O Portal escrita por Star


Capítulo 2
Capítulo 2




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"Porque hoje, meus queridos... Nós vamos abrir um portal."

Yasmin tira da bolsa um tabuleiro Ouija e o ergue acima da cabeça como se fosse um troféu olímpico. Um vento frio percorre todo o milharal e o sinto como um sopro gelado ao pé do meu ouvido. Vini é o primeiro a falar.

– Você trouxe a gente pro meio do mato pra jogar xadrez?

Todos olhamos pra ele, meio incrédulos.

– Isso não é xadrez – Yasmin explica, paciente, girando o tabuleiro nas mãos. – É um tabuleiro O-u-i-ja.

– Tabuleiro ninja?

– Ai, Vini, graças a Deus você é bonito. – Marcela dá dois tapinhas no braço do namorado, piedosa.

– Tabuleiro ouija – Eduardo explica. – De “oui” em francês e “” em alemão, os dois querem dizer sim. Ficou com esse nome porque o jogo sempre começa com a pergunta “tem alguém aí?”. É um instrumento de comunicação com espíritos. Você chama por algum morto e espera que ele se comunique movendo a planchette. Allan Kardec diz que apenas espíritos baixos podem mover matéria, o que significa que qualquer coisa que esteja conseguindo se comunicar pela tábua não pretende fazer nada bom. O espiritismo mesmo diz que só espíritos sem luz podem ser alcançados pelo tabuleiro.

Todos nós encaramos Eduardo boquiabertos, exceto por Yasmin, que exibia um sorrisão enorme e orgulhoso.

– Você realmente sabe a beça – eu digo, até mesmo um pouco surpresa. Quem poderia imaginar que o nerdzinho curte umas urucubacas?

– É uma matéria interessante – ele dá de ombros, modesto.

Marcela funga e coça o nariz, murmurando “seus esquisitos”.

– Ah, então é tipo um telefone – Vini conclui, balançando a cabeça. – Só que pra falar com gente morta. Maneeeiro. Dá pra ligar pro Chorão?

– Se você for bonzinho a gente até tenta depois. – Vini parece satisfeito e Yasmin continua, balançando suas asinhas de fada. - Muito obrigada, Edu, pela brilhante explicação. Um tabuleiro ouija serve como um receptáculo de almas, mas não se limita a isso. Da mesma forma que um ser de outro plano pode se manifestar aqui, um ser daqui é capaz de se manifestar em outros planos ou dimensões. Para isso é necessário muito mais poder e energia e todo um ritual de preparação, mas não se preocupem, eu trouxe tudo o que vamos precisar. – Ela acena com a cabeça pra bolsa de dente.

De repente me pego imaginando se por acaso tem velas pretas e uma galinha morta escondida dentro daquela bolsa.

– Espera aí – Marcela interrompe. – você quer que a gente monte um ritual satânico aqui no meio do mato com esse tabuleiro de joguinho? É sério isso?

– Não sei se eu tô muito a fim de mexer com esse tipo de coisa – Vini hesita, enfiando as mãos nos bolsos. – Tipo, mexer com gente morta, parece ser meio perigoso... Se tá morto é melhor deixar quieto. Não dá pra só ligar pro Chorão e voltar pra festa?

– Isso é um absurdo. – Marcela fala pro namorado com veemência. Como sempre, ela age como se fosse a Srta Verdade Absoluta. - Não existe isso de magia e espíritos. É historinha pra assustar criança.

– Na verdade, - Eduardo, o Hakuna Matata que Não Gosta de Pentes Mas Sabe Tudo Sobre Gasparzinhos, intervém. - há muitos casos de atividades com tabuleiros ouijas com resultados que até hoje ninguém sabe explicar. Pessoas que ficaram traumatizadas, objetos quebrados, vozes gravadas que ninguém sabia a quem pertenciam, desenhos encontrados em paredes...

– É tudo coisa de gente perturbada – Marcela, Srta Verdade Absoluta bufa.

– Eu também não acho que seja boa ideia a gente mexer com isso – eu me manifesto pela primeira vez nessa confusão toda.

Yasmin nos olha um a um, desamparada, com o seu plano genial indo por água a baixo.

– Mas, pessoal...

– Eu quero voltar pra festa. Esse lugar tá me dando arrepio – Marcela conclui, passando as mãos nos braços.

– Esse cheiro podre já tá me deixando tonto – Vini acrescenta, apesar de ninguém mais aqui parecer sentir cheiro de nada.

