Um Outro Conto de Fadas escrita por Ryuuzaki


Capítulo 20
Vida Nova - Parte 2




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Owen checou sua arma pela décima vez.

Uma das muitas vozes em sua cabeça perguntava-se o motivo de tamanha inquietação, de toda aquela insegurança. As outras se revezavam em, basicamente, dar motivos para novas desconfianças – em sua maioria ridículos e sem sentido –, ofender a virilidade e competência das vozes anteriores e discutir calorosamente sobre a cadeia alimentar dos jogos de Pokémon.

Após alguns minutos de incessantes verificações e correções de defeitos que não estavam ali, em um instante em que as vozes haviam feito uma trégua para reavaliar um tópico importante, decidiu que já checara o suficiente aquela pistola. Portanto, deixou-a de lado e começou a mexer em uma segunda arma.

Ainda que uma crença paranoica houvesse se firmado em sua mente tempestuosa acabou por deixar o objeto de lado sem a manutenção exagerada que lhe parecia tão imprescindível. Tentou relaxar, esparramar-se na cadeira em que sentava e dar uma folga para os músculos fatigados pelo alerta total em que seu corpo estava, mas não conseguiu.

O pé direito golpeava o piso sem dar sinal de que trégua era uma possibilidade. Uma estranha impaciência dominava o seu ser. Estava preocupado. E, mais ainda do que o motivo original de sua preocupação, a simples consciência de seu estado o deixava alarmado. Afinal, conhecia a si mesmo e a realização de que alguma coisa trespassava o seu poderoso escudo de loucura e começava a afetar sua espontaneidade, bem como seu incrível poder de viver apenas o presente, o assustava.

O fato de que de as múltiplas vozes em sua cabeça começavam a atrapalhar sua linha principal de raciocínio não parecia colaborar beneficamente com a situação.

Uma mão foi ao joelho, forçando seu incansável bater de pé a um derradeiro fim, a outra dirigiu-se à sua fronte, clamando por uma concentração que não viria. Tentou estabilizar sua respiração descompassada, mas uma incomoda arritmia tomava conta de todo o seu corpo.

Ao longe, como que viajando através de brumas etéreas, o som abafado da água que contemplava Faye com um refrescante banho balsâmico não o deixava esquecer-se da presença estranha em seu covil de caçador. Impedindo, com seu fluir moroso, que as duvidas e preocupações do homem insano se desvanecessem.

Sentiu algo imaginário subir-lhe a garganta e por pouco não se engasgou. Passara muito, muito tempo na solidão. Tendo que apenas não-preocupar-se consigo mesmo. Planejando com poucas variáveis. Claro que houve alianças ocasionais, ação em conjunto contra alguma ameaça particularmente perigosa e complicada... Mas nada como agora.

Desde aquele dia, a quase vinte anos atrás, tivera que se preocupar apenas consigo mesmo. Vivia o presente, vivia o momento, o carpe diem ditava sua vida e se encaixava com a perfeição do ideal à sua mente caótica. Não existiam preocupações, era só fazer o que tinha que ser feito e deixar o que quer que tomasse força em sua mente ditar o que viria a seguir.

Mas agora havia alguém com ele. Alguém que precisava ser ensinado, protegido. Isso pedia planos para o futuro, decisões antecipadas que seu ser de caos não conseguia delinear.

A garota era o problema. O nexo de sua confusão. No instante em que a salvara da fada selara um futuro diferente, um divisor de águas, uma mudança, um inicio. Nunca mais o veriam como “O Louco”, de agora em diante sempre seria “O Louco e A Garota”, para todo o resto de seu tempo vivente.

Desde aqueles primeiros anos, quando tudo começara, não se sentia tão desprotegido. Desprotegido... era como se via. Parecia-lhe que sua sempre presente astucia não mais seria o suficiente, que sua agilidade já não o salvaria. A garota criava uma brecha em suas defesas, o deixava... Vulnerável. O que mantivera sua vida pela maior parte desses anos fora justamente a aleatoriedade de suas ações, e forma errante como seus pensamentos progrediam, a falta de um padrão, de um modus operandi.

Mas agora a coisa não funcionava dessa forma. Por mais que sua loucura ainda fosse uma verdade e a tempestade caótica que chamava de mente ainda fosse o maquinário que operava a sua vida imprópria à esse mundo, a menina estaria ao seu lado. Um padrão se formaria, seus gestos começariam a ter uma direção. Isso sem contar todas as diferenças de proteger duas pessoas sobre coisas que ele nem mesmo entendia direito... Ele estava protegido por aquilo de anos atrás, mas e ela? Ela seria o seu ponto fraco.

