Labirinto escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 10
Contrariando




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Várias taças de sorvete estavam sobre a mesa. Algumas praticamente cheias já que ele tinha provado só uma ou duas colheradas. DC olhava para o teto pensando em qual sabor maluco pedir daquela vez. Suas idéias tinham se esgotado e ele não sabia mais o que inventar, para alívio da sua garçonete que já estava perto de perder a paciência com aquele maluco.

“Fala sério, será que não tem mais nada legal pra fazer aqui? Aff!” Ele foi até a janela o olhar a paisagem lá fora, que lhe pareceu muito mais interessante e tentadora. Mas Licurgo foi enfático ao dizer o quanto era perigoso andar sozinho por aí.

Mesmo sabendo que era perigoso, seu instinto contrariado parecia falar mais alto. Quem sabe dar uma espiadela nas imediações da sorveteria? Talvez fosse seguro se não afastasse para muito longe.

O ID da Marina apenas acompanhou com os olhos o rapaz que saía pela porta e não fez nada. Por que deveria? Ela não era babá de marmanjo e ele precisava aprender uma coisa ou duas.

- É isso aí! Um grande passo pra um adolescente! – ele falou colocando o pé no lado de fora e parou um pouco.

Como nada aconteceu, continuou caminhando e olhando os monstros que andavam aqui e ali. Alguns eram gigantescos, outros menores e cada um mais feio do que o outro.

- Aê, finalmente criou coragem pra sair da concha! – uma voz falou e DC levou um susto ao deparar com uma cópia de si mesmo encostado numa pedra com os braços cruzados e um sorriso malandro.
- V-Você é o meu ID? – O outro foi até ele e se posicionou na sua frente. Eram exatamente iguais.
- Não.
- Rapaz, eu também tenho um ID! Que doido!
- Doido nada, é normal pra todo mundo. E aí? Rola dar uma voltinha? Esse pedaço de cá não tem graça nenhuma.
- Foi mal, o Licurgo falou que é perigoso andar por aí.

Seu ID deu uns tapinhas em sua costa e falou em tom despojado.

- Deixa eu te contar um segredinho: sabia que um ID não vive sem o humano?
- Sério?
- Se você bater as botas, eu sumo. Então fica frio que não vou deixar nada te acontecer.

DC finalmente se convenceu e seguiu seu ID de boa vontade. Até que ele parecia ser gente boa!

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Colher informações no mundo dos ID’s não deu em nada. A grande maioria dos monstros não era amigável e os poucos que se dispuseram a falar com ele não sabiam de nada, ou pelo menos fingiam não saber. Cansado e com os pés doendo, Licurgo voltou a sorveteria e logo viu que DC tinha desaparecido.

- Onde ele está?
- Saiu por aí. – A garçonete falou.
- E você deixou?
- Oi? Eu tenho trabalho a fazer, esqueceu? Relaxa, ele está com seu ID!

O louco levou as mãos à cabeça.

- Pior ainda! Droga, sabia que ele ia me dar trabalho!

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No início, aquele passeio foi muito divertido e interessante. Seu ID tinha razão. Longe da sorveteria tudo era mais legal. E também mais assustador. O clima ia ficando cada vez mais denso e pesado à medida que eles se afastavam. O lugar estava mais escuro, sombrio e por toda parte se ouvia gritos e rugidos.

- Na boa, acho que eu quero voltar pra sorveteria.
- Tranqüilo.

Os dois caminharam por mais meia hora e DC viu que a paisagem continuava assustadora do mesmo jeito. Não havia nada familiar ali.

- Ei, já disse que é pra gente voltar! Já deu pra mim.
- Então tá. – O outro falou e continuou andando.

Mais um tempo se passou e a paisagem ficou pior ainda, deixando DC nervoso e preocupado.

- O que tá pegando, cara? Eu já disse que quero voltar pra sorveteria.
- Ah, você quer ir pra mais longe? Vamos nessa!
- Como é? Eu falei que quero voltar pra sorveteria! PRA SORVETERIA! Você é surdo?
- Claro que não, colega! Eu te entendo muito claramente! Você disse que quer ir pra mais longe, então vamos!
- Não, você entendeu errado! – De repente ele caiu em si e viu que seu ID só estava lhe contrariando. Bem, era de se esperar. Por isso ele resolveu entrar no jogo. - Beleza, agora mudei de idéia. Me leva pra bem longe da sorveteira. Beeeem Longe!

