Os Últimos Morgenstern escrita por Luna MM


Capítulo 15
Beijos da Morte


Notas iniciais do capítulo

"Frutos caem, o amor morre e o tempo passa;
Tu és alimentada com fôlego eterno,
E ainda viva após uma infinita mudança,
E renovada após os beijos da morte;
De abatimentos reacendeu e recuperou-se,
De prazeres inférteis e impuros,
Coisas monstruosas e infrutíferas, uma lívida
E venenosa rainha."
— Algernon Charles Swinburne, "Dolores"



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A luz forte e clara da manhã parisiense invadiu o quarto e atravessou as pálpebras ainda fechadas de Clary. Sentou-se, afastando o cabelo do rosto e semicerrando os olhos para acostumar-se com a claridade inesperada. Em seguida, jogou-se em cima do travesseiro novamente, soltando um suspiro de derrota.

No entanto, mesmo que tivesse dormido pouco, talvez aquela houvesse sido sua melhor noite de sono em muito tempo. Clary não tivera pesadelos e, mesmo que tivesse, não sentiria medo; não enquanto estivesse nos braços de Sebastian.

Mas Clary também não tivera nenhum sonho com seus amigos e, com certa pontada de dor no peito, concluiu que eles realmente haviam desistido dela.

Balançou a cabeça para livrar-se dos próprios pensamentos e olhou para o outro lado da cama, em busca de Sebastian; ele não estava lá. Franzindo o cenho, Clary incomodou-se um pouco com o fato de ele ter saído antes de ela acordar, mas logo deu de ombros. Sabia que ele voltaria logo. Ele sempre voltaria para ela.

Clary desviou o olhar para a janela do quarto e revirou os olhos ao notar as cortinas sendo inúteis. Provavelmente ainda era cedo demais para levantar da cama. Resmungando algo sobre detestar acordar cedo, Clary levantou-se e parou quando sentiu uma súbita fraqueza nas pernas.

Aquilo a despertou completamente, fazendo-a lembrar da noite anterior. Clary forçou as pernas a se moverem e se encaminhou para o banheiro, ainda tonta de sono. Quando viu o próprio reflexo no espelho imenso diante de si, murmurou uma palavra que teria feito Jocelyn lavar sua boca com sabão.

Os longos cabelos ruivos caíam como cascatas nas costas de Clary e a pele quase pálida destacava o leve rubor em suas bochechas rosadas. No entanto, o que chamou sua atenção foi uma longa trilha roxa avermelhada marcada por chupões e mordidas que corria por todo o seu pescoço, descendo pelo decote de sua camiseta fina. Havia também marcas das mãos de Sebastian por todo seu corpo.

Droga, Clary resmungou num pensamento. Aquilo não sairia com uma simples iratze.

Por fim, Clary jogou as mãos pro alto num gesto de desistência e voltou ao quarto, decidindo preocupar-se com os hematomas mais tarde. Bocejando, deitou-se novamente na cama — depois de verificar, duas vezes, de que as cortinas estavam fechadas — e fechando os olhos, se deixou levar pela escuridão.

Dessa vez, os sonhos vieram.

◌◌◌

Clary abriu os olhos quando sentiu os pés descalços tocarem o chão frio do Instituto e olhou ao redor. Estava no salão principal de entrada que, no momento, se encontrava vazio. Por alguns instantes, ela se perguntou o motivo de estar sonhando com um lugar onde não houvesse ninguém, mas abandonou o pensamento quando passos ecoaram pela escada de mármore.

Apressadamente, quase que pulando os degraus, duas mulheres familiares adentraram o salão ao mesmo tempo em que a porta se escancarava. Jace, Isabelle e Alec entraram distraídos e ergueram as cabeças quando notaram a presença de Jocelyn e Maryse — exceto Jace, que não havia dito uma palavra sequer desde que haviam atravessado o Portal em Toronto.

— Oh, graças ao Anjo — murmurou Maryse, enquanto se aproximava dos filhos com braços abertos e uma expressão de alívio no rosto. Clary estranhou, e repreendeu-se por isso mais tarde, o súbito carinho dela pelos filhos; sempre viu Maryse apenas como uma mulher forte e guerreira, mais preocupada com as Leis da Clave do que com qualquer outra coisa.

