Eu não sou Anabela escrita por Caroline Marinho


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

— Edgar Allan Poe



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Eu não parei pra rever a que ponto a minha breve vida havia chegado. Eu não havia parado pra refletir sobre coisas como lucidez, confiança nem sobre o perigo. Não são coisas que se para pra refletir quando você ama. Você deixa de ser uma pessoa completamente racional. Acho que a gente deixa de ser quem é, sabe?

Eu o amava. Talvez nem amasse tanto. Eu tinha com ele aquele amor adolescente, quando os hormônios dançam e explodem dentro de você e você quer de qualquer forma ser amado intensamente. Você quer que aquela pessoa viole seus princípios, quer que aquela pessoa te faça sentir, independente do que seja mas qualquer coisa que você ainda não tenha sentido. Eu amava ele dessa forma.

E ele? Pra começar, ele nunca havia me chamado pelo meu nome. O meu nome? Meu nome era Letícia.

Ele me chamava de Anabela.

Anabela era seu amor morto. Eu não sei como ele me amava, mas sei que ele me amava menos do que já foi capaz de amar um dia. Porque ele amava Anabela ao ponto de chamar-me pelo seu nome, não ligando, em momento algum, como eu me sentia sobre aquilo.

Eu o conheci fazendo um furo de garçonete. Eu precisava da grana pra pagar uma dívida. Estava reparando meus erros passados, tinha gastado o dinheiro que juntei pra faculdade com bebida e drogas. Péssima garota. É, eu sei.

Não que a culpa fosse dela, a culpa era minha de ser tola, mas é se se esperar uma atitude dessas convivendo com uma mãe ausente e uma péssima influência, certo? Ou não? O pai, bem, o pai eu não faço ideia de quem seja.

Não, eu não precisava de piedade.

Talvez por isso me apaixonei. Ele não tinha piedade.

Mas apesar de tudo, de uma coisa minha mãe sabia. No dia em que o viu pela primeira vez, ela soube que aquele amor me machucaria. Ela me avisou.

Enfim, eu fazia meu trabalho quando ele fez o pedido. Foi carismático, mas perguntou se podia me chamar de Anabela.

Eu estava meio que naquela magia adolescente, quando um cara sorri pra você e você se sente sozinha, aí sorri de volta. Maldita adolescência.

Na semana seguinte, eu estava na cama dele.

E o irônico era que aquele romance dava certo porque tinha sexo. Até porque, ele sabia bem o que fazia. E fazia bem.

Porém, a ideia de ouvi-lo sussurrar o nome da ex namorada morta em meu ouvido me incomodava.

Depois de dois meses era como se ela estivesse lá o tempo todo. Depois de três, era como se ela estivesse dentro de mim. Era como se eu já tivesse me tornado a Anabela. Como se ela tivesse tomado conta de tudo que havia em mim.

Ele dizia que eu tinha o cabelo dela, o sorriso dela. Ele dizia que meu olhar o penetrava da mesma forma que ela. Ele dizia que a profundidade da minha clavícula era tão sensual quanto a dela.

Começava a parecer doentio.

Mas eu o amava, ainda assim. Talvez porque eu, tola, tivesse piedade dele. Ou eu o amava porque achava que aquele amor poderia consertá-lo. Eu não sei, mas sei que algo me prendia a ele.

Eu esquecia as coisas quando estava com ele, principalmente entre quatro paredes. Esquecia do tempo que se passava sem eu ver minha mãe, ou sobre o dinheiro que gastei erroneamente, destruindo as chances de ir pra faculdade e o pouco de dinheiro que eu tinha pra pagar a minha dívida. Quando eu era Anabela, eu não tinha que pensar em nada daquilo.

Mas depois dos cinco meses, ele queria que eu agisse como ela. "A Anabela não diria isso", se tornou uma frase normal de se escutar.

Eu não sorria mais. Eu não vivia mais. Eu era como uma boneca inflável.

Uma doce boneca inflável com o nome de Anabela.

Estúpida boneca inflável.

Comecei a odiar meu cabelo, meu sorriso e a profundidade da minha clavícula.

Então um dia fui ao apartamento dele.

Eu entrei, sem avisar, e ele ficou irritado.

Ficou sério, olhando pela janela, enquanto eu falava. Já era normal ele ficar assim na minha presença.

Perguntou como foi meu dia, e eu respondi, me sentando no não tão confortável sofá verde. A parte do meio era mais funda que o resto do sofá, porque nós tínhamos destruído ele depois de uma longa noite.

E eu dizia o que me tinha acontecido, ele continuava olhando pela janela.

Então disse: "Que bom, Anabela".

Eu tive medo, receio de como ele fosse reagir, mas ainda assim o respondi com um sonoro: "Não quero mais que me chame assim".

Ele se virou, lentamente. Eu nunca tinha presenciado uma reação sequer em que suas veias aparecessem pelo rosto, pertinho das têmporas. Os músculos dele estavam contraídos.

"Eu não sou a Anabela", continuei, "E está na hora de você aceitar isso". Eu queria deixar claro pra ele, de que aquele relacionamento só poderia ter continuidade se ele aceitasse que meu nome era Letícia, que eu não era a garota que ele tinha conhecido em um parque de diversões e que teve a oportunidade de beijar no alto da roda gigante, eu não era Anabela. Eu disse que não queria ter que ficar repetindo com ele os encontros que um dia os dois tiveram. Eu não queria passar mais um dia sequer revivendo a vida que ele teve com alguém que não era eu. Ele precisava aceitar aquilo. Por mim.

Por ele.

Por nós dois.

Ele disse: "Mas você é a minha Anabela..."

"Anabela está morta."

Anabela. Está. Morta.

Eu disse essa frase. Eu disse. Era algo que não tinha saído da boca dos dois durante todos os cinco meses. Ele não admitia aquilo. Ele me mantinha, pra mantê-la viva. Disso eu tive certeza depois de um tempo. Mas ele nunca quis admitir que ela havia morrido em um acidente de carro.

Agora aquilo saia da minha boca. Em pausas, separando cada palavra. Aquilo doía na alma dele, dava pra ver que doía.

O silêncio se manteve por trinta longos segundos.

Eu não tinha visto a raiva nos olhos dele.

Céus, eu devia ter visto quando era tempo.

Eu devia ter visto antes de ele ter se aproximado lentamente de mim, com os punhos cerrados.

Eu devia ter visto o ódio nos olhos dele antes de ele erguer os braços em minha direção, antes de ele ter colocado as mãos frias como gelo em volta do meu pescoço e dizer:

"Você tem razão. Ela está morta. Ela não mereceu", essa parte ele disse com lágrimas nos olhos "Mas você... Você merece a morte, Anabela. Você não é ela. Nunca vai ser. Você merece morrer".

Dor, agonia. Eu tentava machucá-lo. Mas era tarde, porque eu não tinha visto o ódio nos olhos dele quando tive a chance.

Ele me sufocava.

Eu não podia mais me mover do jeito que moveria se pudesse respirar.

Eu não podia


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