Os Últimos Morgenstern escrita por Luna MM


Capítulo 28
Lágrimas e Beijos


Notas iniciais do capítulo

"Ó irmão, contigo foram generosos os deuses.
Enquanto o mundo subsiste, durma, e fique satisfeito.
Sinta-se contente enquanto se esgotam os anos;
Agradeça pela vida, os amores e os encantos;
Agradeça pelo viver, ó irmão, e pelo expirar,
Pelo doce último ruído dos pés dela, e de seu respirar,
Pelos presentes que lhe deu, graciosos e poucos,
Lágrimas e beijos, essa sua dama."
— Algernon Charles Swinburne, "The Triumph of Time"



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No instante em que Sebastian reconheceu a voz de Clary, os ventos voltaram a circular pelo lugar em que ele ainda estava, dessa vez somente para trazer uma luz brilhante que se arrastava aos poucos pelo céu, desenhando linhas que levavam luz à escuridão. Pousando a poucos centímetros do chão, os ventos ampliaram o brilho iluminado até que ele se transformasse numa espécie de Portal que parecia flutuar. Curioso, Sebastian aproximou-se alguns passos do Portal imenso diante dele, mas não conseguiu enxergar ou escutar nada através dele. Se entrasse ali, podia muito bem parar em algum lugar pior que aquele, se houvesse um.

Sebastian, abra os olhos. E volte para mim. Dessa vez, ele tinha certeza que era a voz de Clary: doce e angelical, inconfundível. As palavras atingiram a mente de Sebastian em cheio, quase como se fossem feitas de aço; tão alto e claro que ele podia jurar que ela estava ali, ao seu lado. Hesitante, ele se virou e olhou para trás, apenas para se deparar com a imensidão em terras escuras e destruídas, banhadas pelo fogo vivo que mais se parecia com sangue quente correndo pelo chão como água em um dia chuvoso, sob o olhar de uma lua também vermelha como sangue. Ao longe, ele ainda podia escutar os gritos desesperados das almas que berravam no fundo do abismo, enquanto seus pedidos de misericórdia e piedade eram ignorados e esquecidos pelo Céu.

Sebastian sempre soube que aquele seria o seu destino final, a sua última parada. E por algum tempo, ele até mesmo pensou em como seria reinar num lugar como aquele. Sentia certo triunfo ao se imaginar mandando em um exército de almas perdidas e alimentando seus desejos de vingança, cada vez mais aquecidos pelo fogo do Inferno, assim como o desejo que ele também nutriu dentro de si por todo esse tempo. Parecia apropriado.

Mas, por alguma razão, estar ali sozinho fazia com que Sebastian se sentisse mais perdido do que nunca. Ele queria reinar, é claro que queria. Queria construir o legado Morgenstern de um jeito que seu pai nunca havia feito, mas aquela solidão o incomodava mais do que o habitual. Ele nunca se incomodou em estar sozinho; na verdade, depois de um tempo, até preferiu a própria companhia do que de outras pessoas. Mas não mais. Algo havia mudado drasticamente. Agora, mesmo sentindo que poderia muito bem arranjar uma maneira de se encaixar naquele Inferno e assumir sua posição, parecia que algo estava faltando. Mesmo tendo outra oportunidade de reinar, Sebastian não se sentia satisfeito. Completo.

Devagar, ele olhou de volta para o Portal que ainda iluminava o ambiente, provavelmente de onde a voz de Clary havia saído. Era ela que faltava: sua irmã. De algum jeito, ele havia desenvolvido algo dentro de si que precisava de Clary ao seu lado, para assistir e dividir o triunfo dele, como os dois últimos Morgenstern. Esse era o destino deles; deixar o nome Morgenstern como um símbolo no mundo Nephilim. Qualquer outra coisa era impensável.

