O Portal escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Para uma experiência mais assustadora, leiam às três da madrugada, sozinhos, com as luzes apagadas, ouvindo a trilha sonora de Insidious (opa, olha o link aqui http://www.youtube.com/watch?v=HkK7vJxeTR4) e tentando não olhar pra trás porque você sabe que uma garota cheia de sangue e com um sorriso medonho está alí te esperando com um machado em uma mão e a cabeça da sua mãe na outra.



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– Ainda falta muito?

Marcela pergunta. Pela enésima vez. Nos últimos três segundos. Faltam cinco passos a menos desde a última vez que você perguntou, penso, mas não digo. Se as pessoas fossem batizadas por adjetivos o meu seria Submissa e o da Marcela seria Impaciente. Ou talvez Ser Humano Sem A Mínima Noção De Tempo E Espaço Que Veio De Salto Alto Pro Meio Da Floresta Apenas Para Ficar Reclamando.

– Ainda falta muito? – Marcela pergunta. De novo. – Meus pés estão me matando!

Imagino os dedinhos do pé da Marcela muito zangados atacando o resto do corpo com faquinhas e isso me permite sorrir um pouquinho em meio a todo o cansaço.

– Já estamos pertinho, galera – Yasmin comanda, na frente do nosso grupo. Ela é a única que não está com uma enorme cara de cu. Mesmo bem atrás posso ver o seu cabelo loiro em marias-chiquinhas compridas quase emanando luz própria enquanto ela abre caminho para nós em meio ao matagal todo de árvores grossas e arbustos altos, usando asas de feltro cheias de popurina.

– Pertinho de onde, afinal? – Marcela pergunta, irritadíssima, tentando não afundar o salto de dez centímetros na consistência barrosa que é o chão.

– É bom que seja de uma rave louca cheia de novinhas vestidas de bruxa e com cerveja de graça, se não eu vou ficar muito puto. – Vini pragueja.

– Como assim novinhas vestidas de bruxa? – Marcela, a Namorada Ditadora pergunta, afilando os olhos e tentando equilibrar suas habilidades de sentir ciúmes e andar de salto no barro ao mesmo tempo.

– Relaxa. Minha única bruxinha é você, baby.

Vini, o Sedutor Número Um, sorri de um jeito sacana, porque sabe que discutir com Marcela significa uma batalha sem sobreviventes que duraria até o amanhecer. Eu sei bem como é. Já fomos melhores amigas.

É muito estranho se referir a alguém como um amigo no passado. Antes, eu costumava pensar que ser amigo de alguém era uma espécie de aliança eterna, como ser uma mãe ou como ter aids. Algo que vira parte da sua identidade e que é impossível de ser apagado. Aparentemente, o tempo faz com que as pessoas cresçam e mudem tanto de cara quanto de coração. Alguém que você conhecia como um irmão pode se transformar em uma completa estranha metida a besta que anda de salto alto no meio da floresta com a anágua preta da fantasia de bruxa devassa flutuando ao redor dos quadris e arrastando uma maré de folhas junto.

Fora os resmungos constantes da Srta Eu Ando De Salto No Mato Se Eu Quiser, a floresta está em puro silêncio e tudo o que ouço são o farfalhar das roupas ao passar entre as folhas e nossa respiração pesada. Mais especificamente, a de Eduardo, que vem logo atrás de mim e parece um cachorro morrendo de asma. O seu nariz ressoa como uma máquina de fazer cimento, inspirando e expirando sem ritmo nenhum. Imagino que ele queira pedir pra gente fazer uma pausa rapidinha, já que, entre eu, o atleta da escola, a menina que sobrevive maratonas de liquidação em saltos quinze e Yasmin que adora bancar a Dora a exploradora ele é o com menos preparo físico, mas também é quieto demais pra se manifestar.

Deixo a respiração frenética do Eduardo me guiar para meus devaneios e aproveito pra observar o Vini, já que ninguém está olhando. Meus olhos se adaptaram ao escuro que faz dentro da floresta e consigo ver bem as suas costas largas cobertas pela jaqueta de couro da fantasia de Exterminador do Futuro, que mesmo ninguém lembrando do filme ainda ficou ótima nele. O que não é difícil, Vini também fica ótimo quando usa o uniforme do time de futebol e corre suado e vermelho pra arquibancada gritando por ter feito mais um gol. Ou com a sua blusa social azul, fazendo-se de sério para os professores durante a apresentação da feira da cultura da escola. Ou com a sua camisa do Hulk, de quando eu esbarrei nele no supermercado, super sem querer. Ou sem camisa nenhuma. E sem roupa nenhuma. Éééééé.