Então, como se pudesse ter lido os pensamentos de Clary, Maryse assumiu uma expressão séria e autoritária.

— No que estavam pensando quando saíram do Instituto e foram atravessar o mundo, sem avisar ninguém?

— Na verdade, nós mandamos um bilhete, caso não tenha percebido — Alec disse, defendendo-se.

— Um bilhete não tem muita utilidade depois que já saíram, Alec — observou Maryse, massageando as têmporas, exausta. Não parecia realmente nervosa; pelo menos, não até notar a camisa rasgada e manchada de sangue de Jace. — O que, em nome do Anjo, aconteceu?

Isabelle e Alec se entreolharam, mas não disseram nada. Jace parecia recusar-se a encarar algo que não fosse o chão.

— Expliquem, para o bem de vocês — ameaçou Maryse, levantando a voz. Mas quem se pronunciou foi Jocelyn.

— Onde está Clary? — perguntou a mãe da menina, a voz falhando por um breve segundo. Clary, involuntariamente, colocou a mão fechada sob o coração.

Isabelle olhou para Alec, pedindo ajuda, mas ele deu de ombros, deixando-a para lidar com aquilo sozinha.

— Nós não a encontramos — Isabelle gaguejou, tentando não olhar nos olhos de Jocelyn, e engoliu em seco. — É possível que os dois estejam numa outra dimensão. Talvez não possam ser encontrados, de fato.

Jocelyn nem ao menos teve a chance de responder, pois uma risada sarcástica ecoou pelo salão, arrepiando os pelos dos braços de Clary.

— Pare de mentir, Isabelle — Jace disse, erguendo a cabeça pela primeira vez. Seus olhos estavam frios, cheios de mágoa e rancor; com um sobressalto, Clary percebeu que naquele momento, ele se parecia com Valentim. — Ela merece saber a verdade. Merece saber o que a filha fez.

— O que isso quer dizer? — Jocelyn perguntou, mas Jace já tinha subido a escada correndo, dois degraus por vez. Ela olhou para Isabelle e Alec, em busca de respostas. Quando ninguém sequer abriu a boca, a mãe de Clary correu atrás de Jace.

Clary se apressou em segui-los, temendo a reação da mãe quando Jace contasse a verdade. Talvez começasse a odiá-la, assim como odiava Sebastian, e ela não sabia se conseguiria suportar algo assim. Continuou atrás deles, embora já desconfiasse o lugar onde Jace havia ido.

A biblioteca encontrava-se do mesmo jeito que Clary se lembrava; o teto central cônico, como se o Instituto houvesse sido construído no interior de uma torre. Todas as paredes do cômodo eram lotadas de prateleiras com livros, que eram tão altas que algumas escadas apareciam em intervalos de espaço. Havia livros de todos os tipos: novos, com as folhas ainda limpas, velhos, com a capa gasta e as folhas amareladas à medida que o tempo passava; mas todos davam a impressão de que eram frequentemente utilizados. Clary gostava da familiaridade que o lugar trazia, como se aquela realmente fosse a sua casa.

Ou, talvez, não mais.

No centro da sala, Jace estava com a cabeça baixa, tentando controlar as próprias emoções, apoiando as mãos na mesa esculpida a partir de um único bloco de madeira. O bloco era sustentado por duas estátuas de anjos, uma de cada lado, as asas entrelaçadas e uma expressão de sofrimento nos rostos, como se o peso da mesa estivesse quebrando-os por dentro. Clary se perdeu naquela imagem por um instante, até as vozes trazerem-na de volta à realidade.

— Jace, me explique o que aconteceu, por favor — disse Jocelyn, paralisada na porta da biblioteca. Ao observar o rosto do garoto, ela hesitou. — O que Clarissa fez?

Clary desviou o olhar para Jace e esperou que ele se pronunciasse. No entanto, ele não o fez. Nem ao menos deu algum sinal de ter escutado o que a mãe da menina havia dito.

— Ela está com Jonathan? — Jocelyn tentou mais uma vez, mas não obteve sucesso. — Jace Herondale!

Jace ergueu a cabeça subitamente e encarou Jocelyn com um olhar curioso.

