Darker Than Black escrita por MsRachel22


Capítulo 16
R.I.P. - Pt II




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R.I.P. (Pt. II)

Descanse em paz

¶ [04:36] 12/09— Três meses antes, Naniwacho ¶

  Os seis adultos e a única criança formavam um círculo ao redor da fogueira baixa no meio do matagal, as sombras deles cresciam feito garras e suas respirações viravam vapor em poucos segundos. A temperatura cai drasticamente à noite e se mantém assim até algumas horas da manhã, ninguém consegue esticar o corpo sobre o amontoado de folhas gélidas e dormir.

  A mulher mais jovem murmurava palavras calmas ao bebê aninhado em seu seio e coberto com duas mantas, ela balança o corpo para frente e para trás, um rapaz ao seu lado afaga suas costas e joga um pedaço de graveto na fogueira, as chamas estalam e ameaçam diminuir. O olhar confuso e assustado da garotinha ruiva está fixo na madeira sendo consumida e ela se sobressalta quando sente a mão pesada do pai em seu ombro.

  Os olhos dele, tão injetados e insanos quanto antes, parecem estudar seu medo e esquadrinhá-lo por alguns instantes antes de se suavizarem numa expressão de euforia. Jun conhecia aquele olhar, era comum nos pais quando estavam altos demais para o mundo real ou quando brigavam com seu tio – ela estremeceu quando ele apertou os dedos sobre sua jaqueta e a forçou a levantar.

— Vamos lá, querida. Preciso te mostrar uma coisa muito legal. Você vai gostar, eu prometo — ele murmurou num tom sombrio, como se estivesse prestes a conta uma piada interna e sorriu com animação quando guiava Jun para longe.

  Ela sentiu os galhos e as folhas mortas roçando seus calcanhares, ouvia as palavras de incentivo do pai para prosseguir e sentia sua loucura crescendo. Ele tinha que estar alto, tinha que ter uma reserva de drogas dentro da mochila com estampas florais da filha, isso explicaria aquele olhar obsessivo, o sorriso maníaco e assustador, a forma apressada como se movia.

  A floresta parecia engoli-los vivos, o farfalhar do vento nas copas das árvores era parte da a trilha sonora de terror de um lugar amaldiçoado, a baixa temperatura castigava a pele e cada passo avançado parecia despertar todas as criaturas semiconscientes dali. Jun sentia que sua própria respiração denunciava carne fresca e um alvo fácil, era tudo o que ela era.

  Ela tropeçou duas vezes e naquelas vezes a mão de Suigetsu manteve-se firme ao seu ombro, guiando-a para mais dentro da floresta. A luz fraca do luar iluminava parte do rosto dele e Jun se esforçou para não encará-lo tempo demais – ele parecia com um daqueles monstros, o olhar esfomeado e a boca contorcida num sorriso voraz.

— Não disse que você ia gostar, eu não disse hã?!

  Não foi o grunhido exasperado, desesperado como o de um animal preso numa armadilha, nem mesmo o cheiro de terra e a quantidade de sangue que escapava do cotoco da perna esquerda daquele troço que fizeram Jun tropeçar e gritar a plenos pulmões. Não que a coisa amarrada no tronco da árvore, com o rosto inchado e retorcido numa máscara felina e irada, não a assustou – pode apostar que ela estava -, mas era a semelhança com a sua mãe.

  A porra da semelhança a assustou, fez uma camada gélida de suor brotar de todos os seus poros e fazê-la chutar as folhas mortas e a lama por debaixo delas. Jun levantou o mais rápido que pôde e viu que aquele monstro sem sexo definido a encarava, rosnava para ela e se remexia impaciente. Carne fresca bem aqui! Façam fila! Tendões e artérias pelo preço de um!