Sebastian engoliu em seco e voltou a se aproximar do Portal, parando alguns centímetros daquela janela brilhante e misteriosa. Ele piscou, distraído, e olhou por cima do ombro pela última vez, quase esperando que Lilith ou Valentim aparecessem de repente e o puxassem de volta para o Inferno, onde ele realmente pertencia. Balançando a cabeça, voltou a encarar o Portal, disposto a nunca mais deixar que ninguém tomasse controle pela sua vida. Prendendo a respiração, apesar de não precisar respirar, e sentindo o coração em seu peito acelerar, embora não batesse mais, Sebastian deu um passo e focou seu pensamento em Clary; apenas nela. E caiu dentro do Portal.

A escuridão o engoliu por inteiro e Sebastian se permitiu afundar-se nela confortavelmente, fechando os olhos com força e esvaziando sua mente. Para sua surpresa, ele sentiu algo tão forte ser puxado para dentro de seus pulmões que tossiu um pouco antes de lembrar-se da sensação de poder respirar novamente. Enquanto ainda caía na escuridão, ele sentiu a pele de seu corpo inteiro formigar, como se o sangue dentro de suas veias tivesse voltado a correr novamente, de repente. Erguendo as sobrancelhas, Sebastian abriu os olhos e encarou suas mãos tocarem uma a outra, devagar, enquanto ele se acostumava com a sensação do toque, a sensação de sentir alguma coisa de novo, algo que o fizesse acreditar que não era mais um fantasma. Um ninguém. E então, o silêncio da escuridão que ainda não havia tido um fim foi quebrado por um som alto e contínuo, quase como um padrão certo de batidas. Sebastian procurou a origem do barulho com o olhar, virando a cabeça para os lados, até perceber que o som não vinha do Portal, mas de dentro de seu peito. Seu coração havia voltado a bater.

E nesse exato instante, tudo desapareceu. Por um momento, Sebastian achou que não havia realmente deixado de estar morto; talvez ele só tivesse sido transferido para outro lugar pós-morte e aquele Portal havia sido enviado por alguém de muito poder lá de cima ou, na mais provável hipótese, lá debaixo. Perdido na própria paranoia, Sebastian levou um susto quando deixou de cair e atingiu o chão. Mas, para sua surpresa, não houve impacto; era como se algo tivesse amortecido a queda do corpo de Sebastian ou, então, como se o corpo dele que estivera caindo pelo Portal não fosse realmente físico. Sentindo-se fraco demais para tentar se mexer, ele prestou atenção em tudo que podia; a sensação de suas costas tocarem o chão duro e frio, as pedrinhas arranhando sua roupa de combate. Uma mão mexia distraidamente em seus cabelos, enquanto a outra repousava carinhosamente em seu peito, acima do coração. Clary, ele sabia, mesmo sem ainda ter aberto os olhos.

– Clary – Sebastian ouviu a voz de Jace dizer, próxima a ele. Tentou abrir os olhos, mas suas pálpebras fracas não o obedeceram. A morte ainda não havia devolvido sua energia. – Você tem que deixá-lo ir.

– Não! – Clary retrucou, a voz cheia de urgência. – Ele está vivo.

Sebastian sorriu por dentro e juntou toda a pouca energia que ainda lhe restava para arrastar uma mão até seu peito, onde a mão de Clary ainda repousava, e a colocou sob a dela, apertando-a gentilmente. Só esse pequeno gesto já esgotou suas energias, mas ele não se importava. Devagar, abriu os olhos aos poucos e enxergou pontos brilhantes até que sua visão se acostumasse à sua nova realidade, longe da escuridão e das brasas ardentes do Inferno. Conseguiu enxergar, bem a tempo, quando Clary desviou o olhar de Jace e olhou para a própria mão quando sentiu o toque dele. O rosto dela foi tomado por uma mistura de surpresa e confusão e, quando ela encontrou o olhar vivo de Sebastian, a alegria trouxe o sorriso de volta ao rosto dela.

