"Talvez não pudesse haver felicidade neste planeta sem um peso igual de dor" -A Hospedeira

–O que tem de errado com você, afinal de contas?

–Olha, várias coisas. Uma delas é você. –eu respondi.

–Francamente, Luke! Eu aposto cinco dólares que você não vive sem mim.

–Não vivo mesmo, não. Você que me dá moradia. –dei de ombros.

Ela riu e me empurrou de leve. Fiz o mesmo, mas o resultado fora diferente. Rachel pendeu para o lado direito bem desajeitadamente e a peguei no ar, puxando-a pelo braço.

–Opa.

–Você não mede a força que tem, criatura?

–Desculpa, Rach.

Ela bufou e riu de lado. Estava perdoado.

–Certo. Certo, loira. Mais uma volta, ok? Você aguenta?

–Eu rio na cara do perigo, Luke. –e riu zombeteira.

–Aonde eu ouvi isso? –pensei olhando ao redor.

O parque estava calmo às seis horas da manhã de uma terça feira normal. Simplesmente não havia passantes por ali. Onde estávamos ao menos, só havia nós dois, nos exercitando. Pelo motivo de que a faculdade apertara Rachel nas últimas semanas, ela vivia com a cabeça dentro de livros enormes de matérias chatas, ficava estressada a maior parte do tempo. No primeiro dia, quando a ideia de nos exercitarmos de madrugada me surgiu na cabeça, Rachel atirou o celular no meu rosto e ficou roxo, mas valeu à pena, pois ela era outra pessoa quando chegamos em casa. Desde então, íamos para o parque às cinco e meia da manhã. Mas não era tão ruim assim... Certo. Num geral era divertido. Rachel era mais bem humorada pela manhã, diferente da maioria das pessoas.

–É de um filme. –ela respondeu.

–Sabia! Qual?

–Ham... O Rei Leão.

–Sério, Rachel?

–O que? É um clássico! –ela jogou os braços para o ar.

–Você vai correr uma vez extra só por causa disso.

–Está louco? Preciso passar em casa para tomar um banho. Não quero ir para a faculdade cheirando a suor.

–Pois é, e precisa arrumar esse cabelo, essa cara, essa roupa... Pena que o corpo não tem como, não é?

–Há. Há. Há, Roach! Não se esqueça que eu lhe dou moradia, ok?

–Eu contribuo também, sim?

–Claro, com seu antigo emprego de Sapo.

–É dinheiro de qualquer jeito, cabelo de capim.

–Verdade, cretino. Vamos logo, quero ir para casa.

E corremos por mais uma hora no parque, antes de voltarmos para casa, Rachel se arrumar e ir para a faculdade.

✶ ✵ ✴

Era incrível como uma casa vazia, às vezes, podia ser sinônimo de depressão.

Passei horas arrastando-me da cozinha até o sofá, repetidas vezes. Fazia pipoca, via um filme, voltava para a cozinha, fazia mais pipoca e tornava novamente para o sofá com o filme diferente a minha espera.

Foi perturbador ficar sozinho em um apartamento tão grande. Não era um apartamento de solteiro como de James, era... Quase um lar. E sem as garotas por lá, era demasiadamente silencioso. E a ausência de sons, barulhos, ruídos, era meu pior castigo.

A conversa com Miranda na semana anterior, ainda pairava na minha mente. Meus pesadelos tornaram-se mais frequentes e momentos sozinho foram reduzidos ao máximo possível. Ainda assim, estavam mais presentes do que eu gostaria.

Dizia para Rachel e até para mim mesmo, que nossas corridas da matina eram para o bem dela. No fundo, bem no fundo, era uma espécie de terapia para mim também. Talvez nem tão no fundo.

✶ ✵ ✴

A loira bateu a porta. Dei um salto antes de pausar “Anjos da Lei”.

–Oi, Luke. –ela respondeu.

Rachel estava com milhares de livros pesados na mão novamente, um semblante de pura exaustão, mas ainda assim, um sorriso estava exposto.