— Não precisa ter medo querida... Esse pedaço de merda não vai nos machucar, tá vendo? Tá vendo como é doente e fraco hã? — ele soava insanamente pacífico e pôs as mãos nos ombros de Jun, inclinou um pouco o corpo para frente e ela sentia as pontas sebosas do cabelo dele tocando-lhe a nuca. — Vamos, vamos... Dê uma boa olhada de perto, que tal?

— Eu não quero! EU NÃO QUERO! EU NÃO QUERO!

  Os berros aumentavam num frenesi insano quando Jun sentiu seu corpo ser empurrado na direção daquela coisa amarrada, faminta e que a encarava como um pedaço suculento de bife. CARNE FRESCA! CARNE FRESCA BEM AQUI! Ela balançava a cabeça para os lados e enfiava os pés na lama o mais fundo que podia, tentava evitar aquele caminho de morte com a risada excitada do pai ecoando nos tímpanos.

— Não seja fresca como sua mãe! A sua mãe era bem assim quando a gente se conheceu, sabia? No final ela sempre curtia, você também vai — os rosnados aumentaram e quase tornaram as palavras convictas de Suigetsu inaudíveis, ele parou assim que havia menos de um palmo de distância entre sua filha e o que havia sido um ser humano, riu com satisfação quando viu um fio de urina escorrendo pela perna de Jun. — Ah, filhinha... Você já passou dessa fase, não passou? Mas que bela porcaria hein...

  Ele pôs as mãos nos quadris magros e quase inexistentes e balançou negativamente a cabeça, respirou fundo e tirou uma faca de combate de lâmina lisa de dentro de um estojo improvisado enfiado na cintura. Ele segurou o cabo e abaixou-se até ficar na altura de Jun, ela tremia dos pés à cabeça e emitia sílabas desconexas, as lágrimas banhavam o rosto e os cabelos estavam grudados na testa e em parte das bochechas.

— Escute muito bem querida, hoje você vai aprender a matar um Fracote, entendeu Jun? — ele apontou calmamente com a ponta da faca para o rosto distorcido e depois estendeu o cabo na direção da filha. — Vamos! Diga: Fracote! Diga! Vamos!

  Para ele, era como se ela estivesse dando os primeiros passos da vida na direção dos braços estendidos e cheios de marcas de heroína dele. Para ela, aquela porra toda era um pesadelo. A diferença é que Jun estava de olhos bem abertos dessa vez e parecia que toda a sua existência estava condenada a simplesmente ser deixada à própria sorte pelos pais.

— Vamos Jun! Pegue, querida! Pegue a faca! — ele sorria como um maníaco prestes a atacar sua vítima.

— E-Eu n-não... Eu não qui-quero... N-Não... — a voz chorosa e sussurrada ganhava tons estridentes e Jun logo balançava a cabeça furiosamente para os lados, um estado quase catatônico ameaça controlar seu corpo e ela sentia que a coisa a encarava, a observava. — P-Pap-papai... Papai! N-NÃO! NÃO! NÃO!

  Uma expressão aborrecida tomou conta de Suigetsu naquele instante e ele grunhiu irritadiço, não entendia como a menina podia estar tão histérica – exatamente como a puta da mãe, de algum jeito a garota havia herdado o lado dramático de Karin. Ele respirou fundo e murmurou o nome de Jun várias e várias vezes, mas ela simplesmente não se calava, não se acalmava.

  Por Deus! Não é como se ele estivesse estapeando a garota, então por que ela não calava a porra da boca só por um tempinho? Ele tentou ser paciente, tentou lembrar de que Jun ainda não estava totalmente acostumada com as regras do pai – a menina era mimada, estava estragada graças ao lado da família de Karin, o bando de maricas almofadinhas havia fodido com a única coisa boa na vida de Suigetsu.

  Se ele fosse um homem de orações, rezaria à todas as divindades de que aquele trio parada dura, especialmente o irmão rabugento e veado de Karin, estivesse sendo devorado por um bando de Fracotes.