— Agora eu sei de quem Clary herdou aquela persistência interminável dela — disse, sorrindo tristemente. Clary notou que os olhos dele estavam marejados.

Jocelyn não disse nada enquanto se aproximava dele; Clary a seguiu, parando ao lado de Jace. Ele estava do mesmo jeito que ela havia visto da última vez, só que sem a raiva. Apenas a dor. Por um momento, ela desejou que ele pudesse sentir sua presença.

— Clary não pode voltar — disse, mas não soou irritado como antes —, porque fez um acordo com Sebastian. Ela se dispôs a ir embora com ele e com isso, ele ficaria longe de todas as pessoas importantes para ela.

Jocelyn soltou um suspiro profundo. Começou a caminhar, distraída, até parar perto de uma janela pouco empoeirada. Alguns minutos se passaram em silêncio absoluto, até ela finalmente tirar os olhos do céu claro e sem nuvens.

— Eu sabia que ela faria algo assim — disse, abrindo um sorriso melancólico ao voltar os olhos para Jace. Ele pareceu não entendê-la.

— Não está irritada?

Jocelyn balançou a cabeça negativamente e então viu a expressão de surpresa estampada no rosto de Jace.

— Eu entendo sua dor, Jace. Não pense que sou uma mãe ruim — disse —, porque é claro que eu prefiro ter minha filha ao meu lado, em segurança, assim como sei que você também gostaria. E entenda que, se houver algum jeito de trazê-la de volta, eu o farei.

Antes de continuar, ela respirou fundo e fitou o vazio.

— Mas eu conheço a filha que eu tenho — sorriu melancolicamente mais uma vez. — E sabia que Clary iria fazer qualquer coisa para proteger quem ela ama, independentemente do que pudesse custar, porque ela é muito parecida comigo.

Quase que automaticamente, Clary percebeu que aquilo era verdade; Jocelyn havia abandonado toda a sua vida de Caçadora de Sombras e entrado no mundo dos mundanos, obrigando a si mesma a viver como uma mundana, para proteger a filha do homem por quem um dia havia se apaixonado. Provavelmente aquilo não devia ter sido fácil para ela, mas não há limites no amor. E quando se ama uma pessoa, deve protegê-la, não é?

Com lágrimas ardendo nos olhos, Clary aproximou-se da mãe e tocou na mão dela, desejando poder senti-la. Seu toque atravessou a mão de Jocelyn, como se Clary não passasse de um fantasma. Ela engoliu em seco.

— Você provavelmente está certa — concordou Jace, o olhar distante. — E eu fui tão cruel, pelo Anjo. Sei que não devia ter gritado com ela e dito todas aquelas coisas horríveis, mas eu a amo mais do que achei que pudesse amar alguém e a ideia de perdê-la... — fez uma pausa, respirando fundo antes de continuar — faz o meu mundo ruir em pedaços. Eu seria capaz de qualquer coisa, não importa o quê, para tê-la em segurança.

Jocelyn aproximou-se e colocou uma mão no ombro de Jace; um gesto compreensivo de uma mãe.

— Acho que você a entende, então — disse Jocelyn, e se encaminhou para a porta da biblioteca. Quando já tinha alcançado a saída, virou-se novamente. — Eu conheci seus pais, Jace. Stephen e Céline. Eram pessoas incrivelmente boas e que, mais do que ninguém, mereciam estar aqui para ver o garoto que você se tornou. Eles teriam orgulho de você. Eu sei que eu teria.

E dizendo isso, Jocelyn saiu, deixando um Jace perdido em pensamentos para trás.

Então, o sonho mudou. As paredes da biblioteca tremeram, a luz enfraqueceu e Jace foi substituído por outra figura antes da iluminação voltar completamente. Clary piscou, enxergando pontos brilhantes antes de sua visão se ajustar, e estreitou os olhos quando viu quem se encontrava a poucos metros dela.

Valentim.

Pelo menos no sonho, a morte não havia o afetado nem um pouco, exceto pelos olhos que não brilhavam mais; não tinham mais vida. Fora isso, ele continuava com a mesma aparência que Clary podia se lembrar; e, como sempre, ela não sentia absolutamente nada ao olhar para o pai.

— Clarissa — disse, abrindo um sorriso gelado —, que bom que está aqui. Eu estava mesmo querendo ter uma conversa com você.

