Encanto Desperto escrita por xxBlackMorphinexx


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/429087/chapter/1

ENCANTO DESPERTO

“Embora Cinderela tivesse que vestir roupas velhas, era ainda cem vezes mais bonita que as irmãs, com seus vestidos esplêndidos.”

****

Enquanto limpava a grande lareira de pedra do salão principal do castelo Roshestter, Bella divagou sobre os preparativos do baile real. Suas irmãs passaram o dia inteiro organizando-se: demorados banhos mornos e óleos perfumados, vestidos de cetim e veludo revestidos de zibelina circulando de quarto em quarto; ao seu bel prazer joias, sapatos, casacos de pele — tudo de mais valioso que havia no castelo posto a disposição de Dragão e Lagarto, as irmãs estrangeiras de Lady Bella Roshestter, primeira filha do Lorde Roshestter, proprietária do castelo. Ou deveria ter sido se sua madrasta, A Ogra, não houvesse tomado tudo o que lhe pertencia antes que seu pobre, débil, senil pai falecesse.

Agora, o mais próximo que chegava de ser uma Lady, era quando convidados beberrões, glutões, inconvenientes invadiam as muradas de pedra para uma quinzena na companhia de Ogra, ou um par de dias para caçadas de inverno infrutíferas — já que todos os animais das proximidades pareceram viajar em um eterno veraneio para o sul. Ogra não parecia feliz com a situação, querendo desfazer-se do castelo e mudar-se para uma propriedade mais quente, fazendo com que a sociedade aproximasse-se do que restara da família Roshestter. O que era uma calúnia, tendo em conta que a única filha do lorde estava ali, esfregando e encerando chão, lavando pilhas e mais pilhas de roupas, servindo de mucama para três pseudocriaturas que usurparam — sem dó nem piedade — tudo aquilo que era seu.

Exausta, os braços doendo pelo esforço, Bella espreguiçou-se em sua posição ajoelhada, buscando aliviar os tendões das costas que reclamavam a cada movimento. O pano em sua mão estava encardido, sujo de fuligem e cinzas, parecendo um verdadeiro desastre. Seu braço magro e pálido, coberto com a negritude das sobras de carvão, pareceu-lhe estranho e fora de lugar; ah, se seu pai pudesse vê-la! Teria-lhe passado como irreconhecível. Sua delicada pele de cetim estava rugosa e grossa, seus dedos longos de pianista com calos e bolhas, os pés de lady com solas semelhantes a de uma camponesa. Ela caminhou para a entrada da lareira — engatinhando como um bebê —, as feridas de seus joelhos abrindo, as unhas enchendo com as cinzas espalhadas, sua língua espessando-se com o sabor amargo de terra e mofo, a garganta fechando-se, sufocando-a; Bella tossiu quando conseguiu alcançar o sufocante oxigênio estático do salão, avaliando as partículas de poeira pairando no ar parado dos cômodos fechados — um mínimo raio de sol espreitava da fresta de uma janela, lançando uma lâmina dourada em um aposento completamente lúgubre.

Ogra havia dado-lhe uma série de tarefas, uma mais humilhante que a outra, para tratar de deixar a casa respeitável para os convidados que chegariam a poucas horas. Das empregadas, Cozinheira e Governanta, não poderiam esfregar o chão ou a lareira, eliminando cinzas e insetos indesejados. Seria ela, Bella, a responsável pela função de polir a prata, lustrar os móveis, trocar lençóis, espanar mosquitos e teias de aranha dos muitos cômodos inutilizados ao longo dos anos. Ogra odiava visitas apenas pelo fato de ter de dividir a safra que com muito custo crescera no inverno implacável de seu país; o egoísmo corroia-lhe os olhos quando uma pessoa corajosa comentava a possibilidade de mais alguém invadir o espaço que com muito esforço roubara de Bella. Ogra grunhia e resmungava, e só aceitara que o baile real acontecesse nas paredes cinzentas de Roshestter porque o rei e a nobreza trariam mantimentos para toda a corte, tornando o papel de Ogra como anfitriã muito mais simples e superficial, já que ela não ofereceria nada mais que um castelo vazio e sem lacaios suficientes.

E apenas de imaginar o inferno que seriam os dias sendo escrava de toda uma corte supérflua e esnobe, uma forte dormência abateu o corpo frágil e inanido de Bella, fazendo-a desejar dormir por todo o período que duraria o baile.

Suspirando, puxou o esfregão e o balde de latão, caminhando em passos dispersos e letárgicos rumo ao seu trabalho ininterrupto.

***

O salão brilhava; o que era de impressionar já que Ogra não escondia de ninguém a sua avareza com os cuidados domésticos mais básicos — Bella tivera de usar banha de porco aquecida e refinada como óleo de peroba improvisado. Um sorriso de escárnio pintou seus lábios descarnados e pálidos só de imaginar como agiriam os lordes e ladies presunçosos se soubessem que seus mais que divinos dedos tocavam uma mistura repulsiva como tal que Bella besuntou cada superfície de madeira.