Suspirou, irritado. Se apenas não a tivesse salvado dois dias atrás, tudo estaria como sempre fora, conseguiria continuar com seu trabalho... com seu vício... com a única coisa que sua vida limitada e sem horizontes lhe permitia. Mas agora a instabilidade que regia seu caminhar seria ameaçada com o fantasma do estável, uma mudança direta do caos completo para o esboço de algo ordenado. Uma ironia sem tamanho que ele, tão acostumado com a mudança, se via ameaçado por uma transformação que pretendia retirar o que lhe possibilitava tirar da aleatoriedade suas armas e suas defesas.

“O feitiço se virou contra o feiticeiro”, disse uma vozinha fina e infantil em sua mente. Uma voz que imaginou poder ter pertencido à menina que agora chamava de parceira. Se apenas não a tivesse salvado dois dias atrás... Se pelo menos mata-la resolvesse seu problema...

Sim. Mata-la. Riu para o vazio. O olhar de insanidade mirando o vazio de algum ponto indefinido atrás de si. Riu em uma histeria sem razão consigo mesmo. Uma parte de sua mente deturpada deleitava-se com o choque da entidade imaginária que eram os leitores.

– Espantados, não? – perguntou para ninguém, com um sorriso sinistro nos lábios – Não me tomem por bonzinho. Eu faço o que faço. E isso quer dizer que faço o que tenho que fazer. – seus olhos, um espelho para a loucura, mais parecendo duas lanternas – Não seria de muito agrado mata-la, admito. Mas se eu precisasse mata-la, tortura-la... O faria. Até iria gostar disso, se fosse preciso... Afinal, podem não ter percebido, mas eu sou louco.

Gargalhou como se a vida dependesse disso. E talvez, no fundo, bem no fundo, isso fosse verdade.

Aos poucos o riso foi morrendo e seu estado de uma autocontemplação fragilizada retornando. A dúvida voltava a corroer os restos de sua mente. Porque a salvara? Tão fácil seria apenas esperar a fada estripar a garota, para então tomar a vida do monstro enquanto este se distraía, alegre, chafurdando no corpo morto da menina... Se apenas tivesse pensado diferente, caso um filete do jarro sobrecarregado que são as muitas vozes em sua cabeça tomasse outra direção...

Mas que escolha tinha, afinal? A história tinha que continuar, no fundo não passava de um instrumento nas mãos da realidade, uma ferramenta cujo único intuito era levar as coisas adiante, fazer com que tudo aquilo cuja existência era necessária, fosse encaminhado. Não era ele apenas um pequeno ser cumprindo o seu papel dentro de algo maior? Um plano dentro de um plano dentro de um plano... Fintas dentro de fintas.

O que quer que estivesse por vir, a garota faria parte daquilo. Desde o instante em que tocara na escada daquele derradeiro edifício soube que as coisas seriam diferentes. A jovem ter despertado só foi a confirmação final, a prova magnânima de que ela não só escaparia da morte como seria lançada para o sombrio mundo do mistério e dos segredos, aquele, reside logo após o véu de ignorância que cobre os olhos de toda humanidade.

Ele fora apenas uma ferramenta. O meio que o mundo encontrou para fazer a roda da vida continuar a girar, para fazer a história das histórias continuar o seu longo e infinito – mas cada vez mais próximo do fim – caminho. Até mesmo a sua tão prezada aleatoriedade nada mais era do que apenas algo há muito determinado, concebido antes de mesmo de sua própria existência, uma estratégia, um plano da vida e da morte para tudo o que viria.

Não era sua própria presença naquele lugar apenas um reflexo de algo arquitetado desde tempos incalculáveis? Tudo o que sofrera, tudo o que passara, tudo o que perdera... tudo apenas o piscar de uma luz de vida breve no esquema das coisas. No fim das contas sua própria vontade de escapar dos laços que o prendiam às impávidas correntezas que levam os incautos em direção ao desespero do futuro, não passava de mais uma imposição das muitas linhas da existência.

Sua loucura, sua arma e sua defesa, não passava de uma mascara covarde, uma tentativa ignóbil e infantil, embora verdadeira, que fora criada há muito tempo, no instante em que se vira em relação à todo o andar da carruagem do universo. Uma fugidia idealização de que conseguia com sua falta de cerne e razão escapar das atrozes amarras que o prendiam à sua própria vida.

Era uma verdadeira armadura de insanidade, forjada para proteger o caçador contra um tipo de demência ainda mais atroz, um estado mental alienígena, fora dos padrões que mesmo os mais loucos seres humanos jamais poderiam conceber, uma maculo deixada pelo oculto e pelo mistério, que o recrutara em tenra idade para tramas auspiciosas. E, como o todo o resto, tal proteção fora delicadamente projetada para tornar-se a engrenagem precisa e insubstituível que faria tudo o que deveria acontecer... acontecer.