— Não tenho o mínimo interesse em conversar com você — ela rebateu, e virou-se em direção à saída. Entretanto, quando Clary tentou atravessar a porta da biblioteca, uma força invisível a deteve, empurrando-a de volta para a sala.

Arregalando os olhos, ela colocou a mão sobre o bloqueio, incrédula. Estava presa numa sala com seu pai morto.

— Suponho que você não tenha outra escolha — Valentim murmurou, um sorriso brincando entre os lábios —, a não ser conversar comigo, não é?

Clary respirou fundo e cruzou os braços, virando-se para encarar o pai.

— O que você quer comigo?

— Isso são maneiras de tratar seu pai? — o tom de voz de Valentim era repreensor, como um pai de verdade falaria. Alguém que, definitivamente, ele nunca havia sido. — Tenho que admitir que esperava um pouco mais de educação vindo de você.

— Educação é algo que deve ser ensinado pelo pai, sabia? E nem isso você foi capaz de fazer — Clary balançou a cabeça. — De qualquer jeito, você já deixou claro que meu ódio por você é recíproco, então para que perder tempo com joguinhos?

Valentim a observou por um instante, talvez se lembrando de quando havia dito para a própria filha que detestava olhá-la porque ela era quem Jocelyn mais amava no mundo. Mais do que havia o amado. E suspirou, soltando o ar com força, como se de repente pudesse ter voltado a respirar.

— Muito bem, então — concordou. — Saiba que só o que tenho é a intenção de alertá-la sobre sua terrível perda de tempo.

Clary ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. Havia algo em Valentim que a lembrava de Sebastian, além dos olhos escuros e cabelos brancos; a maneira como agia e falava, como se nunca precisasse ensaiar um discurso, como se nunca falhasse a voz.

— Sei o que está tentando fazer — prosseguiu. — Mas ele não vai mudar. Nunca.

— A culpa é sua, você sabe disso — Clary sibilou. — Você o fez ser daquele jeito; você o criou para ser um monstro, para nunca ter a chance de viver de verdade.

— E por ser eu o culpado — Valentim levantou a voz —, posso dizer que não existe salvação para Jonathan. Não importa o que você faça, o lugar dele já está reservado no Inferno.

— Ao seu lado, suponho — Clary rebateu, semicerrando os olhos. Sentiu uma súbita vontade de cuspir na cara daquele homem que dizia ser seu pai, embora soubesse que ele não sentiria nada.

— Você não era assim, Clarissa. — Valentim disse, quase que desapontado. — Não teme, nem que seja um pouco, que o oposto possa estar acontecendo? Talvez você não consiga salvá-lo, mas ele provavelmente já esteja te mudando. Será mesmo que você ainda é um anjo?

Clary abriu a boca para resmungar alguma expressão feia ou simplesmente mandá-lo calar a boca, mas não teve a chance.

O sonho tremulou novamente, e dessa vez as paredes da biblioteca se estilhaçaram em pedacinhos e Valentim foi puxado por uma luz escura. Clary fechou os olhos quando sentiu o chão abaixo de seus pés sumir, fazendo-a cair num poço sem fim. Talvez estivesse acordando, ela pensou com esperança. Talvez o sonho finalmente houvesse terminado.

Caindo, caindo, caindo.

Então, Clary colidiu com o chão num baque surdo. Sabia, mesmo com os olhos fechados, que estava num lugar completamente diferente do Instituto. Um lugar que queimava.

Respirou fundo e levantou-se lentamente, tirando os cabelos da frente dos olhos, para que pudesse enxergar com clareza.

Um vento quente atravessou o lugar, fazendo seus cabelos ruivos esvoaçarem. Estava no topo de uma torre; Clary caminhou até a grade, tomando o cuidado de segurar-se firme, e olhou para o mundo destruído diante dela.

Havia diversos campos vastos atolados numa terra negra e torres feitas de ossos que incandesciam e fumegavam, com rios de lava e sangue correndo como água num dia chuvoso. Ao longe, vozes desesperadas gritavam e imploravam por piedade, enquanto suas almas eram rasgadas e, seus pedidos, ignorados pelo Céu.