Bella, a verdadeira Lady Roshestter, estava vestida com um simplório conjunto de serviçal — vestido preto, avental branco, luvas de couro desgastadas —, aguardando na porta principal com os braços estendidos a espera de casacos e sobretudos. Seu estomago roncava — e da última vez que pode verificar —, seu rosto estava tão descorado que parecia mais uma folha do papel, como a que viu na escrivaninha de Dragão.

Os primeiros membros da corte real chegaram com uma balbúrdia excêntrica e arrogante, reclamando que a lareira não estava quente o suficiente ou que os lençóis fediam a naftalina. É claro que a culpa da casa não estar em ordem caíra sobre Bella, que aceitou as bofetadas como uma marca de honra; além do que estava tão pálida que uma cor em suas faces era mais um ganho do que uma ofensa.

Velas de cera de abelha espalhavam-se, clareando o grande salão como um festim dos deuses, fazendo cintilar os elegantes vestidos, dando a pérolas e pedras preciosas que adornavam os pescoços e testas das mulheres um fogo que ardia do núcleo à superfície; os homens não ficavam muito atrás com seus lenços de cetim e bengalas com cabo de marfim. Bella lembrou-se dos ciganos e suas danças de véus acetinados, transparentes, que passaram uma temporada em Roshestter apenas porque ela — em sua muito inocente infância — implorara por seus espetáculos em um nível diário.

Ela observou Lagarto travar um colóquio com um respeitado membro da nobreza, talvez um Duque, comprometido. Riu-se interiormente com a pobre herança genética herdada por Dragão e Lagarto: pequenas, cabelo preto crespo, narizes proeminentes, verrugas. Mesmo sem uma alimentação regular, Bella ainda era mais bela que Dragão, Lagarto e Ogra em seus melhores dias.

Distraindo-se com a alta sociedade burguesa, esqueceu-se de seu ofício e perdeu quando as portas duplas abriram-se de um rompante com um soco de neve e vento frio em seu rosto. Sufocada, virou a face para o mais distante que podia para afastar-se do rigoroso inverno que tentava com todas as suas forças invadir o calor induzido de dentro do castelo, posto que uma mão enrolara-se em seu antebraço e puxa-a para um peito largo. E como fogo, um evento ígneo, ela sentiu-se aquecida por peles e couraça, ainda que pela mão que a mantinha em pé.

Bella levantou seu rosto e deparou-se com um gigante huno com o rosto marcado por uma cicatriz que nascia do pé de seu cabelo até o osso de sua mandíbula, deixando-o com um aspecto desagradável e varonil. De armadura de couro, pele de urso e veludo macio, o gigante ganhou feições tenebrosas com a escassa iluminação ambiente — sombras fantasmagóricas dançando em seu rosto — fazendo arrepiar-se com medo. E pior que a cicatriz ou o rosto curtido e de ossos sobressalentes, foram seus olhos negros como ônix encarando-a fixamente, uma gota rubra de luxúria escorregando pela íris escura como café turco, um levantar de lábio também chamado de sorriso, uma sobrancelha densa erguendo-se em desafio.

Este é perigoso, pensou Bella lutando para livrar seu antebraço do aperto quebra ossos do homem.

Contudo, dezenas de homens como ele invadiu o castelo — imobilizando os convidados e intimidando as damas com apenas um olhar; o suficiente para que muitas delas chorassem como menininhas. Bella mesma queria derramar algumas lágrimas, mas o gosto amargo da vingança encheu sua boca ao ver o trio de bruxas que arruinara sua vida tremendo como varinhas verdes. A satisfação de ver suas inimigas em posição tão vulnerável deve ter enchido seu semblante visto que o huno puxou-lhe o queixo com a mão e avaliou suas características com um olhar impassível.

O castelo estava cheio de cores, um brilho feroz de luta, o borrifo de sangue nas paredes, a sua sede de vingança saciada e passando para um segundo plano desde que percebeu que faria parte da carnificina de dentro do castelo — seu cadáver exposto dos lados de fora no portão —, ou pior já que era uma reles empregada. Ela imaginou sua cabeça untada em agrião, negra e dura, em um espigão na amurada — os corvos saciando sua fome quando homens haviam derramado sua luxúria em seu corpo.

Rangendo os dentes, lamentou por sua alimentação precária por tirar dela a oportunidade de lutar.

Assistiu a impotência tomando conta de seu corpo, os muitos membros da corte — importantes lordes nobres — ajoelhados, humilhados, quando o fio da navalha tocava em suas gargantas pálidas e flácidas, rompendo tendões e a artéria, libertando o sangue azul que lhe corria nas veias — Bella surpreendeu-se que a cor era tão rubra quanto o sangue que preenchia o corpo de qualquer camponês. As mulheres eram escolhidas ao léu, suas posses tomadas, seus espartilhos cortados, violadas a vista de quem quisesse ver. Os invasores urravam, grunhiam, tomando o que não lhes pertencia, fazendo festa em um mundo que não lhes cabia. Sendo os algozes de pessoas arrogantes, mas ainda pessoas.