– Você está vivo – ela repetiu, soltando uma risada suave. Os olhos verdes dela lacrimejaram e uma lágrima solitária rolou por seu rosto. Clary puxou o corpo do irmão para um abraço, que Sebastian, apesar de fraco, não recusou. – Você voltou para mim.

Sebastian tentou se afastar um pouco para olhá-la, mas seu corpo fraquejou e ele desabou no colo de Clary, o rosto apoiado no ombro dela. Ele lançou um olhar de urgência para ela que, felizmente, entendeu o recado e sacou a estela do cinto de armas, desenhando uma e outra iratze na pele dele um instante depois. Em questão de segundos, o corpo de Sebastian recebeu instantaneamente uma carga de energia e ele rapidamente se recuperou, levantando o rosto e parando a poucos centímetros do rosto de Clary.

– Deixe-me olhar para você – ele pediu, a voz rouca. Sebastian ergueu um dedo e o enrolou em um cacho vermelho do cabelo dela, tão parecido com fogo. Em seguida, desceu o polegar pelo rosto dela, acariciando a pele pálida, as sardas tão discretas que era preciso prestar atenção para perceber que elas estavam ali. Como ele podia viver o resto da eternidade no Inferno, sem olhar para aqueles olhos verdes? Olhos que, naquele momento, o observavam como se nunca o tivesse visto. – Você parece um anjo.

Um pigarreio interrompeu o momento deles num barulho brusco e Sebastian se sentiu tentado a enfiar uma espada no peito de quem tivesse feito isso. Ele ergueu a cabeça, afastando as mechas grandes de cabelo que caíam pela testa, e encarou pela primeira vez, desde que havia voltado, a clareira do Instituto onde ele havia conhecido a morte. Seus Crepusculares estavam ali, parecendo perdidos, como se não soubessem exatamente o que fazer desde que seu mestre os havia deixado. Entre eles, também haviam numerosos Caçadores de Sombras, todos com armas em mão e expressões furiosas no rosto, fuzilando Sebastian com o olhar como se, com isso, ele pudesse morrer mais uma vez. Sebastian segurou o riso e levantou-se.

– Sentiram minha falta? – Sebastian perguntou, elevando o tom de voz para que todos pudessem ouvi-lo. E abriu um sorriso. Só então, ele percebeu que estava dentro de um círculo improvisado pelo vampiro Simon, os irmãos Lightwood, o feiticeiro e Jace, todos virados de frente para os guerreiros em posição de luta, como se estivessem dispostos a brigar com quem se aproximasse dele e de Clary. Sebastian ergueu uma sobrancelha. – O que diabos é isso?

Em resposta, Isabelle bufou. Clary se levantou subitamente e parou diante de Sebastian, tocando suas mãos timidamente.

– Acabe com a guerra, Sebastian – ela pediu, calma.

– O quê? – Ele perguntou, estreitando os olhos. – Você ficou maluca? Eu acabei de voltar da morte, não entende? Isso é um sinal de que tenho mais uma chance para conseguir o que quero!

Assim que ele concluiu a frase, a multidão de guerreiros se movimentou e o barulho de armas ecoou pela clareira. Clary afastou a mão de Sebastian e cruzou os braços.

– Não seja idiota, não foi por isso que... – Clary começou a explicar, mas não teve a menor chance. Sua voz foi interrompida no ar quando Caçadores de Sombras começaram a avançar em direção a Sebastian.

Com o canto do olho, Clary captou o olhar confuso de Simon sobre o que ele deveria fazer. Ao seu lado, Jace havia abaixado a espada, lançando um olhar de desculpas para Clary.

– Me dê uma chance para conversar com ele – Clary falou, esperando que Jace pudesse ouvi-la. Ele pareceu hesitar com o pedido, mas levantou a arma mais uma vez, embora não parecesse mais capaz de atacar ninguém. E ela o entenderia perfeitamente se não pudesse; ela nunca pediria que ele atacasse alguém que conhecia só para que ela tivesse sucesso na sua missão estúpida.