Eles continuaram andando e DC viu que a paisagem não melhorou em nada.

- Pra onde a gente tá indo?
- Pra mais longe da sorveteria, ué!
- Peraí! Mas eu pensei que você fosse fazer o contrário!

Seu ID voltou-se para ele, olhando-o com os olhos verdes e brilhantes e um sorriso perverso cheio de dentes pontudos. O rapaz gritou de susto com aquela visão horrorosa de si mesmo.

- E estou fazendo o contrário! O contrário daquilo que você espera! Hahahaha!
- Você é doido! Quero saber disso mais não!
- Então você me acha maneiro e quer continuar a brincadeira? Que legal!
- Pára com isso, tá me assustando!

A forma do seu ID foi mudando diante dos seus olhos até se transformar numa grande massa verde disforme. Sua boca soltava um líquido verde-escuro nojento e viscoso e ele parecia não ter olhos.

- Isso aí é sua verdadeira forma? Que nojento!

Um grande olho se abriu e DC viu sua imagem refletida nele como um espelho.

- Cara, sua verdadeira forma é legal demais!
- Eu não disse isso!
- Foi exatamente o que quis dizer!
- Pára, eu tô de saco cheio!
- Continua, tô adorando essa parada!
- Então tá, continua fazendo isso!
- Então tá, continua fazendo isso!
- Ei! Você repetiu o que falei!

O mostro deu uma risada grossa, espalhando aquela meleca verde por todos os lados e o reflexo do DC em seu olho continuou falando.

- Eu sempre faço tudo o contrário! Não só do que dizem como também do que esperam! Eu contrario todo mundo, até a mim mesmo!
- Mentira! Eu não contrario a mim mesmo! Sempre faço aquilo que tenho vontade!
- Faz mesmo? Será que faz?

No espelho, DC viu várias passagens da sua vida, a começar pela infância quando ele fazia coisas que muitas vezes nem tinha vontade só para ser do contra. Numa delas, ele aparecia comendo uma receita maluca da Mônica mesmo não querendo comer. O gosto estava horrível, mas ele falou que estava ótimo.

Em outra, ele foi almoçar na casa da Magali e saiu de lá morrendo de fome porque queria fazer o contrário do que sua amiga comilona fazia. Ele dizia e fazia o contrário do que pensava, elogiava quando queria xingar e xingava quando queria elogiar.

Mesmo na adolescência esse hábito não mudou muito e ele reviu o dia em que Mônica lhe pediu em namoro e sua resposta foi não. Tudo em nome da contrariedade.

- Peraí, eu só fiz isso porque queria que ela se entendesse com o Cebola primeiro! Não tem nada a ver com contrariar!
- Eu fiz isso porque ela esperava que eu fosse dizer sim, então disse não!
- Mentira, eu não queria mesmo!
- Tudo o que eu queria era ter dado um abraço bem apertado nela e um grande beijo!
- Desgraçado! Você não sabe nada, tá legal? Fica só repetindo ao contrário tudo o que eu digo! – ele gritou sentindo vontade de ir para cima daquela coisa.

Seu reflexo começou a rir e voltou a falar.

- Eu apenas reflito o contrário do que você quer e sente! Por isso sou essa massa disforme! Você se molda de acordo com o que o mundo ao seu redor determina, só que ao contrário!

DC pegou uma pedra e atirou no olho do monstro num ataque de fúria.

- Tá falando besteira! Eu tenho personalidade própria!
- Indo contra o que quer para contrariar todo mundo? Dando um fora na garota de quem gostava só porque o contrário era esperado de você?
- Eu... eu... – Ele começou a chorar de raiva e desespero.
- Pode negar o quanto quiser porque sei que tudo é o contrário!

Ele jogou outra pedra contra o espelho e falou com o dedo em riste.

- E daí que eu faço as coisas ao contrário? É assim que vivo, é o que sou! Todo mundo é Maria vai com as outras! Eu não!
- Claro que não! Você é Maria vai CONTRA as outras! Hahaha!
- Imbecil!
- Fazer ou deixar de fazer algo porque todos fazem ou espera é a mesma coisa! De qualquer forma, suas decisões dependem de outras pessoas. Então, já era seu idiota contrariado! Você é assim e será sempre assim, querendo ou não. Aliás, é bem provável que continuará sendo contrariado mesmo estando contrariado!