Os bárbaros olhavam o brilho do ouro e da prata com expressões famintas, juntando-as em uma montanha de joias, de moedas, seda, veludo e peles caras. Corpos espalhavam-se pelo chão, sem substância ou sem vida, a sanidade se esvaindo, uma tristeza desmesurada cintilando em suas pupilas coloridas com fogo.

O fedor de cinzas, madeira queimada e sangue ocupando o ar pesado do castelo Roshestter fizeram com que seu estomago vazio revolvesse, a acidez da bile na boca do esôfago queimando, o desconforto causado pela cena repetindo-se em sua mente. O medo, o temor e o ódio misturados em sua cabeça, fazendo-a ficar com os olhos turvos; o cansaço abatendo seu corpo. E Bella temeu desmaiar nos braços do huno em um momento inconveniente em que deveria mostrar força.

Bella sentiu seus pés serem arrastados, nem mesmo a ponta tocando o chão, as cenas mudando, os lugares escurecendo gradativamente, pequenos pontos de luz — as estrelas — revelados em janelas abertas, o ar puro da noite entrando e limpando o odor de mofo que se acumulou nos sete anos de calvário sofrido como escrava do Trio Bruxo.

Uma porta aberta — seu antigo quarto —, um farfalhar de roupas, seu corpo esqueleticamente subnutrido jogado delicadamente no colchão nu, o rosto do huno — Zsadist, sussurrou sua mente exausta — aparecendo em suas vistas enquanto mãos calosas e grossas como as suas despiam-na do vestido de algodão grosseiro. Ela sabia que ele veria os dígitos roxos em sua pele pálida, assim como mordidas e chupões deixados há poucos dias quando se encontraram pela última vez para arquitetar a invasão. Ele, Zsadist, saberia que o rei seria o último a chegar com carroças e mais carroças de alimento e forragem — a saída para o povo do selvagem —, e como recompensa pela informação mataria ao nobre e a corte inteira, da maneira mais brutal possível. Porém, Bella temeu por sua vida; teria o povo selvagem o mesmo senso de honra dos nativos de sua pátria? Seriam corruptos e bastardos, apunhalando-a pelas costas quando menos se esperasse?

Estaria Bella assinando sua sentença de morte?

Bella nem ao menos necessitou refletir por mais tempo com Zsadist dedilhando suas costelas proeminentes e o osso saliente de seu quadril; ela aguardou estranhamente ansiosa, enquanto ele desfazia-se de suas roupas furtadas e mostrava sua musculosa constituição recortada e desfigurada com cicatrizes de guerra, tão reconfortantes e compatíveis com o interior de Bella. Sua excitação era visível mesmo debaixo da calça de malha, uma larga e dura ereção que a fizera gritar quando a invadiu pela primeira vez — quando há sete anos um grupo de ciganos se estabeleceu temporariamente em Roshestter. Na época, Zsadist era um belo e bem formado bailarino, sem cicatrizes e com um esplendido cabelo dourado que caía em ondas espessas. O único com cabelos dourados, em todo um povo moreno, Zsadist chamou sua atenção — e ele, em troca, chamou-a para sua cama.

Porém, o inverno duradouro e a diminuição na caça fizera-o apelar para seu lado mais primitivo — e seu lindo cabelo loiro fora perdendo o tom até tornar-se um fraco castanho claro. Zsadist transformou o povo cigano em uma elite de caçadores impiedosos.

Bella parou de devanear quando Zsadist — novamente o amante cigano sedutor — beijou-lhe as juntas de cada dedo, os lábios subindo por seu braço, o ombro encovado, a clavícula saliente, mordendo o pescoço, o maxilar e as orelhas. Quando estava satisfeito, lhe beijou os lábios, arrancando uma série irregular de suspiros, sua língua doce como confeito derretendo-se em contato com a sua cheia do amargor da realidade.

Uma lágrima rolou pelas faces, novamente, descoradas de Bella quando Zsadist tomou-a com suavidade e ternura — um contraste gritante com sua força e vitalidade. Seu pênis preencheu-a perfeitamente, batendo em seu útero, uma prazenteira mistura de prazer e dor. Como sempre que se deitavam, ela sentiu Zsadist morder-lhe o pescoço com força o suficiente para marcá-la por dias, e logo seu clímax explodiu nas entranhas frias e secas de Bella.

Zsadist, o cigano selvagem, deitou a cabeça escura em seu peito, respirando com dificuldade, uma mão grossa permanecendo em seu peito rosado em sinal de posse. Bella puxou seus braços do peso de Zsadist, desfazendo as tranças, permitindo que seu cabelo mogno ficasse solto.

Ela observou quando Zsadist — muito relutantemente — jogou seu conjunto de braços para fora da cama e voltou com um anel. Um lindo anel com uma delicada safira no meio, rodeado por diamantes. Um sorriso apareceu em seu rosto quando o anel coube em seu dedo anelar da mão direita com perfeição.

E, bem, ser a Lady do castelo Roshestter não era tão importante assim.

.

.

.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Encanto Desperto" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.