— Escute aqui Jun, ou você cala a porra da boca e me obedece ou eu vou machucar você! CALA A BOCA! — ele berrou e o corpo todo de Jun tremeu como se ela estivesse convulsionando. Ponha as rédeas nela, exatamente como aconteceu com a mãe. — Ótimo. Viu só, amor? Nada como o doce som do silêncio... — o Fracote rugia mais alto, mais excitado com a confusão bem diante dos seus olhos e da fonte de comida bem ali. — Você vai pegar essa faca...

— P-por fa...

— ... agora MESMO! ANDA!

  Ele estendeu a arma branca com delicadeza e sorriu satisfeito quando os dedos finos e miúdos dela agarraram o cabo da faca, as mãos tremeram e a lâmina despontava trêmula a pouco mais de vinte centímetros de distância do estômago prensado daquela coisa.

— Muito bem, minha menina. Você vai matar essa coisa ou ela te mata, porque é assim que as coisas devem ser. Se você não enfiar essa faca na garganta desse Fracote, eu... Ah Jun... — ele exasperou e fitou o rosto aterrorizado da filha, deslizou a palma com calma pela bochecha esquerda dela e suspirou. — Eu sinto muito meu bem, mas isso quer dizer que você é fraca. Uma perdedora, entende? Entende isso filha?

  As palavras seguintes pareciam um mantra entorpecido, mas era a  teoria lógica de Suigetsu: os sobreviventes eram pessoas fortes, os fracos seriam transformados mais cedo ou mais tarde. A missão samaritana dele – agora também a de Jun – era livrar essas pessoas de seu sofrimento e evitar que elas arrastassem outras para essa merda toda, afinal de contas, é melhor cortar logo o mal pela raiz.

(The mark)

 Ela não duvidou das ameaças do pai, absorveu suas palavras em meio à descarga de adrenalina e de medo; nem por um segundo ela ousou se mexer e atrair ainda mais a atenção da coisa amarrada à árvore, não sentiu o peso da faca ou os dedos do pai nos cotovelos, ensinando-a a posição defensiva que adotaria pelo resto dos seus dias.

  O primeiro passo fez suas pernas tremerem, uma nova camada de suor gelado brotar na sua pele e seu estômago doer. Jun só reagiu quando sentiu o fedor de carne estragada, sangue e o odor acre das árvores, se afastou o mais rápido que pôde e teve o pulso puxado com força, girou e focou os olhos esbugalhados no olhar insano do pai. Ele a empurrou na direção daquilo.

  O primeiro golpe foi um puro reflexo na hora em que a cabeça daquele monstro ficou perto demais e a lâmina da faca deslizou com facilidade na carne mucosa da bochecha. Foi como deslizar em manteiga e um som esgasgado e abafado preencheu o ar; os golpes seguintes foram um vai e vém constante no primeiro buraco no rosto, cada vez maior.

  O salpicar morno do sangue em parte do corpo de Jun lhe causava arrepios, os olhos que a encaravam eram duas órbitas mortas e descrentes, mas a mandíbula continuava a se mexer, o barulho engasgado era cada vez mais sufocante, mais terrível e molhado. EU NÃO SOU! EU NÃO SOU FRACA! EU NÃO SOU FRACA! Os próprios gritos e silvos de ar doíam a garganta e o peito, ela mantinha os olhos focados no maxilar e ela sabia que aqueles dentes iam pegá-la.

— ISSO! Isso mesmo Jun! Viu só? Não é divertido acabar com essa merda toda, hein? Estou orgulhoso de você — ele enfiou as mãos nos ombros dela e a chacoalhou, o sangue gotejou com mais intensidade e os dedos miúdos apertavam com força o cabo da faca. Beijou-a na testa. — Não disse que você ia gostar, eu não disse?! Olha que belezinha você fez aqui, filha!

  Ele encostou a própria testa à dela e forçou o contato visual.