– Desculpa, Yasmin – eu digo, solidária, e olho pro Eduardo que também não parece muito confortável com a ideia de passar mais uma hora perdido nesse fim de mundo. – Acho que vou voltar pra casa também. Depois a gente até faz o jogo do copo se você quiser, tá? É tipo a mesma coisa.

Yasmin joga o tabuleiro no chão e todos nós nos assustamos com o barulho e a birra repentina. Ela tem lágrimas nos cantos dos olhos e bate o pé como uma criança frustrada, levantando poeira.

– Vocês não entendem! – Ela grita, magoada. – Eu vou embora. Pra sempre e sempre e sempre! Em pouco tempo. Eu planejei tudo pra hoje tão direitinho só pra poder ficar um tempo com vocês, meus amigos. E todos simplesmente querem ir embora, quando eu mais preciso de vocês. – Lágrimas descem pelo seu rostinho bonito e eu realmente, realmente me sinto mal. - Seus... Seus insensíveis!

Yasmin vai... embora? Pra onde? Por que?

Faz muito, muito tempo desde a última vez que alguém me chamou de amiga. Agora, essa mesma pessoa está profundamente magoada e parte disso é minha culpa. Não parei pra pensar em quanto Yasmin tinha se esforçado pra nos trazer aqui e em como isso poderia ser importante pra ela, mesmo que fosse uma tremenda bobagem espiritual. Sinto um embrulho desconfortável no meu estômago, de culpa e vergonha. Ninguém tem o direito de menosprezar o que outra pessoa acredita.

– Você vai embora, Yasmin? – Marcela pergunta, verdadeiramente preocupada, e se aproxima da fada dos dentes em lágrimas.

– Eu preciso ir – ela diz, passando as costas das mãos nas bochechas e acabando por espalhar mais porpurina no rosto. – Estou com saudades dos meus pais e da minha antiga casa. Quase não consigo mais dormir, pensando neles. Agora eles me chamaram e eu quero aproveitar a oportunidade. Mas eles disseram que eu não posso voltar.

Yasmin deixou os pais dela para se mudar? Isso é realmente um choque. Aparentemente, eu conheço muito menos do que achava sobre a garota loira com um tabuleiro ouija nos pés e me importo com ela muito mais do que pensava.

– Quando você vai? – Eu pergunto, mas evito me aproximar, porque não quero ficar no campo de alcance de Marcela.

– Eu não sei. Se tudo der certo, amanhã.

Amanhã? Tão cedo assim? Por que ela não me contou isso antes?

Pensando bem, eu realmente perguntei alguma coisa sobre a vida da Yasmin pra ela antes? Alguma vez eu me importei em saber com quem ela estava morando, se sentia saudades de casa ou por que se mudou? A horrorosa sensação de que eu perco as pessoas como se fossem dentes de leite se apodera de mim mais uma vez.

– Nós vamos sentir a sua falta, doidinha – Vini diz, meio sem jeito, e abraça a garota de lado, fazendo-a parecer minúscula perto dele. O afeto era tão simples e verdadeiro que, pela primeira vez na noite, Marcela não ralhou nada.

– Também vou sentir muito a falta de vocês – Yasmin tem os olhos azuis brilhantes de lágrimas e olha para cada um de nós. – Então, vocês podem ficar?

– Claro que vamos ficar, amiga – Marcela assegura fazendo uma voz muito afetuosa estilo mãe de novela mexicana e passando a mão no braço dela, como se não fosse a que começou a bater pé pra ir embora em primeiro lugar.

Vini apenas acena com a cabeça e Yasmin olha diretamente para mim.

– Eu realmente não gosto de espíritos...

– Será que você não pode tentar? –Yasmin pede. - Por favor, Ju...

Eu balanço a cabeça, com medo de que ela chore mais por minha culpa, e sinto que devo isso a ela afinal de contas. Por ter sido uma amiga tão negligente.

– Tudo bem, vamos fazer isso.

Yasmin para imediatamente de chorar e dá pulinhos de comemoração. Ela se ajoelha na frente da bolsa-dente e começa a tirar uma quantidade variada de coisas, tagarelando muito e muito rápido. Eu esperava que ela falasse com Eduardo também, então percebo que em momento algum ele disse que preferia ir pra casa e deixar ela sozinha aqui, e sinto mais vergonha ainda de mim mesma. Ele consegue ser um melhor amigo pra ela do que eu.

– Fico feliz que tenha ficado.