Aquele lugar inteiro ardia em fogo e fúria.

— Se não posso mover o Céu, elevarei o Inferno — Sebastian falou, atrás dela. Ele colocou as mãos em volta da cintura de Clary e beijou seu pescoço suavemente. — E você governará em seu trono ao lado do meu, irmãzinha.

Sebastian ergueu o queixo de Clary com uma das mãos, obrigando-a a olhar para um castelo em ruínas. As muralhas externas da fortaleza brilhavam em negro e os portões feitos de bronze eram gravados com cenas de morte. As superfícies estavam lascadas e marcadas, manchadas com o que parecia ser sangue humano seco. Tochas com fogo negro rodeavam toda a construção; uma chama que nunca se apagava.

"Sou aquele que vive e estava morto" — Sebastian disse —, "e veja, estou vivo para sempre, e detenho as chaves do Inferno e da morte.". Aprecie o legado Morgenstern, irmãzinha.

Clary sorriu em triunfo e virou-se para ficar em frente ao irmão, puxando-o para si logo em seguida, selando aquele momento com beijos sombrios; beijos da morte. E em algum lugar no fundo de sua mente, escutou a voz do irmão.

"Você tem um coração sombrio, Filha de Valentim".

O sonho mudou mais uma vez e toda a destruição, o fogo e o sofrimento foram apagados por uma imensidão em branco. A luz era tão forte que Clary se viu obrigada a cobrir os olhos com as mãos e sentiu o vento forte e intenso que tomou conta do lugar, fazendo-a estremecer.

Clary respirou fundo, absorvendo o ar puro e limpo, desprovido da habitual poluição à qual ela estava acostumada. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos sem senti-los arder, não viu nada além de branco. Fechou os olhos novamente e se concentrou.

Então, escutou vozes. Uma risada estranhamente familiar de uma criança feliz; e ao abrir os olhos, Clary sentiu um aperto no peito.

Diante dela, uma garotinha de cabelos ruivos ria alegremente ao colocar as mãos pequenas sujas de tinta colorida na tela de pintura, deixando as marcas dos dedos. Ao seu lado, estava uma mulher que Clary logo reconheceu como sendo sua mãe, pintando o que parecia ser uma cidade de cristal. Alicante.

— Você será uma grande artista, Clary — disse Jocelyn, examinando o trabalho da filha com um sorriso orgulhoso. Então, seu olhar perdeu o foco. — E eu irei garantir que tenha um futuro bom, protegendo-a dos meus erros.

A garotinha riu mais uma vez e a cena se calou, embora ainda continuasse ali. Era como estar assistindo um programa de televisão e apertar a tecla "mudo". Então, outras vozes surgiram e Clary virou-se, preparando-se para ver outra cena.

Era Luke, é claro. Luke a empurrando no balanço quando ela era criança, mais alto, sempre mais alto; Luke na formatura do ginásio, fotografando cada momento, como um pai orgulhoso; Luke procurando livros em sua loja, separando qualquer coisa que achasse que ela pudesse gostar; Luke levantando-a para pegar maçãs nas árvores perto do sítio dele. Luke, que sempre havia sido um pai para ela. O pai que Valentim nunca foi.

Então, mais uma cena. Simon assistindo filmes de ficção com ela, os cabelos caindo por cima dos óculos enquanto ele gesticulava com as mãos, tentando explicar para ela como certa galáxia funcionava; Simon e ela rindo no Java Jones, durante a poesia horrível de Eric; Simon entrando no Instituto pela primeira vez, conhecendo um novo mundo e até mesmo correndo perigo, apenas para estar com ela; Simon, sempre ao lado de Clary, sendo seu melhor amigo.

A cena mudou e a imagem de Jace apareceu. Jace olhando, admirado, para ela quando se encontraram pela primeira vez, no Pandemônio; Jace a beijando na estufa do Instituto, depois das flores da meia-noite se abrirem; Jace a beijando na Corte Seelie, mesmo enquanto ainda pensavam que eram irmãos; Jace no quarto dela pedindo, como se fosse a única coisa que quisesse no mundo, para dormir ao seu lado. Jace voltando à vida, depois de ela ter pedido ao anjo: podia ter pedido qualquer coisa, mas só queria uma; Jace, no parque, dizendo para ela que o amor era a força mais poderosa do mundo, que movia o sol e todas as outras estrelas; Jace no terraço, durante a festa de casamento de Jocelyn e Luke, dizendo que queria estar ligado a ela. Jace, Jace, Jace. Sempre o menino com o falcão, o menino que acreditava que amar era destruir, o menino que ela sempre iria amar. Seu Jace.