Tá legal, talvez eu tenha uma leve paixãozinha por ele. É, é ridículo que eu tenha dezesseis e ainda tenha essas quedinhas de criança, mas, eu juro, não é nada grave. Já sei o nome de todos os nossos futuros quatro filhos e a cor do papel de parede do banheiro da nossa casa de praia em Angra dos Reis, mas, pff, isso não significa absolutamente nada.

– Ai que droga, os meus pés estão doendo. – Marcela reclama, me tirando dos meus pensamentos felizes. - Ainda falta muito? Eu tô cansada. Acho que rasguei a droga da minha saia. Tem muito mato aqui. Não quero mais andar!

– Será que você não cala a boca?

Veja bem, eu nem percebi que estava falando, até realmente falar. Foi como pensar muito alto. Percebi a besteira feita quando Marcela parou e balançou sua cascata de cachos na minha direção, com as sobrancelhas muito levantadas.

– Como é que é? A mosca morta disse alguma coisa?

Meu sangue todo subiu pras bochechas e baixei os olhos para o chão, incapaz de reagir. Não só porque eu estava com o namorado dela fazendo flexões nu na minha cabeça há poucos segundos, mas porque eu não conseguia mais encarar Marcela diretamente. Nos últimos anos toda a figura dela parecia ter poder demais para mim, a juba de cachos perfeitos, os olhos felinos e ameaçadores, tudo era a mais pura segurança opressora no estilo Meninas Malvadas. Ela era como uma Regina George versão tupiniquim. É estranho lembrar que há alguns anos atrás eu encontrava esses mesmos olhos ferozes me acordando de madrugada, desesperados, porque ela tinha feito xixi na cama e estava com medo de apanhar.

Vini também parou para olhar pra mim, esperando alguma reação, uma provocação, uma briga que deixasse a noite mais interessante, e meu corpo estúpido reagiu corando mais ainda. Apenas. Grande, grande eu!

– A Júlia estava me dizendo para respirar pela boca – Eduardo disse, depois que ficou bem claro que eu não conseguiria responder. – Porque eu acho que vou desmaiar. Não podemos descansar um pouco? Não tô mais nem sentindo as minhas pernas.

Marcela pareceu satisfeita, já que virou pro seu caminho de nariz empinado e continuou reclamando, agora pra Yasmin.

– Por que o casalzinho aberração do ano veio com a gente? Como se já não bastasse essa droga de floresta besta. Anda, Vini.

Eduardo me olhou com um sorrisinho solidário, enquanto minhas capacidades de resposta voltavam aos poucos. De todos nós, ele é o que parece mais deslocado no ambiente rústico da floresta. A calça de moletom e o cabelo loiro bagunçado dele fazem parecer que a Yasmin o tirou da cama pra vir pra cá, o que provavelmente é verdade. Apesar do cabelo dele parecer uma orgia de trigo, tipo, o tempo inteiro. Eu já pensei em deixar um pente anônimo na cadeira dele da escola. Ainda considero muito a ideia.

– Não precisava ter feito isso – eu disse, e talvez, se as pessoas fossem adjetivos, o meu também fosse Ingrata. Em minha defesa, eu poderia me livrar sozinha da Marcela, mesmo que meu cérebro dê uma pifada com Vini por perto, e não quero que ele pense que estou devendo lhe devendo coisa alguma.

Tudo o que eu sei sobre Eduardo é que ele se mudou para nossa cidade no início do ano e então passou a ser da minha turma e que pelo menos duas vezes por dia eu o pego com o rosto virado para mim lá da primeira fileira de cadeiras. É uma situação estranha e frequente e eu não confio no modo entusiasmado como ele insiste em me dar ois e bom dias como se fosse uma recepcionista de supermercado. Na real, eu não faço ideia de qual é a dele e nem faço a mínima de porque Yasmin chamou logo nós quatro para estar aqui.

– Não achei que precisava, mesmo – ele diz, muito humilde. – Eu sou Eduardo, aliás. Nós estudamos juntos.

É claro que eu sei que a gente estuda junto. Desde janeiro você anda me espiando. Você é um péssimo espião, Eduardo.

Não sei o que tem nesse garoto, só sei que não me inspira confiança de modo algum. Talvez seja o seu óbvio relacionamento problemático com pentes. Não se confia em quem não curte pentes.

– Júlia. E não estou interessada em nenhum guarda-costas com senso heróico, muito obrigada. Já devo ter algum no meu plano de saúde.

A grosseria seria o suficiente para afastar qualquer ser humano comum, mas aparentemente Eduardo além de péssimo espião é estupidamente insistente, já que ele me acompanha com o sorriso bobo estatelado no rosto.

