Darker Than Black escrita por MsRachel22


Capítulo 23
Oh no, a dirty world




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Oh não, um mundo sujo

[04:01] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

  Havia uma coisa que ninguém havia dito sobre o fim do mundo nas séries, nos livros e no cinema: o silêncio é a pior parte. Esqueça o sangue, a fome, o cansaço e a sede constantes, as pessoas deixadas para trás, as incontáveis vítimas da epidemia e a selvageria descontrolada – nada disso chega perto do horror à quietude.

  O cheiro nauseante de sangue e o barulho das moscas, sobrevoando o corpo rígido de Karin, eram a parte que mais incomodava Hanabi, depois dos berros e do choro estrangulado que rompeu os lábios de Naruto por um bom tempo, até virarem soluços contidos e, então, nada.

  Sem qualquer comunicação além de avisos sussurrados, o grupo havia se dispersado por razões diversas até que restaram apenas Ino, Jun, Kabuto e ela – isso se contasse as pessoas vivas. A fogueira bruxuleava e o vento ajudava a diminuir a temperatura, as duas meninas estavam sentadas ao redor da madeira queimada enquanto os dois adultos se revezavam em vigiá-las e observar em torno da clareira.

— Eu estou com fome — as palavras foram sussurradas e Hanabi ergueu o rosto sujo e magro assim que lambeu os lábios e repetiu: — Eu estou com muita fome, meu estômago está doendo.

— Aguente mais um pouco — foi a resposta automática de Ino, ela cutucou a fogueira com um galho e remexeu as brasas. O rosto dela havia assumido aquela expressão apática, os olhos estavam focados na madeira crepitante há horas e não importava o que fosse sussurrado por Hanabi, a resposta era sempre a mesma.

— Quando a minha irmã volta? — Embora estivesse com medo, ela precisava ser corajosa e perguntar; lambeu os lábios ressecados e respirou fundo quando a enfermeira continuou impassível. — Quando é que a minha irmã volta? Eu estou com fome.

— Não adianta, ela não sabe — a voz baixa de Jun a assustou a princípio, os olhos lilases pareciam que iam devorá-la a qualquer minuto enquanto a encaravam daquela forma tão vaga e analítica ao mesmo tempo. — Quer um pouco? — ela estendeu metade de uma barra de cereal; o retângulo adocicado fez seu estômago doer mais.

  Assim que os seus dedos agarraram o tablete, a saliva encheu a boca de Hanabi antes mesmo da primeira mordida. As duas meninas permaneceram naquele silêncio entrecortado pelos sons do alimento sendo mastigado e engolido vorazmente e as respirações ritmadas, os olhos de Jun analisavam com calma os movimentos rápidos da outra.

— Você quer mais, não quer? — Os lábios mal se moveram e Hanabi balançou a cabeça com fervor, a resposta positiva fez com que Jun se aproximasse um pouco. — Então você precisa buscar mais, precisa fazer a sua parte — o tom de cobrança foi nítido e fez Hanabi se sentir envergonhada com os dedos melados de chocolate, seus olhos acompanhavam com terror o raciocínio de Jun.

— E-Eu... eu não posso sair — sua voz foi débil e fez a outra franzir o cenho. — Quero dizer, foi isso o que a minha irmã disse. Os adultos resolvem essas coisas, não resolvem?

— E onde eles estão agora? — O tom incisivo de Jun fez Hanabi se encolher por um minuto e interrompeu sua resposta: — Eles estão resolvendo as coisas por nós, Hanabi. Você não quer ajudar?

— Mas...

— Ou será que você não consegue? — A pergunta havia escapado, soado mais como uma indagação própria do que necessariamente parte daquele interrogatório todo, mas aquelas palavras trouxeram à tona uma velha insegurança que assolava Hanabi. — Acho que você não consegue, porque é uma menininha assustada demais.

  Jun pôs as mãos finas sobre os joelhos e endireitou a postura, mas o olhar inquisidor ainda pairava sobre Hanabi como uma águia à espreita de sua presa; as duas se encararam por não mais do que dois segundos antes da garota ruiva girar os calcanhares e rumar para as árvores.