— Você não é fraca. Não é perdedora. É por isso que estamos vivos, Jun. É por isso que nós vamos sobreviver, porque na verdade todos eles são fracos e todos são monstros — ele murmurou as palavras como se entoasse um conto de fadas antigo, envolveu as mãos sobre a cabeça dela e a ninou; Jun não se movia, manteve a lâmina suja rente ao peito como um talismã. — Todos. Menos nós, porque nós temos que ajudá-los, entende? Você ajudou esse diabo aqui e foi muito bondosa. Você é a minha menina, minha menina boazinha... E você vai matar todos eles...

  ...ou então, eles matam você.

[17:43] 8/12 — Agora, 16 km noroeste, Estrada 337, Nakanocho

  O formigamento nas coxas e nas panturrilhas era quase agradável enquanto a voz cheia de estática de Shikamaru invadia meus ouvidos e me dizia que eu tinha que ficar de olhos abertos e alerta. O senhor óbvio ataca novamente. O coro infernal dos fieis infectados continuava com o mesmo fervor insano e esquadrinhei aquele amontoado de cabeças de novo.

  Eu gostaria de ter balas o suficiente para abatê-los como acontecia nos seriados e filmes. Seria bacana ter a porra da munição infinita e ver os corpos dançando com os tiros que os perfuravam. Quase sorri com a ideia e observei o sol se pondo mais adiante e me forcei a verificar quantos tiros eu podia dar dali em diante.

  Cinco cápsulas douradas estavam encaixadas no tambor e havia um pente para uma arma que não era minha. Meu facão é um souvenir agora para os desgraçados, nada de lâminas ou porrete, somente os punhos como última defesa.

  Preste bem atenção Naruto: vocês só tem essa chance. Não errem. Você e Hinata não podem errar se quiserem sair daí com vida. Entendeu?

— Hinata! EI! HINATA! — berrei o mais alto que pude sobre a cacofonia de urros e grunhidos, levou algum tempo até que ela virasse a cabeça e me encarasse. — PRONTA?

  Ela apenas levantou o polegar e observei-a estendendo bem os braços e aguentando o impacto da arma conforme ela era disparada sucessivamente. O cheiro de óleo começou sutil e ficou mais forte enquanto os últimos tiros acertavam o tanque de gasolina de algum carro; aquele barulho atraiu alguns infectados até a lataria perfurada e outros para mais perto de onde ela estava.

  Me aproximei da borda do teto e respirei fundo. Vamos lá, vamos lá... Tem que dar certo! Os passos dela, cada vez mais pesados e curtos em cima do outro carro, ecoavam com incrível volume. Havia pouco mais de um metro de distância entre nós dois, havia infectados ladeando os veículos e muita chance dela ser puxada enquanto impulsionava o corpo para um salto.

  Um de vocês precisa atirar tudo o que tem nos carros, mas acerte os tanques. Vocês têm que acertar, me entendeu? Depois salte para o outro carro, faça isso rápido. Se não for rápido e alto o suficiente, eles vão puxá-lo, entendeu? Se um dos infectados alcançar, já era pra vocês dois. Escutou? Já era.

  Ela mexeu as pernas como se corresse no ar e agitou os braços na minha direção. Você tem que pegá-la ou já era. Enfiei os dedos no antebraço esquerdo dela e a puxei com força, ela berrou conforme chutava e jogava o peso do corpo sobre o meu. Você TEM que pegá-la, droga! Aquele esforço inesperado fez meus músculos inferiores doerem conforme eu a arrastava para longe da borda, mas algo a puxava – nós sabíamos disso, sabíamos que algo estava agarrado aos pés dela e não soltaria tão cedo.

  O pânico dela me contaminou rápido e enfiei minhas mãos em suas costas e a puxei com o máximo de força que tinha, arrastando meu corpo para longe no processo e trazendo-a comigo. Ela não parava de chutar e repentinamente seu corpo ficou mais leve e caí de costas no teto daquele maldito trailer, a pancada foi dura e fez minha cabeça rodar.