– Sinto muito, Clary – Isabelle murmurou, ao lado dela. Alec estava junto dela, parecendo protetor. – Espero que você consiga o que quer, de verdade, mas não ficarei no caminho de alguém que pretende machucar Sebastian e saiba que isso inclui a minha mão. Acredito que os outros aqui tenham a mesma opinião. Ele é o inimigo aqui, ele merece.

A poucos metros de Clary, Sebastian ouviu a conversa e procurou uma arma no cinto, mas estava vazio, exceto pelo Cálice Imortal. Sua espada havia sumido. Soltando um palavrão antes, ele juntou os dois dedos mindinhos na boca e assobiou alto. Rapidamente, os Crepusculares voltaram a si e entraram em ação, atirando-se nos Caçadores de Sombras com armas em punho e olhos tingidos de vermelho em fúria. Isabelle e Alec rapidamente pegaram suas armas e foram ajudar alguém, provavelmente Maryse. Magnus e Simon foram para o outro lado. Apenas Jace continuou olhando para Clary por mais alguns instantes, até sair de perto, a espada na mão.

O barulho de metal contra metal invadiu a clareira à medida que os dois lados se enfrentavam, recomeçando a guerra. Dessa vez, o número de Caçadores de Sombras parecia maior que os dos Crepusculares, o que levava Sebastian a acreditar que enviados de Idris e dos outros Institutos haviam chegado enquanto ele estava inconsciente. Nada que algumas gotas não resolvessem, ele pensou, tocando o Cálice Imortal com os dedos da mão.

Um aperto em seu braço direito o puxou para o lado e Sebastian automaticamente virou o corpo, jogando a mão esquerda na garganta de quem o havia puxado, enquanto a direita se colocava acima do peito, empurrando o corpo, até ele perceber que a pessoa era Clary. O peito dela subia e descia embaixo da mão dele, a respiração ofegante, e os olhos verdes da irmã o encaravam com uma expressão indecifrável.

– Você me assustou, irmãzinha – ele disse, soltando-a. Mas, apesar disso, ela não pareceu relaxar.

– Venha comigo – Clary disse, puxando o braço dele em direção à uma área mais escondida da clareira, ao lado das paredes do Instituto. Dessa vez, ele permitiu que ela o guiasse.

Clary deu a volta por algumas árvores, grandes o bastante para esconderem os dois, e parou, soltando a mão de Sebastian bruscamente. Ela parecia irritada.

– Acabe com a guerra, Sebastian – ela repetiu, cruzando os braços. Quando ele não respondeu, ela jogou as mãos para o ar e suspirou dramaticamente. – Levante uma bandeira branca, fuja por um Portal ou somente saia correndo. Tanto faz, apenas dê um fim nisso.

– Por que eu faria isso? – Confuso, Sebastian franziu o cenho e, com os olhos negros brilhando, aproximou-se dela com cautela, um passo de cada vez. – Clary, por alguma razão eu estou tendo a chance de viver mais uma vez para destruir a antiga raça Nephilim. Isso quer dizer que estou fazendo algo certo, não percebe? É a nossa oportunidade!

Encostando-se no tronco de árvore atrás de si, Clary abaixou a cabeça, derrotada, e afundou os dedos no próprio cabelo, na tentativa de impedir que eles tremessem. Curioso, Sebastian levantou uma mão e a aproximou do rosto dela, num gesto carinhoso, mas ela a empurrou antes mesmo que Sebastian a tocasse. Ele recuou um passo, sem tirar os olhos da irmã.

– O que está acontecendo? – Sebastian perguntou. E quando Clary ergueu a cabeça para sustentar o olhar dele, haviam lágrimas em seu rosto. Ele ergueu uma sobrancelha, sem entender. – Clary, me diga o que diabos há de errado!

O que há de errado? – Clary repetiu, indignada, quase cuspindo as palavras. Ela balançou a cabeça e mais lágrimas caíram de seus olhos, mas ele notou que ela não chorava de tristeza. Parecia chorar de raiva. – Como pode ser tão cego?