Eduardo diz baixinho do meu lado e me dá outro de seus sorrisos solidários. Eu sinto um arrepio percorrer meu corpo, mesmo que não esteja correndo vento nenhum.

– É o mínimo que posso fazer, se nunca mais vamos nos ver. Presente de despedida.

– Adeus não é para sempre, sabe.

– Tente dizer isso pro meu tio desaparecido. Se conseguir contato com ele, diga que eu ainda quero o dinheiro que emprestei.

Eduardo ri como se eu fosse a pessoa mais engraçada que já conheceu.

– Você só precisa ter memórias pra que uma pessoa continue com você, Júlia. Nunca dá pra se livrar de alguém completamente. É incrível e assustador ao mesmo tempo.

O estranho e engraçado da coisa é que Eduardo fala essas frases de bombom serenata tão banalmente como se estivesse comentando o preço do pão. “Oh, sim, antigamente eram oito pães por um real, agora só conseguimos uns seis, deve ser porque o trigo aumentou, e já ouviu falar que a existência de uma pessoa é relativa à quantidade de indivíduos que a notam?”.

– Você diz umas coisas bem ferradas, Eduardo.

Ele sorri verdadeiramente, não do tipo garoto autista solidário e misterioso, mas do tipo garoto mesmo, um tipo mais normal.

– Eu me esforço bastante.

– Aaaah, droga! – Yasmin vira a bolsa-dente de cabeça pra baixo e sacode, esperando que mais alguma coisa caia de lá dentro. Ao redor dela está uma bagunça enorme de espelhos, maquiagem, gazes, pacotinhos de sal e, felizmente, nenhuma galinha morta. – Eu esqueci as velas! Não acredito que esqueci logo as velas! Júlia, - ela se vira para mim - será que o seu tio teria algumas guardadas em casa?

– Acho que sim, faltava luz muitas vezes por aqui – eu digo, pensando um pouco. - Deve ter ainda algum pacote guardado debaixo da pia.

– Eu posso ir lá buscar. – Marcela se oferece, e puxa a mão do seu namorado, abrindo um sorrisinho. – Vinizinho, você vem comigo?

Vini, obviamente, entende o recado e aceita. Claro, pra fazer sacanagem na casinha abandonada do meu tio você não é lerdo, não é, maldito gostosão?

– A cozinha fica logo à esquerda da entrada. – Eu oriento, porque não quero Marcela fuçando muito no lugar. – É fácil de achar, tem uma janela enorme bem em cima da pia.

– Não precisa encher o saco, não tenho alzhaimer, sabia? – Marcela diz, revirando os olhos. Ótimo, então ela realmente lembra de quando vinha passar os dias aqui comigo, há tanto tempo atrás que parece até cena de novela. Pelo menos agora eu sei que da memória ela não me expulsou. – Não comecem o shimbalaiê das almas sem a gente, tá legal?

A ideia da minha ex melhor amiga e do cara por quem eu tenho uma paixão de criança se esfregando na antiga casa da minha família não é muito agradável, mas também não quero ter que voltar lá e quanto logo resolvermos isso, melhor, então só observo enquanto Marcela e Vinícius somem de mãos dadas dentro do milharal apodrecido.

– Edu, Ju, me ajudem aqui!

Yasmin coloca o tabuleiro ouija no chão, arrumando-o com critérios que só ela conhece. Eduardo e eu nos encarregamos de espalhar pequenos espelhos circulares em um círculo enorme ao redor do tabuleiro. Depois, pegamos todos os sachês de sal, do tipo que se rouba dos restaurantes, e abrimos até encher um pote de plástico que Yasmin trouxe, enquanto ela espalha ramos de um troço que parece coentro no círculo de espelhos.

– Poxa, Ju – Yasmin comenta, fazendo bico de chateação enquanto esmaga as folhas pequenas e de cheiro forte nas mãos. – Por que não colocou a fantasia que eu comprei pra você? Ia ficar tão, tão lindinha!

Eduardo levanta o olhar, entre um sachê e outro, cheio de interesse.

– Que fantasia?

Eu fico vermelha de nervosismo ao lembrar daquela roupa indecente e ridícula. Yasmin, o capeta vestido de fada de dente, responde, muito alegre:

– Nós compramos ontem pro Dia das Bruxas. Era de Sininho. Tão, tão lindinha! Tinha os sapatinhos pontudos e até as asinhas. A Júlia ficou uma gracinha nela!

– Tão adorável quanto um xuxu se prostituindo – resmungo.