  A cabeça de Hanabi considerou de forma incrivelmente adulta que era melhor ficar ali, próxima ao fogo onde poderia enxergar ao redor e não penetrar na escuridão das árvores sem qualquer noção de qual distância percorreria até o acampamento. Ela queria ficar, queria estender as mãos para a madeira crepitante e imaginar que comeria panquecas, sanduíches e leite com biscoitos pela manhã.

  A questão era que seu raciocínio fora adulto até essa parte, desse ponto em diante o ego machucado pela provocação distorcia sua situação de vulnerabilidade em pirraça de uma criança assustada com o bicho papão. Essa motivação estranha que lhe aquecia o peito – que Hanabi jamais saberia que se chamava orgulho – fez a conexão entre cérebro e músculos e logo ela estava em movimento.

  Os passos tímidos destoavam dos confiantes que lideravam o caminho entre os troncos rígidos das árvores, Jun penetrava a região com facilidade, desviava de pedras e galhos maiores como se mal os visse. Hanabi mantinha as mãos rente ao peito e seguia a menina ruiva com temor, alternava seus olhos esbugalhados de medo ora para as costas miúdas de sua guia, ora para a chama bruxuleante da fogueira, que mal passava de um ponto mal iluminado naquela escuridão.

— Aonde estamos indo? — Ela tentou fazer com que sua voz não denunciasse todo o medo que sentia, a necessidade de dar meia volta e ver a irmã parada bem ali, mas Hanabi se limitou a seguir Jun.

— Vamos achar... por ali... — sua resposta mal havia sido ouvida quando acelerou os passos e penetrou ainda mais na penumbra, o coração havia disparado assim que sentiu o cheiro pungente e azedo de suor, vômito e sujeira típicos em infectados.

— E-Eu não quero... mais... — aquele tom choroso, estrangulado e frágil causou uma mistura ácida de raiva e reconhecimento assim que Jun virou a cabeça para encarar Hanabi. Ela se viu, trêmula e chorosa, sendo arrastada pelo braço pelo pai com um sorriso voraz nos lábios, gemendo que não queria mais estar ali. — A minha irmã... E-Eu... A gente não devia...

[04:11] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

— Você não viu duas crianças saindo debaixo do seu nariz? — O tom irritado deixava a voz de Hinata mais estridente enquanto o cuspe voava e desdenhava das desculpas da enfermeira. Ela respirou fundo e andou para a esquerda, depois refez os passos para a direita e apontou para a fogueira: — Elas estavam aqui! Estavam bem aqui!

— EU SEI! Eu sei disso, tá legal? Eu não vi! — Os olhos azuis faiscavam em fúria e clemência assim que ela endireitou a postura e gesticulou ferozmente enquanto berrava: — Não jogue tudo pra cima de mim, eu não era a única respo...

— Você era responsável pelas duas! Era você! — O pedido de calma e para falarem mais baixo foi dito debilmente por Kabuto, numa tentativa inútil de amenizar o clima de fúria cega e preocupação que havia tomado conta do lugar. Parte daquela carga descomunal de cólera, pânico e medo foi transferida para o garoto dos portões. — A única coisa que vocês tinham que fazer era olhar a minha irmã e a sobrinha do Naruto, era a ÚNICA COISA! Elas sumiram! Elas...

[04:11] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

— Você é uma boa menina, não é? Não quer ajudar a sua irmã a ter mais comida? — As palavras foram ditas de forma mecânica, Jun mal sentia a boca abrindo e fechando, os lábios exprimindo cada sílaba e sua voz soando rígida e inflexível. Mas não foram elas que assustaram Hanabi, eram aqueles olhos lilases compenetrados, analíticos que a encaravam e assustavam. — Eu sei que você não é fraca, eu sei e você precisa mostrar pra eles, ou nunca vai deixar de ser uma menininha assustada.

  As palavras fizeram sua velha magia e Hanabi deu um passo para frente, alheia às fungadas de Jun.