– Mas que inferno, do que você está falando? – Sebastian perguntou, começando a se irritar também. Como ele podia ajudá-la se nem ao menos sabia qual era o problema? Fechou os punhos, nervoso, mas não moveu um passo sequer.

– Você é um idiota, Jonathan Christopher, é isso que está acontecendo! – Clary explodiu num grito, empurrando o corpo de Sebastian com as mãos, que recuou para trás mais por surpresa do que pela força dela. – Não importa o que eu faça, você sempre será o que sempre foi, não é mesmo?

Sebastian apertou os lábios até ficarem brancos, tentando manter-se no controle, mas ela o interrompeu antes mesmo que ele falasse uma palavra.

– Você quer guerra? Vá em frente então! – Clary disse, gesticulando com as mãos para a batalha do outro lado da clareira. – Não ficarei no seu caminho, mas também não impedirei que os meus amigos machuquem você. Estou fora!

– Você é minha irmã, uma Morgenstern – ele sibilou em resposta, trincando o maxilar. – Seu lugar é junto de mim, irmãzinha.

Dizendo isso, Sebastian acabou com a distância entre os dois em alguns passos e colocou as mãos na cintura de Clary, colando o corpo dele junto ao dela e aproximando os rostos, mas Clary virou o rosto bruscamente no segundo seguinte. Ele pareceu magoado, mas não se afastou.

– Você irá me deixar? – Sebastian perguntou, num sussurro tão baixo que Clary apenas pôde escutar porque a boca dele estava próxima ao rosto dela. De certa forma, ele quase parecia um menino mundano comum que acabara de ter o coração partido.

– Não me peça para me juntar a você, – Clary começou, ainda com os olhos colados no chão, incapaz de encarar os olhos cheios de tristeza e decepção dele – quando você ainda insiste em destruir o mundo, depois de tudo o que aconteceu.

Sebastian mal ouviu o que ela disse e um instante depois, já havia perdido o controle de si mesmo. Soando desesperado, ele agarrou um braço de Clary e a empurrou para o outro lado, onde havia uma parte do muro antigo de pedra que cercava a Igreja. Prendendo o corpo da irmã contra a pedra, ele colocou as mãos no rosto dela, uma de cada lado, próximo ao seu.

– Você não pode me deixar, não entende? – Sebastian disse, com firmeza. Clary respirava com dificuldade, por conta do corpo pesado dele contra o dela, mas manteve a calma e não tentou se mexer. – Eu preciso de você, Clary. Por favor.

– Você precisa de mim? – Ela repetiu, arqueando as sobrancelhas. – Porque às vezes eu tenho a impressão de que a única coisa que você precisa é guerra.

Sebastian soltou o aperto, permitindo que Clary respirasse com liberdade, mas não se afastou. Pela primeira vez em algum tempo, ele não tinha o que dizer, então ficou quieto e esperou que ela continuasse.

– Já parou para notar que desde que você voltou a viver, a única coisa que não passou pela sua mente foi o porquê de isso ter acontecido? – Clary perguntou, suspirando. – Dez minutos atrás você estava morto, Sebastian, consegue entender isso? Eu tive que ouvir o seu coração deixar de bater para tentar imaginar o que eu iria fazer dali em diante, depois de todo esse tempo que eu vivi com você!

Inconscientemente, Sebastian baixou o olhar e percebeu, engolindo em seco, que a roupa de Clary estava ensopada de sangue escuro. O sangue dele.

– Você tem ideia do que é ver um buraco sangrento no meio do peito de alguém que se tornou importante para você e simplesmente ter que aceitar que não há mais nada que você possa fazer para mudar o que aconteceu? – Clary continuou a falar, limpando as lágrimas dos olhos com as costas da mão. – Eu fechei os olhos e pedi para o Anjo trazê-lo de volta, sabia disso? De algum jeito, Ithuriel conversou comigo numa dimensão fora desse mundo e concedeu uma chance a você, porque eu o fiz acreditar que você merecia isso. Eu me ofereci para trocar de lugar com você, mesmo sabendo onde você estava, somente para que você pudesse viver de uma maneira decente alguma vez. Porque eu acredito que, em algum lugar dentro de você, ainda existe humanidade para prevalecer.