– Você é bem engraçada.

– É mecanismo de defesa. Tô chorando por dentro.

– Você não precisa fazer isso o tempo todo, sabe?

Eu paro de afastar de mim as teias de aranha que se formaram entre os galhos e ficam presas no meu cabelo por um instante para olhar para ele, esperando o resto do seu conselho suspeito.

– Fugir de todo mundo.

Que ótimo. Eduardo é do tipo amiguinho psicólogo. Do tipo me conte todos seus problemas e me deixe te mostrar o hakuna matata. É a última coisa que eu precisava.

– Valeu pela dica – debocho, passando a mão no jeans pra me limpar das teias da dona aranha. Eu não fujo de ninguém. Isso é idiotice. A minha melhor amiga enjoou da minha cara. Eu nunca mais tive amigos então. Eles iriam embora, mesmo. Isso não se chama fugir, isso se chama me prevenir de rombos emocionais. - Você nem me conhece, garoto.

Eduardo apenas sorri pra mim em resposta. Eu não sei dizer exatamente o quê tem na maneira dele me olhar diretamente mesmo naquela escuridão, seus olhos verdes brilhando como se fossem jóias que o Indiana Jones roubaria, mas eu sinto imediatamente que eu estou errada e que ele sabe, sim, muita coisa de mim. Na verdade, sinto como se ele soubesse de tudo. A sensação é invasora e inquietante e não gosto nem um pouco dela.

– Podem parar de chorar, seus bebezões. – Para meu alívio, Yasmin está gritando, toda triunfante, um pouco mais a frente. - Nós chegamos!

Eu me adianto até ela, porque não quero mais ficar perto do Garoto Hakuna Matata e encontro a grande clareira que dá acesso ao milharal de uns dois quilômetros à nossa frente, com uma casinha vermelha de fazenda um pouco mais além.

– Ei, eu conheço isso aqui. – Ouço Marcela dizer ao meu lado.

É claro que ela conhece.

– É a fazenda do meu tio – respondo. Ela se limita a soltar um “ah”. Deve estar se lembrando de quando vínhamos até aqui pra brincar, apostando corrida dentro do milharal, e de ficarmos juntas tremendo debaixo da cama, morrendo de medo do espantalho ganhar vida e vir nos pegar como meu tio dizia. Ou talvez seja só eu que ainda fica remoendo esse tipo de coisa.

– Cara, que surpresa. Mais mato. – Vini diz, desânimo e deboches puros fantasiados de o Exterminador do Futuro . – Sim, de verdade, era tudo o que eu queria, baby! Mato com mato e mais mato! Pega a chave do carro Marcela, nós vamos voltar.

– Não! – Yasmin insiste. - Deixem de ser chatos, seus chatos. Vai ser muito divertido!

– Você tá metida nisso, ô mosca morta? – Marcela me olha, desconfiada.

– Não, nenhum de vocês tá sabendo de nadinha. – Yasmin insiste. - Eu só pedi pra Júlia pra gente usar a fazenda, é surpresa pra todo mundo!

De repente, me dou conta que minha participação ali é exclusivamente por eu ser a única com uma fazenda enorme pra que Yasmin possa fazer o que quer que fosse que ela assistiu no Discovery Channel e ficou com muita vontade de imitar. Fantástico.

– Podemos ir logo com isso? – Vini funga um pouco e passa a manga da jaqueta no nariz. – Esse lugar fede a coisa podre. E eu quero voltar logo pra festa.

– Você não pense que eu não vi como estava olhando praquela vagabunda do segundo ano vestida de diabinha, senhor Vinícius. – Marcela provoca e Vini revira os olhos, enfiando a mão nos bolsos. – Eu digo que vamos até a puta que pariu se Yasmin quiser, mas voltar pra dar em cima daquelazinha é que você não vai.

– Pra onde agora, Yasmin? – Eduardo pergunta, ignorando a discussão do casal maravilha.

– Se eu contar não é mais surpresa. Andem, vamos logo, vocês vão gostar! – Yasmin assegura, animada, e passa a empurrar Eduardo em direção ao milharal.

Eu sigo o nosso grupo, como sempre, mais atrás. Começo a pensar porque, em primeiro lugar, eu deixei Yasmin me convencer a vir na antiga fazenda do meu tio em plena noite de Dias das Bruxas. Eu poderia muito bem estar feliz dentro de casa assistindo o quarto remake de Jason e comendo sucrilhos sem leite. Por que, também, Marcela e Vini aceitaram sair da festa a fantasia cheia de ponche de vodka e música ruim pra vir aqui? E Eduardo, que provavelmente também devia ter mais o que fazer da vida, tipo jogar xadrez com o gato do vizinho e dormir, que ligação ele tem com Yasmin?