  Vocês precisam correr. Tem que ser rápido, está me escutando Naruto? Se, eu disse se, vocês ficarem a salvo no outro carro, então se mexa logo.

— Você... be... — as palavras desconexas rodopiavam na minha mente e forcei meus olhos a ficarem abertos logo, mas havia uma explosão vermelha no meu rosto. Respire pelo nariz. Solte o ar pela boca. Virei a cabeça para o lado e espalmei as mãos na lataria e me forcei a começar a levantar. Abra os olhos, você tem que ficar alerta.

— Ah, mer... — sussurrei e senti a vertigem outra vez. Respira pela droga do nariz e solta a porcaria do ar pela boca! Levantei a cabeça rapidamente e mal distingui as formas ágeis que se moviam no chão, apoiei o peso do corpo nos joelhos e levantei bruscamente.

— Naruto, você está bem? — senti os dedos gélidos dela nas minhas bochechas e suspirei aliviado pelo toque, ela apalpou minha nuca e grunhi de dor. — Ei, ei! Quantos dedos tem aqui? — eu via apenas dois dedos finos e brancos na minha frente e me senti desnorteado quando eles triplicaram.

— Não comece com essa porcaria Hinata... A gente tem que dar o fora daqui — abaixei sua mão levemente e fechei os olhos com força. Apalpei o coldre na lateral da perna e encarei Hinata em seguida. — Não temos tempo.

  Ela segurou minha mão e a apertou por algum tempo, abriu a boca como se quisesse dizer alguma coisa. Naquele breve instante, naquele minuto congelado bem no meio daquele inferno, me senti totalmente seguro em muito tempo. Não havia mais nada além dos dedos dela entrelaçados aos meus, a forma como ela respirava e como seu rosto parecia imutável aos horrores do mundo. Só havia ela bem na minha frente.

  Apertei sua mão com certa força e eu queria dizer que tudo ficaria bem, queria dizer que íamos sobreviver de novo e que ela era algo bom para mim, apesar de todo aquele inferno. Vocês precisam continuar se movendo, ou a única coisa boa que você conhece pode morrer bem na sua frente.

  Todo trailer tem uma espécie de teto solar, uma porta de ventilação adicional na parte de cima. Tem dois puxadores, um do lado de dentro e outro do lado de fora. Use-o.

  Encarei a lataria e a alça cromada e poeirenta estava de lado, quase esquecida sobre o desenho perfeito de um cubo, agachei rapidamente e puxei-a com força, mas parecia que aquela porta não se mexia o suficiente.

— Anda sua porcaria, anda logo! — murmurei enquanto esticava os braços e puxava a alça com mais força, ignorei os leves estalos dos meus ossos até que a portinhola se abriu completamente. — Shikamaru, seu filho da mãe!

  Vocês tem um isqueiro não é? Sabe fazer um molotov?

  Segurei a alça enquanto Hinata se movia até o buraco no teto e enfiava as pernas, apoiava o peso do corpo nos cotovelos e descia lentamente. Ouvi o barulho que ela fazia conforme se movimentava dentro do trailer, abria gavetas, revirava armários, trombava em alguma coisa e recomeçava tudo de novo.

— Hinata...

— Está escuro aqui! — ela reclamou e ouvi o barulho de mais uma gaveta sendo aberta e coisas sendo reviradas ali mesmo. Escorreguei parte do corpo para mais perto do buraco e mantive aquela porta erguida, espiei dentro do buraco e vi um feixe de luz.

— Hinata... Rápido!

  A nova sessão de barulhos acrescentada ao zigue-zague de luzes causada pela lanterna que Hinata havia encontrado parecia atiçar a curiosidade de alguns infectados mais próximos ao trailer. Merda, merda, merda! O desespero começou a aparecer quando os corpos se chocaram levemente contra a lataria e Hinata soltou um palavrão enraivecido quando um vidro se espatifou.

