mente manchada de angústia porque uma das minhas professoras se matou — seria tão fácil. Seria fácil esquecer disso. E uma parte de mim nem se sente ofendida por esse egoísmo. Lembro que Vivian nos fez ler um livro chamado A Virtude do Egoísmo, que são textos escritos por dois autores contra-atacando o conceito popular de egoísmo.
O conceito popular: que egoísmo é ruim, é narcisismo, é orgulho, aquele que atravessa qualquer barreira para chegar ao seu devido fim, sem se importar com a existência de outros da mesma espécie. Acho que estão certos. Em parte, é isso mesmo. Mas o conceito do livro é o mesmo conceito do dicionário: preocupação com o interesse de um só ser humano. Acho que a palavra chave é interesse, mas o resto também serve. Quais interesses?
Talvez o de Vivian foi se matar.
Ou acabar com qualquer dor que ela estivesse sentindo, como é que eu vou saber? Então ela fez isso pela sua sobrevivência, se você olhar de um certo modo. Para poder viver bem. Outro trecho interessante, diz que o egoísmo acontece quando o ser humano realiza aqueles desejos mais primitivos e animalescos do seu ser, aqueles que você não pensa racionalmente antes de realizar. Aqueles que estão afundados no seu ímpeto, desejos secretos.
Novamente, talvez o dela foi se matar.
Não dá para julgar quem se mata. Só dá para imaginar o tamanho da sua dor a ponto de perder a fé na vida, ver tudo preto e branco.
Fico enjoada só de imaginar Vivian chorando em um banheiro, baixinho, sem ninguém perceber. Nem eu percebi. Ela foi a melhor professora que eu já tive, alguém que eu considerava minha amiga, e não percebi.
Um pouco depois do que aconteceu, a escola chamou uma psicóloga para falar com os alunos, ela disse que não deveríamos nos culpar, que deveríamos nos lembrar sempre da feliz Vivian e todos os ensinamentos que ela deixou para nós. Deveríamos respeitar sua decisão e deixar a sua família lidar com isso sozinha — e o mais importante, não deveríamos deixar que a dor dela fosse transferida para nós. Cada um tem sua vida, cada um lida de jeitos diferentes, foi isso que ela disse.
O único problema é que eu não sei como lidar. Nenhum de nós sabe. Mal sabemos lidar com um término de namoro, vamos saber lidar com suicídio? Acho que a mensagem oculta era: não tentem se matar. Só que quando ela morreu, todo mundo morreu um pouco, junto. Ficamos uma pilha de nervos, chorando no banheiro. Aquela mesma psicóloga nos deu um número de apoio ao adolescente e do centro contra a depressão, para ligarmos a hora que quisermos que alguém ia falar conosco.
Becker ligou. Eu não. De alguma forma, não consegui. Passei tanto tempo tendo tantos pensamentos mas não falando nenhum, e tanto tempo guardando para mim, sem externalizar qualquer coisa, que quando eu pensava no que falar, as coisas não saíam como eu queria. Era demais demais ou pouco demais. Não fazia jus a realidade, e é como se eu não soubesse falar. Um bebê, aprendendo o alfabeto outra vez.
Todo mundo seguiu em frente, menos no Dia Dos Namorados. A prova está na minha frente. Todo mundo homenageando o egoísmo dela. O que será que ela acharia disso aqui? Amaria, provavelmente. Diria que foi muito bem pensado e elogiaria nossas flores.
Observo a minha agora, lá no meio. É rosa na base, e a flor grudada em cima é amarela, com um botão rosa que eu arranquei de um casaco que estava curto demais. A flor flutua, flutua, flutua, graciosamente, ao seu tempo, como se não tivesse outro lugar melhor para uma flor ficar. Como se não tivesse nenhum outro lugar para ir. Ela flutua, flutua, flutua novamente, até bater no limite da piscina de mármore escuro, criando uma ondinha inocente na água, então volta para o centro, flutuando,
flutuando,
flutuando.
Eu queria poder flutuar, ao invés de cair em uma montanha russa, mas a realidade é a única coisa da qual não se pode correr, fugir, e estou presa nela. Estou presa na minha própria realidade. Isso é meio egoísta, também.
— Algum problema, senhorita? — o guarda da escola se aproxima. Usa um uniforme azul, é loiro mas começando a ficar careca e com um bigode.
— Só estou observando.
— Tenho quase certeza de que você tem aula nesse momento.
— Só estou observando. — repito, pois não há nada melhor para falar. Ele sorri, se virando para a piscina coberta de flores.
— Você a conhecia?
—Ela era minha professora. — Explico, e seu sorri fica maior e mais triste, então apenas assente sem dizer uma palavra, minha irresponsabilidade foi perdoada e esquecida. — Minha preferida. — adiciono, sem saber porquê.
— Entendo. — depois de um minuto de silêncio espontâneo, ele volta a falar — Qual seu nome, mocinha?
—Diana, senhor.
—Escute, Diana, vou perdoar você por estar matando aula hoje, mas não quero que isso se repita. — diz com voz firme. — senão serei obrigado a ligar para a secretaria e mandar avisar seus pais. — o guarda aponta para o walkie-talkie. Assinto, um pouco constrangida por estar fazendo algo errado. — O segundo período começa em quinze minutos.Quero você lá, ouviu? — aponta para mim. Outra vez, assinto e pego minha bolsa, que deixei no chão.