–Oi, cabelo de capim. Como foi na faculdade?

–Terrível. –ela disse, jogando a mochila no chão e logo em seguida si mesma no sofá.

–Sério? Meu dia foi bom...

–Deixe-me adivinhar. Você comeu muita pipoca com manteiga, viu vários filmes e deixou uma pilha de latinhas de refrigerante em cima da pia.

–Isso aí. Virou vidente? Pensei que a macumbeira era a Mary Emily.

–Ela me emprestou a bola de cristal dela. –deu de ombros e sorriu.

Sorri de canto também, dei “play” no filme novamente e assistimos juntos.

–O que há de errado com você, Luke? –Rachel me cutucou, ainda olhando a tela.

–Quando o mundo vira as costas para você, você vira as costas para o mundo. –respondi, recitando uma frase do Timão, em Rei Leão.

–Os seus problemas, você deve esquecer... –ela cantarolou. –Isso é viver. É aprender... Hakuna Matata!

–Não é tão simples assim, Rach... –dei de ombros.

Devia de estar mal mesmo, pois ela sentou-se mais perto ainda e me encarou.

–Qual o problema, afinal?

–Passado.

–Hmm... O passado pode machucar, mas do modo como eu vejo, você pode fugir dele ou aprender com ele. –ela recitou uma frase do Macaco, mas que caiu como uma luva na nossa conversa.

–Eu sempre fugi. Não sei se consigo mudar de caminho e passar a aprender com ele, entende?

–A jornada de mil quilômetros começa com o primeiro passo. –ela respondeu, com outra frase do filme infantil.

–Obrigada, Rachel.

–Não fica assim, vai. –ela me cutucou, com uma voz tristonha.

Aquilo me atingiu como uma facada.

–Eu devo estar te deixando toda confusa, não é?

–Não sou eu que estou confusa, você nem sabe quem você é. –outra frase do filme.

–Incorporamos legal o Rei Leão agora. –ri.

–E você me fez dar uma volta a mais só porque eu disse uma frase e você já disse várias!

–Hoje a noite, quem dorme aqui na selva é o leão! –ri novamente.

–Babaca.

–Magrela.

Ela riu.

Terminamos de ver o filme. Então Rachel se mexeu um pouco, virando o corpo totalmente para o meu lado.

–Não se preocupe.

–Com o que? –perguntei, confuso. Afinal, eu sabia que não era o fim, que teria um segundo filme.

–Eu não vou te pressionar. –ela me ignorou. –Sei que algo aconteceu com você em algum lugar do tempo. Não sei o que foi. Acho que nem consigo imaginar, Luke. Mas quero que você saiba, que eu respeito seu silêncio de qualquer jeito. Ou o que você tenha feito...

–Rachel, –a interrompi– Se você soubesse, não me manteria aqui.

Ela engoliu em seco.

Mas logo em seguida me surpreendeu, pegando minha mão com a sua.

–Já imaginei todas as coisas possíveis. De qualquer forma, Luke, seu passado pertence a você. Se um dia você quiser ou precisar de mim para falar sobre isso, eu estarei aqui. O mundo pode ter lhe dado as costas, mas eu não.

Ela sorriu fracamente, umedeceu os lábios e sua voz clara ecoou pelo aposento:

–Olhe para dentro de si mesmo. É mais do que aquilo que veio a se tornar. Deve tomar seu lugar no ciclo da vida.

Meus instintos falaram mais alto e então, puxei Rachel para um abraço.

Permanecemos assim por alguns segundos. O choque inicial fora grande. Contudo, logo Rachel passou seus braços por cima de meu ombro. Nossos corpos nunca tinham ficado tão perto antes. Era possível sentir os cabelos da minha nuca se mexerem conforme sua respiração. O cheiro de cacau emanava de sua pele.

–Quando tudo desabar, eu estarei aqui. –ela sussurrou.

Senti um arrepio, já que sua boca estava tão perto do meu pescoço.

–Conte comigo, Rachel. Para qualquer coisa. Pode contar comigo.

E a abracei mais forte.