— Co-Como... Como eu posso mostrar?

  Jun sentiu o suor gelado escorrer pela barriga e pelas costas assim que escutou o barulho de passos se arrastando sobre a cama de folhas e gravetos caídos, colocar a mão no cabo da faca de caça que carregava na cintura da calça de sarja foi automático e puxá-lo foi mais natural ainda.

— Eu vou te contar um segredo, Hanabi... — Os olhos perolados se arregalaram de pura excitação e a menina não estranhou quando sentiu a mão esquerda de Jun apertando seu ombro. — Eu sei que eles só estão doentes, eu sei disso porque todos eles são fracos. Todos eles, me entende?

[04:12] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

— Até onde eu sei, você também tem sua parte de culpa — o comentário era parte da intensificação da raiva de Hinata, o olhar de censura era a pior parte. — Você é que tem responsabilidade com a pirralha e isso aqui não é uma creche.

— Cala a porra da boca ou...

— Vai deixar o Kabuto tomando conta de mim? Acho que prefiro a parte em que você finge que me ameaça, garota — o ruivo deu um passo à frente assim que Hinata girou a cabeça em sua direção.

— É melhor você ficar quieto, Gaara — foi Sasuke quem falou antes de desviar a atenção para a floresta. — A última coisa de que alguém precisa é escutar seus comentários idiotas, então ajude a procurar pelas meninas.

— Isso é burrice — as três palavras fizeram o cenho de Naruto franzir e Hinata enrijecer ainda mais. — Olhem bem em volta: não temos comida, água ou lanternas para sair no meio do mato. Está escuro demais e não temos como procurar por elas sem denunciar a nossa posi...

— Você é idiota ou o que? — Sakura interrompeu Kankuro bruscamente. — Elas são crianças!

— Crianças também mijam.

— Crianças também se perdem — Shikamaru interveio antes que Gaara acrescentasse mais alguma coisa e lambeu os lábios antes de continuar: — Não importa de quem é a culpa, o que temos que fazer agora é sa...

[04:12] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

— Você sabe? — A sensação de alívio e compreensão tomou conta de Hanabi como uma roupa quente e confortável e ela não reclamou quando a pressão em seu ombro ficou mais forte. — Como você sabe se... eles... são fracos?

— Tem um jeito de saber. — Ela aproximou o rosto sujo e concentrado um pouco mais e sussurrou: — Foi o meu pai quem ensinou.

  O arregalar de olhos foi mais intenso, mais sofrido quando a lâmina de 9 centímetros escorregou na carne de Hanabi e foi fincada com força; seus dedos tatearam a jugular com lentidão, as unhas tentavam agarrar a mão de Jun de seu ombro e afastá-la dali, mas os dedos pareciam dormentes e não obedeciam à ordem mecânica para tirar a faca de sua pele.

  O fluxo de sangue era lançado com força e suas pernas falharam quando tentou dar um passo para trás e correr assim que Jun girou e puxou a lâmina com facilidade, foi aí que seus dedos alcançaram o buraco morno na jugular e tudo o que suas cordas vocais conseguiam produzir eram gorgolejos engasgados.

  Jun limpou o respingo de sangue no rosto com indiferença e seus ouvidos pareciam ser capazes de captar todos os sons do mundo ao mesmo tempo naquele instante, o baque do corpo pequeno cedendo e perdendo equilíbrio foi registrado junto ao arrastar trotado em sua direção, os grunhidos foram alcançando seus tímpanos em etapas e ela mexeu as pernas para se afastar um pouco quando observou a silhueta manca do infectado se materializando.

  Ela não sentiu que seus lábios se repuxavam naquele sorriso predador e cheio de dentes de seu pai, não notou que seus olhos ardiam pelas lágrimas e nem mesmo que o pânico e a euforia davam as mãos e disputavam o controle de seu estado emocional definitivo. Jun se afastou mais ainda quando a figura manca se aproximou, arrastava a perna com o osso exposto com dificuldade e apoiava o peso do corpo na perna boa.