— Quanto tempo vão deixar as flores aqui? — o guarda dá de ombros.
—Provavelmente uma semana, ou até alguém vir e levar embora. Não foi a escola que organizou isso, foram os alunos.
— Eu sei. — meu relógio de pulso confirma que faltam quinze minutos para a próxima aula, e eu me preparo para fazer a prova de trigonometria, durante todo o caminho. Minhas botas tiquetaqueiam nos corredores, o único som que consigo ouvir, e eu repito o máximo de fórmulas que consigo lembrar.
Faço a prova, e passo o resto do dia sendo parabenizada pelos meus colegas de classe. Gente que eu nunca fui muito próxima se aproxima e grita — feliz aniversário!
Então eu dou um sorriso, escondendo minha confusão e respondo — obrigada!
Continua assim durante todos os períodos.
No almoço, Becker e Robbie sentam-se do meu lado, em uma das mesas do lado de fora, trazendo um cupcake com uma vela.
—Tudo bem, tudo bem. Vamos lá, em conjunto. Parabéns pra você...
Quando a aula acaba, nos encontramos novamente na entrada da escola, indo para o estacionamento. Robbie e Becker estão conversando animadamente.
— Seu nariz está vermelho. — comenta Robbie. Um grupo de jogadores passa por nós, chamando seu nome, e ele dá um beijo em Becker e acena para nós antes de seguir o grupo para dentro da quadra, a alguns metros do fim do estacionamento. Minha amiga suspira, observando ele se distanciar.
Tudo que Becker sempre sonhou foi ter um namorado, e agora que tem, está em uma pequena bolha de sonhos, uma Disneylândia vinte e quatro horas por dia. — Oito horas, não é? — pergunta para mim. Assinto, sentindo meu celular vibrar no bolso do casaco. Como vibra duas vezes seguidas, depois para, sei que é uma mensagem, então não abro na frente da minha amiga, para não ser mal educada.
Um garoto, Gordon —um colega que passou tanto tempo estudando com a gente que se sente mais como um amigo se aproxima. Ele é gordinho e tem os olhos azuis mais lindos que eu já vi, apesar de ter alguns problemas de confiança por causa do peso.
—Ei, vocês viram as flores?— Becker e eu trocamos um olhar.
—Sim, antes da aula. — ela responde, quietamente. Por um segundo, nós três ficamos daquele jeito, tristes e quietos, trocando olhares de compaixão. No segundo seguinte, o feitiço é desfeito quando um carro buzina ao longe, e uma mulher ruiva acena freneticamente.
— Até mais. — grita Becker, revirando os olhos quando vê sua mãe. Conforme ela se afasta, aquela aura triste começa a se dissipar e me viro para Gordon.
—Hoje é meu aniversário.
—Parabéns. —é tudo que ele diz.
—Obrigada. Mas eu estava te contando porque Robbie e Becker querem fazer alguma coisa e eu queria te convidar. —Sei que ele não é convidado para muitas coisas.
—O que exatamente?
—Oito horas. Eu te mando uma mensagem com os detalhes.
—Vai muita gente idiota?
—Não faço a menor ideia. —ele suspira.
—Tá bom. Acho que sim. Ei, me dá uma carona?
Eu e Gordon entramos no meu carro, e eu o levo para sua casa rapidamente.Gordon é mais ou menos como eu, quieto. Talvez triste, nunca dá para saber. Acho que é por causa do seu peso, embora nunca fala muito disso.
— Te vejo em algumas horas. — diz ele, antes de sair do carro em direção a casa da sua família. Sorrio, então faço meu caminho para fora da sua rua, meu estômago começando a revirar.
Já faz um ano que Vivian Winter morreu, então acho que é um tempo considerável para esperar que sua família tenha se recuperado. Uma parte de mim acha que sou louca de tentar contatar alguém da família Winter, metida por estar me intrometendo em assuntos que não me pertencem. Mas a outra parte sente que isso lhe pertence assim como pertence a família. Vivian salvou a minha vida, e eu sou o que sou por sua causa. Me sinto levemente obrigada a agradecer, nem que seja para um membro da sua família.
Então procurei o endereço da sua casa no Google. E achei. E agora, estou parada na frente da sua casa, me sentindo um pouco desorientada, como se isso fosse parte de um sonho. A neve só traz mais drama ao cenário e a copa de árvores que guiam o caminho até a porta deixa tudo mais triste, é o pesadelo tudo outra vez.
Mesmo assim, eu aperto meu cinto um pouco mais e permito que o carrinho comece a subir pela montanha russa, saindo do carro, e batendo na porta, nervosa como nunca fiquei na minha vida.
A porta se abre, e tudo que planejei falar evapora, se desintegra como aquelas flores de papel vão, em alguns dias. Desaparecendo. E tudo que eu queria falar é trocado por outras falas, outros textos, outras perguntas, que não consigo externalizar, botar para fora, e é como se o frio lá fora tivesse me congelado completamente, enquanto eu encaro a pessoa que abriu a porta.


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Notas finais do capítulo

e ai?