Os olhos do louco pareciam querer escapar de suas orbitas, como água represada. O sorriso que agora despontava nos olhos do homem não era como os outros, puramente insanos, carregava a tez do desconhecido, era temperado pelas sinistras especiarias do oculto e do arcano. Um fio de saliva de cor amarelada escapava de um canto de sua boca, seu fluir lento e inexorável evocava toda a certeza de um fim aterrador. Lagrimas de um quase sangue lubrificava seus glóbulos.

Por um fragmento imensuravelmente pequeno de tempo, havia revivido o conhecimento que escondia atrás da cortina de loucura que cobria a sua mente. E, como das outras vezes em que conseguira acidentalmente desflorar as pétalas da proteção insana que resguardava o seu ser, a visão ameaçava destruí-lo.

As mãos foram à cabeça, agarrando-se ao chapéu e às orelhas como se ali residisse o segredo de sua salvação. As costas logo começaram a se mover, indo para frente e para trás em um baile hipnótico que somando com o rosto, o avatar da demência, poderia sugar toda a sanidade de um homem tal qual o vácuo vorazmente se alimenta do oxigênio.

Os lábios abriram e fecharam, num murmurar constante e sem fim. Primeiro, proferia sem voz, mas a cada ciclo de sua dança de insanidade, mais ar escapava de seus pulmões, para dar um som ao que era dito. Contudo, as incessante lamentações não pareciam vir de dentro da boca do homem, mas escorrer das paredes, preenchendo a sala com um eco enevoado, como uma nevoa escarlate de morte e insanidade.

– Corvo... O corvo... tudo culpa... do corvo... – era o que o homem dizia.

O tempo se distorcia sob aquela atmosfera hipnótica e demoníaca, Owen ficou anos e segundos preso àquele coro solitário e monótono sem que um único sinal de melhora se esgueirasse em seu semblante distorcido. Parecia ter se perdido completamente nas vastidões daquela loucura maior que a loucura, arrastado pelas marés do pensamento até abismos infinitos, de onde nunca poderia escapar. Contudo, em algum momento que não poderia ser bem em meio às psicoses daquela cena, Owen levantou-se do sofá com um pulo e agarrou sua arma com a rapidez de um profissional.

Antes que mesmo um pensamento se formasse em sua mente confusa e abalada, virou a poderosa pistola contra a própria cabeça.  E puxou o gatilho.

O som pareceu atravessar toda a casa, atravessar todo o Tempo. O estalo seco do “CLICK” do cão da arma não encontrando um projétil, com o derradeiro movimento que antecede o disparo, pareceu ocupar todo o recinto. E era denso como o destino.

“Esta maluco? Quer nos matar?”

Disse uma insolente vozinha na cabeça dele.

Primeiro Owen não esboçou reação nenhuma. Mas logo um sorriso correu-lhe para os lábios. Ele tentou prender a risada, mas, quando essa veio com toda a força, não conseguiu se segurar. Logo caiu deitado no sofá, gargalhando. Não era um gesto baseado em sua loucura, era um riso sincero de quem achou alguma coisa engraçada.

Olhou para a arma, mal conseguindo conter-se. Em sua paranoia desenfreada, na ultima checagem naquela pistola – a única que, de fato, importava – acabou por não puxar o slide, fazendo com que a câmara do cano ficasse vazia. Não havia bala alguma na agulha. Um erro de iniciante.

– Então é assim, não é? – disse para a sala enquanto retirava e recolocava o pente daquela arma. – Que escolha tenho eu, afinal?

Riu

– Aceito então esse caminho. Aceito ser parceiro da garota. Aceito ser seu guia. Vou bancar o professor, fazer o que quer que eu tenha que fazer. Mas não é porque alguém ou alguma força esta me obrigando. Mas pelo chá. Aquilo selou nosso contrato, definiu minha escolha...

Olhou para o teto.

– Pode ficar tranquilo, Hugim, por enquanto, ainda sigo seus planos... Para onde quer que levem... Não que as coisas não fossem conspirar contra mim de qualquer modo mas... É isso. Estou com a garota.

Coçou a cabeça e acertou o chapéu.

– E pidgeys comem caterpies.

Puxou o slide.

                                             ...


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Notas finais do capítulo

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Capitulo confuso, mas até que gostei do resultado...
No entanto, como sempre, acho que ficou ruim lol
Percebo que tenho que mudar meu estilo de narrativa para histórias grandes. Tem que ter poucas cenas como essa, e a história toda foi feitas de cena como essa...

Provavelmente, vai haver uma mudança no modo de contar a história à partir do proximo cap. Ainda avaliando como vai ser.