O rapaz desistiu de tentar argumentar com aquela criatura e caiu de joelhos no chão com as mãos sobre a cabeça que doía e latejava. Será que o monstro estava certo? Sua vida era somente ir contra tudo, inclusive ele mesmo e seus sentimentos? O que era mais importante? Ser sincero consigo mesmo ou apenas nadar contra a maré?

- Vamos, não fique assim! Aceite seu destino que será muito melhor pra você! – O monstro falou aumentando aos poucos de tamanho. – Seremos grandes contrariados! Sempre na contramão do mundo, sempre fazendo tudo ao contrário! Vivendo para chocar, transgredir, contrariar!
- Mesmo indo contra meus sentimentos? É doideira, cara!
- Você não quer levar a contrariedade ao extremo? Então tem que contrariar tudo!
- Contrariar tudo... até meus sentimentos... – ele murmurou com os olhos cheios d’água. Era isso mesmo que ele queria?

Mas então ele não estaria sendo autêntico. Será que importava mesmo a reação das outras pessoas e o que elas pensavam? Ou sua felicidade deveria ser mais importante? Mais uma vez ele lembrou de quando deu um fora na Mônica, indo contra seus sentimentos por ela. Adiantou alguma coisa contrariar?

Não teria sido melhor ter arriscado? Pensando bem... talvez ele tivesse contrariado apenas por ser mais fácil, para não ter que enfrentar uma situação nova e assustadora. Poderia ter dado tudo errado, mas poderia ter dado certo também. Como saber sem experimentar?

Ele sempre achou que contrariar era melhor porque detestava o caminho mais fácil. Só que aquilo acabou se tornando o caminho fácil, dos hábitos repetitivos, de agir somente dentro do que ele conhecia. Talvez estivesse na hora de tentar algo novo: ser realmente sincero consigo mesmo independente de estar contrariando ou seguindo o senso comum. Isso não deveria importar e sim sua felicidade e bem estar.

- Quer saber de uma coisa, eu monte de catarro fedorento?
- Como é?
- Sim, eu sou contrariado. Gosto de viver em antagonismo, quando as coisas não estão a meu favor!

O monstro gritou vitorioso.

- Então eu estava certo o tempo inteiro!
- Ouso discordar! Meu irmão falou uma vez que eu sou assim porque gosto de ser desafiado, de pensar nas saídas mais originais! Gosto de provar coisas diferentes sim, de ver por mim mesmo se algo é bom ou não ao invés de ir na opinião da maioria! Mas quer saber? Você acaba de me ensinar uma lição muito importante!
- Eu... eu... ensinei? – seu reflexo falou visivelmente confuso.
- Sim! Ensinou que mais importante do que ser do contra, é ter opinião! E que mesmo contrariando tudo, não posso contrariar meus sentimentos! Então daqui por diante, serei sincero comigo mesmo! E se seguir o senso comum for o melhor pra mim, então eu sigo!

A criatura deu um rugido e foi diminuindo de tamanho.

- Não! Não! Viva sua contrariedade, contrarie o mundo!
- Vou continuar contrariando o mundo, fica tranqüilo. Só que do jeito certo!
- Ahhhhh! – o monstro diminuiu ainda mais de tamanho até se transformar em um card, que foi parar nas mãos do rapaz.
- Um card? Que maneiro! Agora vou levar ele na minha carteira (pedala!) Ai! – alguém deu um forte tapa na sua cabeça e ele viu Licurgo atrás dele.
- Seu tapado, eu falei pra me esperar na sorveteria e você me desobedeceu!
- É que... que...
- Anda, vamos embora porque eu não consegui nada nesse lugar.

Os dois saíram dali e sem DC saber como, foram parar na rua do colégio. Ele estava tão impressionado com o que tinha acontecido antes que nem se deu o trabalho de perguntar como tinha ido parar ali e seguiu Licurgo até sua casa relatando a experiência com seu ID. O louco apenas ouvia sem falar nada. Quando chegou a sua casa, Licurgo viu uma jovem sardenta com grandes óculos sentada na calçada com um livro no colo. DC a reconheceu na hora.

- Ramona?


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