Aquele vestido era tão curto e escandaloso que devia ser queimado em praça pública pelo Papa. Porcos vão voar e dançar axé antes que chegue o dia em que eu saia banhada em porpurina com uma roupa daquelas de casa.

– Aposto que ficou linda – Eduardo diz e tem aquele sorriso que me deixa desconfortável estatelado no rosto. Eu jogo um punhado de sal na cara dele, que é pra parar com essas graças, e o infeliz ri.

– Nãããão, o meu sal! – Yasmin grita, desesperada, tira o pote de mim e o abraça como se fosse um bebê.

– Pra que serve tudo isso, afinal? – Eu pergunto, limpando minhas mãos cheias de sal na minha fantasia de gente normal: meu fiel jeans e minha camiseta que não saíram de nenhum filme da Disney, não parecem a roupa de trabalho de uma atriz pornô fetichista e nunca me fazem passar vergonha.

– O sal serve como uma barreira de proteção – Eduardo explica, bagunçando ainda mais o cabelo pra se livrar do sal. – O certo é fazer um círculo em volta do tabuleiro, pra que nada que seja invocado possa sair e ficar liberto no nosso mundo.

– E os espelhos?

– Espelhos aumentam o potencial mágico dos objetos – Yasmin diz, andando com o pote de sal pra lá e pra cá e derramando aos poucos o seu conteúdo em um círculo levemente torto ao redor dos espelhos.

– Eles também servem para aprisionar espíritos, se for a intenção - Eduardo completa.

– Por isso que quebrar um espelho significa ter muito azar. Você pode estar soltando uma entidade nesse mundo - ela termina, como se os dois tivessem assistido o mesmo comentário sobre o sobrenatural na noite passada.

Faz muito sentido agora o porquê de tanta gente ter medo de espelhos. Ter cinco espelhos em uma casa poderia significar que eu tenho cinco espíritos de estimação, então? E aqueles de potinhos de maquiagem, será que eles guardam espíritos anões?

– Por que você quis vir logo pra cá? – Eu pergunto pra fada dos dentes que é minha amiga, olhando pro campo de milho que farfalhava com o passar do vento e a estaca de madeira cortada pela metade onde antes ficava o espantalho. Que fim levou aquele espantalho? – A gente não precisava ter vindo tão longe. Dava pra ter usado algum estacionamento ou a casa de alguém.

– Por que você acha – Yasmin rebate, ainda concentrada em fazer o círculo – que tudo o que nós vemos dos alienígenas são sempre símbolos cortados em plantações?

Ótimo. Agora também tem aliens, porque a treta não tava suficiente só com almas penadas no meio. Eu dou de ombros.

– Eles gostam de milho?

– Não, bobona. Acontece que os símbolos nas plantações são os únicos sinais que os homens conseguem perceber. Qualquer sinal do extraordinário que é deixado nas cidades grandes é ignorado pela pressa e sono que todo mundo sente o tempo todo. As pessoas estão constantemente fechando os olhos pra magia. Na verdade, os alienígenas estão em toda a parte, mas somente onde não existe nada que possa te distrair é que você consegue senti-los e achar os seus rastros. Da mesma forma, só nesses mesmos locais é possível estabelecer contato.

Os olhos de Yasmin brilham enquanto ela fala e não é só por causa da porpurina da sua maquiagem exagerada. Ela fala com tanta convicção que chega a ser bonito e esconde um pouquinho de quão absurdo a ideia toda é.

– Também é por isso que os lugares assombrados são sempre áreas desertas – Eduardo completa do meu lado. – Tudo que é do sobrenatural também é capaz de sentir e ler os sentimentos humanos e a maioria deles prefere ficar longe de toda a nossa confusão.

– A magia também depende muito disso – Yasmin termina, jogando sem querer sal nos próprios pés pra terminar o círculo. - Do quanto você é capaz de sentir as coisas.

Eu imagino que Yasmin quer dizer sentir como se fosse acreditar. Ter fé. Basicamente, ela está dizendo que você pode ser capaz de fazer qualquer coisa desde que acredite de verdade nelas. Faz um baita sentido, até. Essa garota tem um potencial sinistro nessa cabecinha de vento. E sim, eu sei que é estranho que eu admire o potencial de alguém de ser eloquente falando sobre alienígenas enquanto faz um círculo com sal roubado pra abrir um portal mágico.

– O que fantasmas e alienígenas tem em comum? – Eu pergunto, tentando não parecer muito cética.