  Aquele som, aquele horrível som de palavras engasgadas, de gritos afogados pelo próprio sangue, ficou mais intenso e foi sufocado pelos barulhos de mordida, mastigação e carne sendo engolida. Agora havia o cheiro – ela não suportava aquele cheiro de pele velha, dentes estragados -, depois o barulho da cabeça de Hanabi sendo esmagada contra o chão a cada sacudidela do infectado sobre seu pescoço, puxando e repuxando com força, com fome.

  Foi aí que Jun gritou.

[04:14] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

  O grito estridente e apavorado não havia capturado somente a atenção do infectado, mas também havia interrompido a discussão árdua entre Hinata e Ino, além dos comentários ácidos adicionados por Gaara de tempos e tempos. Aquela centelha de pânico eminente calou as vozes elevadas de Sakura, Shikamaru, Sasuke e Kankuro enquanto o grito de Jun reverberava pelas árvores.

— Isso foi...

— Hanabi? Jun?

  Foram as únicas quatro palavras proferidas por Hinata e Kabuto pouco antes de pares de pernas se mexerem na direção da penumbra da floresta; não houve mais comentários, vozes ou discussões quando os nove, com exceção de Kabuto – que olhava assustado para Naruto e para a floresta -, se lançaram em pares na direção que julgavam ser a origem do grito.

  O peito de Shikamaru subia e descia tão rápido quanto suas pernas assim que parou de correr e tentou se orientar por meio segundo antes de olhar para o chão pisado e os gravetos amassados, mas era o desnorteio daquele grito e do horror que sentiu que injetaram mais adrenalina ainda em seu sistema e logo ele estava em movimento outra vez.

  Sua boca se abria, puxava o ar e o cuspia rapidamente, sua mandíbula cerrou mais ainda quando avistou uma silhueta pequena, rente a um tronco de árvore. Seus pés redirecionaram sua rota e ele não se ouviu berrando por Hanabi e por Jun quando se aproximou, nem mesmo percebeu que os nós das mãos ficaram mais brancos ao segurar o cabo plástico do facão assim que seus olhos observaram a cena.

  Não foi exatamente um grito ensandecido que rompeu seus lábios e machucou sua garganta, era uma espécie de berro agoniado na mais pura dor assim que ele viu o corpo do infectado curvado sobre Hanabi e o cheiro de sangue invadiu suas narinas. Seu braço desceu num arco bruto, doído, e a lâmina abriu caminho da nuca até o ombro do infectado; Shikamaru mal sentiu o esforço do segundo golpe quando enterrou o facão mais fundo na carne ferida.

— Ah, não, não — gemeu debilmente assim que tirou o infectado de cima da menina de olhos vidrados. — Ah... Por fa... Jun, Jun... — ele virou a cabeça na direção da outra menina e seus olhos ficaram embaçados pelas lágrimas e pela constatação imediata que cruzou sua cabeça quando notou a lâmina suja nos dedos pequenos e os respingos de sangue em seu rosto.

— E-Eu... Eu... — o peito subia e descia, o ar brigava com seus pulmões e aquela mistura ácida de pânico e compreensão embaralhou seus pensamentos assim que os olhos castanhos do Nara a observavam. — N-Nós... nós viemos procurar comida e... e...

  Ele mexeu os braços e os passou cuidadosamente por debaixo dos joelhos de Hanabi e pela nuca dilacerada como se ela fosse reclamar por ser levantada daquela forma, o tecido da sua camiseta ficou úmido e pegajoso assim que encostou o corpo inerte ao peito. Shikamaru gemia e soluçava palavras de negação enquanto encarava Jun e a faca em sua mão, balançou negativamente a cabeça quando escutou a voz dela choramingando:

— E-Era... Era só... A gen-gente...

— Por favor, por favor, Jun... N-Nós temos que ir — ele fechou os olhos com força e sua cabeça conseguiu registrar o gosto salgado das lágrimas conforme elas corriam por suas bochechas.