Clary ergueu os olhos para o céu ainda escuro da madrugada, como se esperasse que anjos descessem para levar Sebastian de volta e dar a ela uma lição de moral.

– E então, você volta a viver e eu mal tenho a chance de comemorar, porque você já anuncia que a guerra vai continuar, mesmo depois de ela tê-lo matado? – Clary disse, balançando a cabeça e os olhos ainda marejados. – Eu estou cansada de lutar por você, Sebastian, quando você não parece dar a mínima para o que eu estou tentando fazer. Estou cansada de tentar dar um destino diferente para você quando você nem ao menos se importa em perguntar quem o trouxe de volta à vida.

Clary afastou-se do muro de pedra e aproximou-se de onde Sebastian estava, ainda a encarando como se fosse a primeira vez que realmente pudesse enxergá-la do jeito que ela era. E colocou as mãos no rosto dele, assim como ele havia feito, afastando os cabelos brancos que grudavam na testa dele.

– Então, agora é você quem vai decidir o seu próprio destino – Clary disse, com ternura, como se estivesse explicando algo para uma criança. Ela olhou bem no fundo dos olhos dele antes de continuar e sentiu que ele também tentava olhar através dela; verde contra preto. – Mais cedo eu te disse que iria a qualquer lugar com você, se decidisse dar um fim na guerra. A proposta continua de pé. Mas caso ainda sinta que a guerra é a única coisa que você quer, eu volto para dentro do Instituto e deixo você ir.

Sebastian não disse nada. Por cima do ombro, ele conseguiu ver uma parte da batalha por entre as árvores. Seus guerreiros Crepusculares eram mais fortes, mais bem treinados e mais poderosos, com todos os atributos que o sangue de demônio podia oferecer. Ele ainda podia vencer. Podia deixar seu nome marcado na história como o Morgenstern que morreu e voltou a vida e ainda conseguiu destruir os famosos Caçadores de Sombras, que todos sempre acharam serem invencíveis. Seria o maior marco para o universo Nephilim. Era tentador.

Clary seguiu o olhar de Sebastian e, sem que ele precisasse pronunciar uma palavra, ela sabia o que estava na mente dele. Valentim podia nunca ter dado uma escolha para Sebastian, mas havia ensinado a ele o que escolher, caso tivesse a chance. Ela era estúpida por achar que podia competir com anos de lições de Valentim Morgenstern.

– Adeus, Sebastian – Clary sussurrou, contendo o tremor na voz. Ele olhou para ela por alguns instantes e, em seguida, assistiu enquanto Clary caminhava em direção à batalha, deixando-o sozinho.

No momento em que Clary o deixou para trás, o tempo pareceu congelar. Sebastian fechou os olhos e afundou a cabeça nas mãos, tentando clarear a mente; mas era impossível, milhares de pensamentos se embolavam uns nos outros dentro da cabeça dele, formando uma grande bola de neve. Soltando um palavrão, ele andou pela mesma direção que Clary havia tomado, embora ainda não soubesse exatamente o que fazer. A batalha seguia em frente e a qualquer momento alguém poderia encontrá-lo ali para confrontá-lo.

Sebastian ainda arrastava os pés pelo caminho tortuoso por detrás das árvores quando sua bota chutou um objeto enrolado na grama verde. Ele olhou para baixo e encontrou ali, aos seus pés, uma espada preta e prateada. Pegando-a pelo cabo, ele reconheceu as estrelas pretas gravadas no metal, simbolizando a arma como Morgenstern. Era a sua espada. Talvez encontrá-la ali, enquanto ele seguia em direção à batalha, fosse um sinal de que permanecer com o plano era a coisa certa a se fazer, mas Sebastian não estava certo sobre isso. Era difícil mudar de ideia sobre uma determinada coisa quando havia passado tanto tempo escutando que aquilo era o que deveria ser feito, treinando dias e noites para se tornar um guerreiro invencível, um Caçador de Sombras que não poderia ser detido por nada nem ninguém.