– Tudo o que faz parte do universo está interligado por veias de magia. Você vai entender – Yasmin me assegura, com um sorriso de criança no rosto.

– Bem. Pelo menos agora eu sei que a fazenda do meu tio é, provavelmente, o point das assombrações e vou ter uma ótima história de Dia das Bruxas pra contar. Stephen King sentiria inveja.

– A data não foi escolhida por coincidência, não é mesmo? – Eduardo pergunta, olhando curioso para a fadinha que sorriu como se tivesse uma travessura descoberta.

– Bingo! A madrugada entre o dia 31 de outubro e o primeiro pôr-do-sol de novembro é uma data mágica, por isso tantos povos celtas faziam comemorações nesse dia. É a única época do ano em que o véu que faz barreira entre os mundos cria buracos e coisas fantásticas podem acontecer. Não conseguem sentir o potencial da noite no ar?

A pergunta é estranha, a situação toda é tremendamente estranha, mas na verdade eu sinto, sim, alguma coisa. A noite parece ficar mais fria a cada segundo e o arrepio na minha espinha já se tornou frequente. O silvo que as cascas secas de milho fazem se dobrando a cada brisa que passa parece uma melodia fúnebre nos meus ouvidos. Na verdade, o embrulho no meu estômago me dá a sensação de que alguma coisa terrível está pra acontecer e torço pra que Marcela e Vini voltem logo porque quero ir embora daqui.

Um grito horrível corta a noite tão de repente que meu coração parece subir pra garganta no susto. É Marcela. Imediatamente Yasmin, Eduardo e eu olhamos para a casinha velha atrás do milharal. Um outro grito tão estridente quanto o primeiro ecoa e no instante seguinte nós estamos correndo pra lá. Ouço Yasmin gritando o nome de Marcela às minhas costas, mas tudo o que consigo pensar é: eles encontraram.

Sou a primeira a chegar na casa. Subo os degraus velhos e encontro Marcela, apavorada, montada em cima da mesa e apontando para o chão. Eu procuro o que ela está vendo e quando a minha vista se acostuma ao escuro, vejo uma barata cascuda balançando as antenas pra uma lata vazia de atum.

Uma barata. Eu quase enfartei por causa de uma barata.

– Porra, Marcela! – Consigo gritar e me encosto na parede, com o coração ainda batendo tão forte que poderia rasgar a minha pele. Marcela olha pra mim, olha pra barata, e grita apontando pro chão.

– O que acontec-... – Yasmin passa pela porta, vê a barata e se junta aos gritos, dando pulinhos. As duas garotas fazem uma cacofonia tão horrorosa que é como se a barata tivesse dois metros de altura e estivesse armada de uma motosserra.

Eduardo pula pra dentro da casa armado com um galho como se fosse uma espada, vê a barata, dá um grito e deixa o galho cair no chão. Isso só pode ser piada. Eu piso na desgraça da barata, pelo bem dos meus ouvidos.

– Pronto, acabou, é só um bicho, ele não ia comer vocês – me viro pro Eduardo. – Bela ajuda, herói.

– Tá brincando? Era uma barata enorme! – Marcela ralha, de cima da mesa. – E ai que nojo, sua nojenta, precisava pisar?

– Sinto muito, não dava pra esperar que ela morresse de câncer. – Sim, eu estou ciente de que estou rebatendo a Srta Bullying Nas Ex Amigas e a única explicação que tenho pra isso é a adrenalina que ainda corre alucinada nas minhas veias.

– Ué, cadê o Vini? – Yasmin pergunta, meio ofegante de tanto gritar.

– Aquele babaca. – Marcela bufa e pula pra fora da mesa, ajeitando o corpete da fantasia indecente. – Ele queria fazer besteira, mas não tô com um pingo de clima, esse lugar tá um lixo e me dá arrepios. Que fim teve aquele maldito espantalho? Eu sinto como se ele estivesse em todos os lugares, olhando pra mim. Bizarro.

O velho espantalho, um boneco feito com remendos de panos de chão velhos e botões descascados para os olhos, nem eu fazia ideia de onde meu tio o tinha colocado. A estaca dele tinha sido cortada há tempos e restava apenas um toco pequeno de madeira na clareira onde Yasmin colocou o tabuleiro, mas o próprio boneco poderia estar em qualquer parte e a ideia de encontra-lo nesse escuro atrás de alguma porta também me dava calafrios.

Mas, espera.

– Pra onde o Vini foi? – Eu pergunto.