  Pareceu que seus pés estariam congelados e inúteis assim que os levantasse, então Shikamaru se obrigou a arrastá-los na direção que julgava ser a do acampamento. Seus olhos vagavam para o rosto oval em seus braços e para os troncos de árvore, suas pernas tremiam e seus lábios não paravam de balbuciar pedidos de desculpas para a menina gelada que carregava.

  Ele desabou assim que escutou a voz de Hinata e, quando seus joelhos cederam ao peso do próprio corpo, Shikamaru lembrou de apertar Hanabi para evitar que ela sentisse a queda.

— Eu... E-Eu sinto muito, me desculpe, por favor — seu corpo balançou para frente antes de erguer a cabeça e encarar o rosto tomado em choque e descrença da Hyuuga. Sua voz era débil e arrependida enquanto murmurava: — E-Eu... cheguei tarde, era tarde, er-era...

— Hanabi?! Hanabi, acorda. Hana... — os dedos trêmulos de Hinata alisaram o rosto frio e afagavam a bochecha rígida. Embora ela continuasse a chamar pela irmã, embora ela escutasse os gemidos de Shikamaru e sentisse o cheiro de sangue e visse as lacerações no pescoço de Hanabi e a pele rasgada; apesar disso tudo ela continuava a afagar e dizer: — Acorda. Vamos, va-vamos...

— Pare, pare — ela escutou a voz dolorida de Naruto e sentiu o toque receoso dele em seus cotovelos, tentando fazê-la parar e ficar quieta. — Hinata. — Ela balançou negativamente a cabeça e continuou com suas palavras trêmulas até elas virarem balbucios chorosos e soluços doídos.

— Hanabi, acorda. Acorda agora, Hanabi, eu sei que... que... Po-Por favor, acorda. Acorda!

  Ela não parou até sentir a rigidez e o sangue empapando suas roupas e braços, sua voz foi sufocada por soluços e pedidos mais urgentes para que Hanabi fizesse o que ela pedia. Aquilo pareceu impulsionar aparte na sua mente que garantia que em seus braços, em seu embalo e com seus toques ela tiraria aquela rigidez mórbida dos membros da irmã, afastaria a frieza reservada aos mortos do corpo pequeno e a reanimaria, como se tudo não passasse de um susto.

  Quando Hinata viu que seus esforços eram inúteis, foi aí que ela se contorceu em desespero e seus murmúrios viraram meias palavras até se tornarem um som agonizante, dolorido.

  Ela queria dizer que queria ficar sozinha, que queria ficar bem ali e que não ia parar quando escutou a voz estrangulada de Naruto outra vez, mas sua garganta estava apertada demais para que palavras escapassem. Hinata sentiu o peso dos dedos dele no topo da sua cabeça, colando seus corpos lado a lado, então empurrou o rosto para o pescoço dele e ficou grata quando os soluços ganharam volume e as lágrimas deixaram seus olhos doloridos.

[05:11] 19/12 — Agora, Floresta de Nakanocho

  Eu gostaria que as coisas fossem diferentes – essa é uma bela frase para situações de absoluto fracasso, geralmente funciona quando alguém a diz e arranca a concordância coletiva de onde quer que ela esteja escondida. Eu queria mesmo que as coisas fossem de outro jeito.

  Por isso eu tentava desviar o olhar daquela cena doída: duas irmãs naquele embalo fraternal, íntimo, e, por mais que eu encarasse o chão, as copas das árvores, os movimentos frenéticos de Kankuro na terra ou qualquer um dos rostos absorvidos em seus próprios mundos, eu voltava a encará-las e não tinha coragem para pedir que Hinata parasse de apertar Hanabi.

  Eu entendia o que ela queria e desejava do fundo do coração que ela pudesse ter seu pedido realizado.

  Dê uma boa olhada no que realmente significa estar atrasado, garoto. Dê uma olhada ao seu redor, rapaz, e tire as suas conclusões. Era exatamente o que eu fazia enquanto a minha garganta fechava e as lágrimas faziam meus olhos arderem, então eu não sabia qual era a pior parte até ali: encarar os olhos mórbidos e congelados de uma criança ou os olhos apavorados e carentes de outra e decidir por quem eu era mais culpado pelo seu estado atual.