Mais e mais cenas começaram a passar ao redor de Clary, fazendo-a girar num círculo pequeno, tentando acompanhar todas as imagens. Isabelle ajudando-a a se arrumar para a festa de Magnus; Isabelle salvando-a de um demônio Hydra na Igreja de Talto. Até mesmo Alec e Magnus apareceram em algumas cenas.

Enquanto mais imagens surgiam, algumas se repetindo diversas vezes, Clary desviou sua atenção para uma cena em particular. Era Sebastian. Sebastian a beijando nas ruínas da Mansão Fairchild, logo após dizer o quanto ela era extraordinária; Sebastian a beijando sob a Torre Eiffel; Sebastian a dizendo que sempre quis conhecê-la, desde criança; Sebastian a defendendo, enquanto Jace dizia coisas horríveis para ela; Sebastian a beijando na noite passada; Sebastian, o irmão que ela nunca soube que existia, o irmão que sempre odiou mais que tudo e que, agora, fazia parte dela.

O Paraíso é diferente aos olhos de cada pessoa, murmurou uma voz, dentro da mente de Clary. Ela olhou ao redor e arregalou os olhos quando viu, diante dela, um anjo. Ithuriel. Pelo o que sei de você, Clarissa Morgenstern, acredito que esteja vendo as pessoas que são importantes para você. Estou errado?

Ela balançou a cabeça, atônica.

— Por que estou vendo isso? — ela perguntou, ainda olhando para as imagens que não paravam de passar.

Em parte, para lembrá-la de todas as pessoas que você decidiu proteger, Ithuriel respondeu. Mas para lembrá-la também, quando achar que o que está fazendo é errado, que Jonathan nunca teve ninguém com quem pudesse se importar, ninguém para ele amar e que pudesse amá-lo de volta. E agora ele tem.

Clary continuou olhando para o irmão, enquanto ele a tomava nos braços. Ela piscou, lembrando-se do que Valentim havia dito.

— E se eu estiver me tornando má? E se eu acabar indo para o Inferno? — ela perguntou, as imagens do fogo ardendo em fúria e os gritos das almas sofridas invadindo sua mente; e o seu próprio sorriso de triunfo ao contemplar tudo aquilo.

Não deixe que os sonhos a enganem, menina, respondeu o anjo, a voz calma e suave. Nenhuma pessoa que sacrifica o que você sacrificou para proteger quem ama merece o Inferno.

— E se eu falhar? — Clary perguntou. Sabia que estava perguntando demais e já podia sentir a realidade a puxando de volta, mas o medo de não conseguir salvar todas as outras pessoas de seu irmão era enorme.

Ser um herói não consiste sempre em salvar o mundo, Ithuriel disse. Às vezes, salvar uma alma é o suficiente.

As cenas começaram a se dissipar, sendo lentamente levadas pelo vento. Clary encarou, parada, enquanto as imagens se perdiam no ar. Em seguida, virou-se para Ithuriel, e pensou ter visto um pequeno resquício de sorriso em seu rosto, embora Clary não soubesse se anjos podiam sorrir.

Não se esqueça de uma coisa, Clarissa, disse. Tudo que está na Terra ainda pode ter uma salvação.

E então, Clary também foi puxada pelo vento.


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Notas finais do capítulo

Oe, eu sei que esse capítulo por mais que esteja longo (não sei como consegui escrever tanto, juro), não teve muita ação, mas eu tô fazendo o que posso para prolongar um pouco a história, porque está muito perto do fim. Espero que vocês entendam o significado desses sonhos c:
Queria dizer também uma coisinha bem desagradável, mas que me sinto na obrigação de falar: tudo bem gostar da minha história e admirar o que eu escrevi, mas, por favor, não copie. Crie!
Enfim, espero que tenham gostado, e eu vou tentar postar o próximo antes que minhas férias terminem. See ya!