O que eu sabia sobre a própria Yasmin era muito pouco, na verdade. Ela se transferiu para o colégio Santa Lélia há dois meses, vinda de ninguém sabe onde. No primeiro dia de aula ela veio até mim, balançando os cabelos loiros, e disse “Eu preciso de uns desenhos e me disseram que você é muito boa!”. Desde então nós duas passamos muitas noites trabalhando em projetos que ela tinha e assistindo Discovery Channel. Alguns pareciam peças de motor, outros pareciam satélites, eu desenhava tudo o que ela pedia mesmo sem entender e ela sempre parecia muito satisfeita, dizendo “Genial, ficou igualziiiiinho!”. Yasmin ainda tinha conseguido a obra de se dar bem com Marcela, era muito boa com esportes e, lembrando agora, até ajudou Eduardo com o projeto de ciências dele. Todo mundo gosta dela. Yasmin é tipo Jesus.

Ela saltita na frente do nosso grupo, vestida de fada do dente, com uma coroa de plástico na cabeça loira e asinhas brilhantes de feltro presas nas costas. Não sei quem são os pais dela, onde ela mora, o que planejou pra hoje. Não sei quase nada. Yasmin pode ser uma psicopata.

– Você não está levando a gente pra enterrar um corpo que escondeu aqui, está? – Pergunto, tentando parecer que estou brincando.

– Oh, não! – Yasmin vira os brilhantes olhos azuis cheios de glitter pra mim. – Mas essa é uma ideia fantástica! Vocês estão livres semana que vem?

A piada me deixa mais tranquila. Nós atravessamos o milharal até uma clareira aberta no meio, onde antigamente meu tio costumava deixar o espantalho e que agora é um buraco onde a primeira parte da plantação apodreceu e já tinha se desintegrado em folhas marrons pelo chão.

– Esse lugar tá bem caidinho, hein – Marcela fala, tirando dos ombros os restos de folhas mortas que caíram dos milhos ressecados.

– Meu tio não tem cuidado muito das terras dele. Cansou de ser fazendeiro - respondo, inevitavelmente na defensiva.

– Ei, eu já ouvi falar desse lugar – Vini fala, divertido. – Não é essa a fazenda daquele cara que estuprou e matou a filha, enterrou na floresta e fugiu pra não ser preso? O tal de Otaviano?

– É daqui que falam, mesmo. – Eduardo completa. -Todo mundo diz que esse lugar agora é assombrado pelos espíritos que querem vingança pela garotinha.

Até eu já tinha ouvido essa fofoca bestas na escola e não gostava nenhum pouco delas.

– Isso é ridículo – torço o nariz. - Meu tio nem filha tem.

– Vai ver ele fez de vítima uma das cabras – Marcela diz, sem dar muita importância, e eu tenho vontade de enfiar uma das espigas de milho secas no ouvido dela.

– Finalmente, chegamos ao nosso objetivo! – Yasmin saltita até o centro da clareira e deixa cair alí a gigante bolsa em forma de dente que carregava. Ela se vira teatralmente para nós, com as mãos na cintura e parecendo uma fada de verdade em meio à plantação destruída. – Senhores, vocês devem estar imaginando porque eu os chamei até aqui essa noite.

– Não foi pra brincar de pique pega com ninfetinhas peladas no meio desse mato todo, imagino – Vini devaneia, chateado.

– Se for para sacrificar o casal esquisitice em nome do Dia das Bruxas eu tô super dentro – Marcela fala, mais animada do que eu gostaria.

– E pra ela você não faz nenhum conselho de psicólogo, garoto hakuna matata – Eu sussurro para que só Eduardo me ouça e ele franze a testa, sem entender.

– Vocês quatro foram escolhidos – Yasmin continua, apesar da nossa falta de clima. – para uma grande e importantíssima missão! Todos foram cuidadosamente selecionados por uma inteligência superior, a minha, graças às suas habilidades especiais e únicas.

Sim, a minha grande habilidade de ter uma fazenda vazia e mal assombrada. Quanto orgulho. Será que dá pra botar no currículo?

– Essa noite, vocês terão de ser fortes e corajosos. Não há como desistir. Voltar não é uma opção – Yasmin faz um suspense danado e abaixa para remexer no seu dente-bolsa. – Caminhos serão abertos, segredos serão descobertos e vidas mudarão, porque, hoje, meus queridos... Nós vamos abrir um portal.


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