  Eu não conseguia me aproximar mais de Hinata e acabar com a distância de pouco mais de meio metro entre nós quando escutei sua voz sussurrando promessas para o corpo inerte de Hanabi, porque aquilo, aquela devoção era mais esmagadora ainda.

— Hinata — murmurei com esforço, mas ela pareceu não ter escutado quando repeti: — Hinata, nós temos que... — tentei recuperar a linha de raciocínio enquanto as observava, mas tudo o que a minha mente martelava era o que estar atrasado realmente significava nesse mundo.

— ...sinto muito, Hanabi. E-Eu...

— Nós temos que enterrá-la — implorei assim que consegui avançar mais alguns passos e minhas pernas pareciam estar soldadas por ter invadido o espaço de Hinata. — Por favor, ela... — as palavras simplesmente morreram quando Hinata me encarou com aqueles olhos perdidos e agoniados em dor, pura e simples, e só percebi que havia prendido a respiração quando ela balançou a cabeça numa confirmação muda.

  Dê uma boa olhada, era o que continuava fixo na minha cabeça enquanto eu observava as lágrimas deslizando pelo rosto de Hinata e caírem na testa de Hanabi conforme ela ajeitava o braço pelo corpo rígido e o afastava de seu peito. Mal senti o peso daquele corpo miúdo enquanto a carregava na direção oposta e não conseguia aceitar a frieza nos braços molengas que balançavam feito cordas a cada passo.

  Eu gostaria que as coisas não tivessem se resumido a covas rasas, sangue sendo derramado e tiroteios e que aquele silêncio sobrecarregado em dor, incompreensão e impotência simplesmente não existisse. Mas elas existiam e destruíam o resto de humanidade que havia sobrado.

  O buraco na terra não passava de 10 cm de profundidade e parecia surreal demais me aproximar daquela cova e de Kankuro, o mundo parecia estar preso numa névoa de anormalidade quando as pernas de Hanabi ficaram esticadas naquele buraco e em seguida a cabeça dela pendia num ângulo esquisito, como se não houvesse mais apoio entre o ombro e o pescoço.

  Permaneci agachado enquanto puxava a terra amontoada nos lados em punhados e cobria Hanabi, os gravetos e as folhas misturadas ajudavam a tampar as pernas finas, os dedos flexionados e a roupa empapada de sangue. Dê uma olhada ao redor. Eu não queria escutar as vozes chorosas, as palavras de consolo e imaginar Hinata desabando bem ali, sendo amparada por Shikamaru e Sakura, por isso enfiava as unhas com mais força na terra, puxava e cobria ignorando as minhas lágrimas e a colaboração silenciosa de Kankuro naquela tentativa de enterro.

  Aquela sensação sufocante de culpa e de incapacidade haviam limitado tudo à atos mecânicos de puxar terra e cobrir um corpo. Você poderia ter evitado isso, mas você adora chegar atrasado.

— Oji...

  Você falhou com Tsunade, falhou com a garotinha do abrigo, falhou com seu pai, falh...

— Oji-chan...

  Quantas vezes você não falhou com todos eles? Duas? Três? Mil? Nenhum foi suficiente até que todos eles estivessem mor... Finquei as mãos com mais força conforme os soluços débeis rompiam minha garganta e tudo o que eu enxergava era aquela mistura de terra, gravetos e folhas ganhando forma sobre o corpo de Hanabi. Você chegou atrasado, rapaz.

 — Não chora, Oji-chan. Ela não ia conseguir mesmo — as palavras sussurradas de Jun paralisaram meu corpo imediatamente e erguer a cabeça para encará-la foi automático e mais assustador ainda. Não reagi quando ela deslizou os dedos pequenos pelas minhas bochechas e limpava o rastro das lágrimas. — Ela... Ela está melhor agora, não é?