– Sei lá. Deve ter voltado pra porcaria da festa dele.

– Ele não voltou. – Eduardo disse. – Nós teríamos encontrado ele enquanto vínhamos pra cá.

Se o Vinicius não está na casa e nem voltou...

Só existe um outro caminho.

Droga.

Eu corro até a floresta que se abre nos fundos da velha casinha. Não, não é possível, Vini não pode ter resolvido se enfiar logo aí. A floresta é mais fechada do que a mata em que nós entramos pra chegar até aqui, muito mais escura e perigosa. Meu tio sempre disse que coisas horríveis moravam alí dentro. Eu sempre acreditei o bastante para nunca querer entrar.

– Vinicius! VINI! – Eu grito pras árvores, andando de um lado pro outro e esperando alguma resposta.

– Já pode parar de ficar correndo atrás do meu namorado, ele tá pouco ligando pra você! - Marcela ralha as minhas costas, vindo com um caminhar furioso até mim e seguida por Yasmin e Eduardo.

Eu não posso acreditar nisso. Como ela não consegue entender?

– Qual é o problema, Júlia? – Yasmin me pergunta, preocupada. Ela tenta me segurar pelo braço pra me acalmar mas eu me solto do aperto e aponto para as árvore altas e escuras.

Não tenho certeza do quanto é seguro falar, do quanto eles podem saber. Não consigo ver Vinícius em parte alguma e esse maldito nervosismo está me fazendo suar frio. Eu vou ter que entrar. Droga, droga, eu vou ter que entrar lá.

– As histórias... – Eduardo diz, devagar. Pra meu consolo, ele é o único que está olhando sério pra floresta e em seguida pra mim. – Nem todas eram histórias. Não é?

– Vinícius está correndo perigo – eu insisto, nervosa. – Muito, muito perigo!

– Pelo amor de Deus – Marcela diz com desdém, franzindo o nariz. – Vai dizer que você ainda acredita naquelas histórias de bicho papão que o seu tio idiota contava? Era só pra deixar a gente longe, sua cagona.

Pra mim, já chega.

Tudo parece acontecer mais rápido que o normal. Eu acerto um tapa pesado como tijolo na cara estúpida da Marcela e ela revida, quase me arrancando um olho com a unha. Nós duas nos atacamos feito dois gatos raivosos e quando percebo estou esperneando e dando chutes no ar porque Eduardo está me segurando pelos braços.

– Sua piranha arrogante! – Eu berro e com alguma graça acerto um chute no queixo dela enquanto Yasmin tenta puxá-la para trás. – Se você quer me apagar completamente, se quer fazer piada de mim, eu não me importo nem um pouco! Agora eu não vou deixar que você desrespeite a minha família ou a minha casa só porque é burra demais pra entender que uma coisa horrível pode acontecer com o Vinícius se ninguém tirá-lo de lá!

Marcela rosna pra mim, descabelada.

– Sua mosca morta nojenta, você não vai falar assim comigo!

– Júlia, Marcela, calma! Meninas, não pirem! – Yasmin insiste, lutando pra conseguir segurar os braços de Marcela que é muito mais alta que ela e se debate furiosamente. – É só mais mato, gente. A gente entra e encontra ele, não tem problema.

– Não, não é – eu digo, aflita e sinto meu rosto queimar com vontade de chorar. – Vocês não sabem, vocês não conhecem. Não é só mais mato, não é mais floresta!

Marcela consegue se soltar e pula pra cima de mim. Eu, ela e uma Yasmin desesperada rolamos pelo chão e quando conseguem nos separar de novo, Eduardo agora me arrastando para longe e eu me contorcendo como uma minhoca, ela tem um tufo de cabelo preto meu nas mãos e meu dedos estão sujos com sangue dela.

Um uivo assustador vem de dentro da mata fechada e eu congelo no mesmo instante. Ninguém se atreve a se mexer. Alguma criatura tenebrosa lá dentro está acordada. Eu sinto vagamente Eduardo sussurrar no meu ouvido e as mãos dele afrouxarem o aperto nos meus braços. A última coisa que percebo é o nome do Vinicius sair baixinho de uma Marcela em choque enquanto eu levanto aos tropeços e corro pra dentro da floresta sombria.


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Notas finais do capítulo

Opa, calma, pessoal, tá tudo bem, acho que encontrei o terror por aqui. Não criem muitas expectativas, pode ser só tamarindo. Eu sempre me confundo com essas coisas.