Mas ele havia sido, duas vezes. Sebastian havia conhecido a morte em Idris, durante sua batalha com Jace, o filho predileto de Valentim. Naquela época, ele queria matar o garoto Herondale para provar para seu pai que ele era o filho certo; mais forte, mais inteligente, mais bem treinado. Devia ter sido ele o filho a ser reconhecido por Valentim; viver sem ter que se esconder, sabendo tudo sobre todos, mas não realmente conhecendo ninguém. Devia ter sido ele a ganhar uma família. Pensar nisso doía tanto quanto levar um golpe de espada no peito.

Sebastian parou por um instante, perdendo-se em pensamentos. Na segunda vez que se encontrou com a morte, havia sido uma decisão dele. Uma escolha; a primeira e única escolha que ele havia feito sem a influência de ninguém. Ele colocou-se na frente de Clary porque sabia que ela não merecia morrer daquele jeito, não quando ela não havia feito nada de errado. Ela era boa, deveria viver uns bons anos, talvez casar e ter filhos, e cruzar com a morte só quando já tivesse vivido tempo suficiente. Apesar de querer estar com ela quando isso acontecesse, Sebastian deixou de pensar em si mesmo quando a vida dela entrou em risco. Algo que Lilith ou Valentim jamais aprovariam, ele sabia.

Você tinha uma guerra praticamente ganha e, mesmo assim, se deixou ser morto por uma garota. A voz de Lilith voltou a sua mente, tão alto e claro que ele podia jurar que ela estava ali, ao seu lado. Sebastian abriu os olhos, tonto, e se apoiou no muro de pedra. A guerra não havia importado para ele quando Clary entrou em jogo, ele sabia disso.

Você tem ideia do que é ver um buraco sangrento no meio do peito de alguém que se tornou importante para você e simplesmente ter que aceitar que não há mais nada que você possa fazer para mudar o que aconteceu? Clary havia perguntado, há poucos minutos atrás. E apesar de não ter respondido em voz alta, ele sabia como aquela sensação era. Lembrava-se, tão bem como se tivesse sido ontem, de quando aquele Caçador de Sombras atacou Clary num beco escuro em Londres, quando ela estava sozinha. Ao ver aquela cena, sem saber se a irmã ainda respirava, Sebastian percebera que todos os seus estúpidos planos orquestrados por Valentim não faziam mais sentido. O mundo dele estava ligado a outra coisa.

Clary tinha dado um ultimato a ele e, embora ele não tenha respondido antes que ela se fosse, Sebastian já havia feito sua escolha há muito tempo atrás.

Apertando o cabo da espada na mão, ele caminhou até onde a batalha acontecia, os olhos atentos. Desviando de Caçadores de Sombras que tentavam atacá-lo e desferindo golpes nos que chegavam perto, Sebastian abriu espaço na multidão até localizar cabelos ruivos que se destacavam de todos, mesmo na pouca iluminação. Num canto distante, Clary lutava contra um Crepuscular, brandindo sua própria espada Morgenstern com destreza. Ela conseguiu fazer um ferimento leve no abdômen do soldado, que soltou um rugido e se lançou para cima da garota, a espada cortando o ar a poucos centímetros do rosto dela. Ela não era tão forte quanto os outros, Sebastian notou, mas sua altura a favorecia na agilidade. Enquanto o Crepuscular girava o corpo para atingi-la com outro golpe, Clary já havia se abaixado e usado a perna para empurrá-lo pelas costas e arrancar a espada de sua mão. Desarmado, ele partiu para cima dela numa luta física, mas Clary já havia erguido a espada e cravado a lâmina em seu peito.

