Com a ausência dos pais em casa a oferta de comida boa e de graça era bem escassa. Sabidamente Rony não conseguia nem fritar um ovo, dominando somente a contemporânea técnica de esquentar alimentos no micro-ondas.

Os irmãos mais velhos que ainda moravam com ele e os pais vinham bem alimentados dos respectivos trabalhos, e Gina trancou-se carrancuda naquela noite no quarto. Ela pelo menos conseguia fazer arroz. Quando ele bateu na porta dela para sugerir um jantar, recebeu uma chuva de ofensas pesadas com o nome de Harry embolado nelas.

Resolveu deixar a onça esbravejando na toca, contou seus trocados e saiu de casa. Agasalhou-se bem e pedalou calmamente na noite, tendo como alvo uma mercearia próxima a avenida principal que vendia guarnições quentinhas.

O local era alvo de diversos jovens com vida atarefada, sem tempo de cozinhar. Estacionou sua bicicleta na lateral do comércio, contornando os carros parados. Entrou no recinto abaixando o capuz do blusão e dirigindo-se para os fundos onde ficava o buffet para escolha. Enquanto aguardava na fila, sentiu alguém tocando em seu braço.

Premonitoriamente, ou não já que aquele perfume era inconfundível, ele deduziu quem era. Quis desaparecer naquele instante com um piscar de olhos, mas estava sem escapatória.

— Ron!

— Ah... Lilá. — disse perturbado.

— Tá mais pálido do que o costume, é?

Cínica. Ela era uma grandíssima cínica. E linda também, com seus longos cabelos cacheados e as maças saudavelmente coradas.

— Às vezes algumas assombrações surgem do nada. — respondeu implacavelmente.

Viu a mágoa nos olhos dela e se arrependeu da agulhada.

— Ron, precisamos disso mesmo? — sussurrou timidamente.

Ele repensou, seus magníficos olhos azuis olhando para o vazio. A fila avançou um pouco, ele deu um passo, ela o seguiu. Quanta besteira se fazer de ofendido.

— Não precisamos. — rendeu-se. — Tudo bem com você?

— Tudo sim. — lhe sorriu com satisfação. — Vim pegar algumas coisinhas para comer. Estamos fazendo um grupo de estudo lá em casa. — e apontou para um grupinho de moças escolhendo sucos nas prateleiras de bebida. — Você tá com uma aparência legal!

Da última vez que Rony se olhou no espelho tinha a mesma cara de “imaturo” de quando ela o acusou e a seguir o deixou.

— Minha casa de veraneio me faz bem. — debochou.

Ela riu agudamente, nervosamente na verdade.

— O mesmo senso de humor. — tachou apontando para seu rosto.

— Acho que suas amigas estão querendo falar com você.

Lilá olhou para trás e as viu concentradas nas prateleiras ainda.

— Ei... — deu-lhe um tapinha no ombro. — É bom te ver. Falo sério.

— Espero que você esteja legal. Os estudos, a faculdade, tudo mais. — avançou mais na fila. Novamente foi seguido pela ex-namorada.

— Na banca ainda?

Rony tentou controlar a raiva. Só queria que a loira sumisse.

— Porque quer saber? Nada disso é importante, nem vir aqui conversar comigo.

— Se engana, Ron. — continuava lhe chamando com a velha intimidade de namorados. — Eu queria te ligar a umas semanas atrás. Fiquei sem jeito. Encontrei algumas coisas suas nas minhas quando estava limpando o quarto para doar tralhas. Quero te entregar, ver se vai querer ficar e... Não foi assim que quis deixar a história da gente.

Rony avaliou a fila do buffet e calculou que alguns minutos o separavam do fim daquele martírio.

— Deixa lá em casa durante semana. Na Quarta. — Quarta era quando ele trabalhava o dia inteiro.

— Estou falando sério. — Lilá murmurou fazendo o seu típico beicinho. Tantas vezes e de tantas maneiras ele beijou aquela boca. — Eu mereço uma conversa.

— Mando uma mensagem no seu celular dizendo qual é o melhor dia. — disse friamente. — Continua com o mesmo número?

— É outro...

Ele anotou muito a contragosto e despediu-se com um aceno seco para sua ex-namorada. De repente se deu conta de que era besteira permanecer na fila. Ficara absolutamente sem fome.