  Por favor, por favor, não. Aquela conexão entre cérebro e músculos não existia mais quando compreendi aquelas palavras de Jun e foi mais doloroso ainda do que olhar o corpo parcialmente coberto de terra de Hanabi. Por favor por favor

— E-Eu... Eu...

— O que você disse, Jun? O que foi que você disse?

— Hinata, Hinata! Pare! Pare!

— Ei, ei, se controla agora mesmo. Pode parar com isso.

  E lá estava ela: a inércia comum ao choque, tomando conta da minha cabeça e dos meus membros, deixando-os inúteis, extensões de carne que não adiantavam de porcaria nenhuma. Quando finalmente distingui as vozes de Jun, Hinata, Kabuto e Sakura, a fúria inconsolável da perda e da culpa havia deixado o ar pesado e tenso conforme Hinata avançava na minha direção e agarrava Jun pelo braço.

— O QUE FOI QUE VOCÊ DISSE PRA MINHA IRMÃ? FALA!

— O-OJI! TÁ ME MACHUCANDO!

— Solta ela agora, Hinata!

— O QUE FOI, HÃ? O QUE VOCÊ...

  Eu não havia percebido o quão rápido havia levantado e que estava puxando Hinata pela cintura enquanto ela lançava o corpo para frente, enfiava as unhas no meu braço e questionava Jun, levou um tempo até eu perceber que Sakura estava agachada na altura da minha sobrinha e Ino e Kabuto haviam se colocado entre as duas.

— Chega. Ei, ei — foi o máximo que consegui dizer quando soltei Hinata e segurei seu rosto contorcido em raiva e luto. — Nós não sabemos se Jun tem culpa — eu queria acreditar tanto naquelas palavras e queria que Hinata também achasse que eram verdadeiras. — Nós... Nós não sabemos.

— E-Ela nunca faria isso, ela... — sua voz sufocava em soluços e abaixava gradualmente. — A Hanabi, ela... Ela não devia estar morta. E-Ela era a minha irmã, a minha... — não pude fazer mais do que abraçá-la quando Hinata colocou a cabeça no meu pescoço e começou a chorar.

  Eu queria ter dito algo melhor do que aquelas palavras débeis e vazias de consolo e conforto, queria conseguir falar que as coisas ficariam bem, que Jun não tinha culpa e dizer todas aquelas frases mágicas que fazem a dor desaparecer. O problema era que eu sabia que nenhuma dessas frases era verdade, nenhuma delas traria Hanabi de volta ou nos poria nos trilhos da normalidade outra vez.

 As coisas vão ficar bem; Jun não tem culpa; nós vamos dar um jeito - eram apenas parte daquele consolo inútil e mentiroso, então tudo o que eu consegui fazer foi apertar Hinata e repetir a única coisa verdadeira no meio daquilo:

— Eu estou aqui.


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Notas finais do capítulo

YOOOOOOOOOOOOO!
MIL ANOS DEPOIS (literalmente) !!!
Em minha defesa prévia, minha vida pessoal entrou numa fase muito louca, onde saí da casa de minha mãe e fui seguir meu rumo. Enfim. Estou sem internet há quase dois meses e agora, as coisas entraram nos eixos.
O lado bom é que consegui escrever mais capítulos e a fic está praticamente terminada em meus arquivos. O lado ruim é o tempo desta atualização.
Sobre o capítulo em si:
— Hanabi acreditava que os infectados eram pessoas doentes e que careciam de cuidados, como seu pai;
— Jun partilha da mesma crença do pai, que ela faz parte de um grupo seleto que "vê" quais pessoas são fracas ou fortes, a partir do princípio que as pessoas fracas não resistem ao vírus, enquanto as fortes são imunes;
— há resistência por parte do Naruto em aceitar que uma criança de nove anos é capaz de ser responsável pela morte de alguém.
Aos que comentaram e não obtiveram uma resposta: agradeço, do fundo do coração, pelo carinho e por comentarem. Responderei as reviews assim que me organizar melhor nesse quesito.
Aos que ainda acompanham a fic até aqui, obrigada pela paciência.
A continuação será postada nessa semana. Até!



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