Assistindo a cena de longe, Sebastian bateu palmas dramaticamente, chamando a atenção de Clary. Ele deu alguns passos até estar diante dela e, fazendo um sinal com os dedos, ordenou que dois Crepusculares se postassem ao redor deles, as armas em punho, protegendo-os.

– Eu sinto muito – Sebastian começou a falar – por tudo. Sinto muito por ter colocado a guerra acima de tudo, por não ter realmente me importado com o que você queria de mim. Acho que ter você ao meu lado já era uma vitória tão grande, que eu não conseguia pensar em como você devia se sentir sobre isso.

– Está tudo bem – Clary disse suavemente, desviando o olhar por um instante. Ao longe, ela percebeu que Jace observava os dois.

– Não, não está – ele murmurou. – Quando eu estava no Inferno e Lilith e Valentim apareceram para me atormentar, eu realmente parei para perceber quem eu era. E não quero mais ser assim, sabe? Por alguma razão, quando estou com você me sinto diferente. E isso é bom, não é? Porque você me faz querer ser melhor.

Clary olhou para ele. Era a primeira vez que ele parecia arrependido de verdade, dessa vez até mesmo parecia querer mudar as coisas.

– O que estou tentando dizer – Sebastian continuou, dando um passo e pegando a mão de Clary – é que sou grato por tudo que fez por mim e prometo tentar fazer o seu esforço valer a pena. E que sinto muito por nunca ter sido quem você gostaria que eu fosse, mas com o tempo as coisas podem mudar. Só é preciso ter paciência comigo, sabe?

Sebastian abaixou a cabeça e abriu um sorriso torto, como se ele mesmo não pudesse acreditar que estava falando tudo aquilo.

– Você me perguntou se a única coisa que eu quero era a guerra – ele disse. – Mas, na verdade, a única coisa que eu quero é estar ao seu lado, irmãzinha. Nós somos os últimos Morgenstern, devemos ficar juntos, não acha?

Clary sorriu, levantando a mão e acariciando o rosto de Sebastian com o polegar. Ele pareceu surpreso com o gesto, mas não se afastou.

– Prove – Clary finalmente disse. – Prove que é isso que quer e eu vou embora com você, para qualquer lugar.

Sebastian sorriu satisfeito, como se já esperasse que ela falasse algo assim. E, virando-se para a batalha que ainda acontecia, juntou os dedos na boca mais uma vez num assobio alto que ecoou pela clareira. Todos pararam de lutar rapidamente e o silêncio tomou conta do lugar.

– Bem, isso é estranho – Sebastian falou alto, embora o local estivesse tão quieto que não fosse difícil escutar, mesmo longe. – Mas, apesar de vocês terem sido muito úteis para mim, sinto dizer que não são mais necessários. Já consegui o que preciso. Tenham uma boa viagem até o Inferno.

Com os olhares confusos ainda presos nele, Sebastian pegou o Cálice Imortal do cinto de armas e o depositou delicadamente no chão, aos seus pés. Dando uma piscadela para Clary por cima do ombro, ele abaixou-se e cravou a lâmina da espada no Cálice, destruindo-o de vez. Pedaços de aço prateado voaram em direções opostas por alguns segundos, até desaparecem numa fumaça vermelha que circulou pelo ar até evaporar, assim como todos os Crepusculares.

A guerra havia, finalmente, chegado ao fim.


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Notas finais do capítulo

Heyy, quero agradecer à Letícia Camargo e HellenFCSL por terem feito recomendações MARAVILHOSAS que me deixaram sorrindo o dia todo! ♥ Vocês são demais, sério, muito obrigada mesmo! Espero que tenham gostado desse capítulo que eu tentei caprichar bastante pra compensar a demora e, por favor, deixem comentários dizendo o que acharam. É importante pra mim c:
Anyway, volto logo pro próximo, se cuidem e feliz ano novo ♥