— Hinata!

— Droga! Merda! Um minuto! Só me dê um minuto!

  A escuridão começava a se tornar cada vez mais presente e a temperatura caía rapidamente, espiei a fresta outra vez e fiquei mais impaciente quando outros corpos trombaram no trailer com mais força. Aquele barulho irritante de dedos escorregando pela lataria começou, bem como o coro dos fieis.

  É só mirar e jogar.

  Ela berrou quando me estendeu uma garrafa aberta de vodca, um pano enfiado no gargalo e encharcado com a bebida. Não deixa essa garrafa cair Naruto, ou já era. Já era mesmo, meu amigo... Franzi o cenho quando meus dedos apenas encostaram levemente na boca da garrafa e ameaçaram deixá-la cair assim que a peguei.

  Respirei fundo e segurei a respiração quando levantei devagar, abaixei lentamente a portinhola e coloquei o pé na fresta restante, para evitar que ela fechasse, mas meus movimentos ficaram limitados. Não gire demais o corpo garotão, não faça isso ou você não vai conseguir dar no pé pelo jeito menos complicado.

  A pouca iluminação restante destacava uma poça brilhante de óleo no chão, os tiros na área que devia ser o tanque de gasolina e os corpos que escorregavam e se agitavam ao redor dos carros atingidos. É só apontar e jogar isso. Peguei o isqueiro do bolso e meus dedos tremiam conforme eu o acendia e via a chama criar vida bem nos meus olhos e lamber o tecido encharcado.

  É só apontar...

  Se fosse em câmera lenta, a cena pareceria foda, quem sabe até mesmo digna de uma série de comentários inteligentes e perspicazes sobre o ângulo do meu braço, a força exercida, a rotação da porra do molotov e até mesmo o dano que aquela belezinha pode causar. Mas foi apenas uma espécie de puxão brusco; a garrafa deixava um rastro brilhante enquanto caía e seu conteúdo entrava em combustão logo em seguida.

  Uma labareda alta num formato quase atômico de bomba nuclear – aquele cogumelo maldito de marca registrada dos norte americanos – apareceu, como se alguma oferenda estivesse sendo aceita. Aceite esses infectados, ó divino, e cague suas tripas depois disso. O fogo se alastrou até os carros e os consumiu em outro formato atômico.

  Espere que os infectados se aproximem do fogo e deem o fora por onde vocês vieram. Eu vou tentar cobri-los, mas vocês precisam ser rápidos, me entendeu? Só tenho algumas balas. Não quero... E-Eu não quero que elas sejam nas suas cabeças, entende?

  A urgência foi mais forte do que o encanto em ver as silhuetas se aproximando das chamas, assistir como se deixavam levar pela claridade brusca e pelo crepitar da lataria. Ergui a portinhola rapidamente e imitei Hinata, o baque seco do cubículo fechado deixou claro que tínhamos que correr.

  Agarrei a mão dela, em meio ao escuro dentro do trailer e caminhei até a porta. Havia uma janela de pouco mais de oito centímetros na única saída daquele maldito trailer, além de um degrau. Espiei pelo vidro e os corpos começavam a se mover para longe em ritmos diferenciados e Hinata segurou minha mão com força.

  Cinco balas. Não desperdice.

  O breu quase total do lado de fora era tão forte quanto o cheiro de metal derretido, sangue fresco e óleo; aquele comando de levantar as pernas, impulsionar as panturrilhas para frente e manter os pés no chão era automático e urgente conforme a adrenalina corria em minhas veias e a informação Perigo ecoava na minha cabeça.

  CORRA GAROTO! VOCÊ TEM QUE CORRER! Os feixes trêmulos de luz que Hinata lançava com a lanterna me orientavam vagamente para onde ir. Em frente. Esquerda. Carro tombado. Dê a volta. Aquelas conclusões mecânicas pareciam chegar tarde demais conforme eu avançava e via as silhuetas aparecendo como fantasmas na minha frente; o rosto ferido e esfomeado de um infectado simplesmente surgiu ao meu lado e não consegui mirar rápido o suficiente em sua testa, o tiro rasgou sua bochecha.

  Em frente, ande. Agache. Direita. Corremos até o carro abandonado com as portas escancaradas e entrei no banco de carona e tentei sair até o outro lado o mais rápido possível. Então a cabeça de outro infectado apareceu debaixo do veículo e o acertei no meio dos olhos. Três tiros. Vá em frente. Eu obedecia as ordens, berrava para Hinata continuar correndo e para não soltar a minha mão. A proteção da estrada totalmente irrompida em dois pedaços de metal retorcido como garras apareceu a poucos metros e os infectados também.

  Eu os ouvia grunhindo, berrando e correndo bem atrás de nós. Sentia seu fedor e sabia que tinha que correr mais rápido do que eles, tinha que fugir antes que um deles lembrasse que ainda podia dar um impulso diferenciado, como um salto. Em frente! Esquerda! Se mantenha na grama! QUASE! CONTINUE CORRENDO!

  Minhas pernas doíam e respirar era tão doloroso quanto, a secura parecia machucar minha garganta e impedir que o ar circulasse com mais facilidade pelos pulmões. Senti os dedos de Hinata agarrando meu pulso e a puxei até que ela estivesse na minha frente; virei o corpo e atirei aleatoriamente. Outro urro, dessa vez mais perto e vi os braços estendidos na direção dela.

  ELE VAI PEGÁ-LA PORRA!

— HINATA!

  O tiro a queima roupa deixava um cheiro de pólvora no ar, como se a bala tivesse explodido com o impacto e espalhado tudo o que ela continha como um ato final. Meu braço ainda tremia pelo coice da arma e o cano dela estava quente. Os dois últimos tiros estouraram o infectado e sua cabeça como se fosse uma fruta madura; os fluidos contaminavam tudo e enchiam o ar com uma mistura de comida estragada, gosma e ferrugem.

  Agora você só tem seus punhos para se manter a salvo. É melhor correr... Virei a cabeça ligeiramente e ouvi os passos arrastados e acelerados aumentando, segurei o pulso de Hinata e a puxei comigo, forçando-nos a retomar o ritmo frenético de fuga. ANDA! CORRE! A grama parecia dificultar a corrida e quando outro disparo ecoou, Hinata parou momentaneamente e olhou para os lados.

— Por aqui!

  Os carros abandonados despontavam como uma espécie de ponto turístico incomum enquanto avançamos e retomamos o zigue-zague insano entre os veículos; saltei por cima de um carro depois de Hinata, deslizei pela lataria com certa dificuldade e retomei a corrida o quanto antes quando a silhueta de Shikamaru apareceu no horizonte. Outro tiro, um infectado caiu como se fosse um boneco no meio do caminho.

  Oitenta metros. Eu sentia as pernas doendo, não ia aguentar mais. Sessenta. Hinata me puxou pelo pulso com mais força e gritou quando um infectado se aproximou demais. Quarenta. O tiro estrondoso do rifle quase a acertou e observamos Shikamaru agitando os braços e mirando outra vez. VINTE! ANDA!

  O formato do jipe era perceptível e corri o máximo que minhas pernas permitiram àquela altura até o carro, joguei meu corpo sobre o outro veículo atravessado na estrada e subi no capô do jipe com alívio.

(I’m on fire)

— ME DÁ UMA ARMA! ANDA LOGO! – berrei desesperado quando vi que Hinata estava a pouco mais de dez metros de distância, mas forçava o corpo até o limite para manter o ritmo de passadas longas e rápidas. Shikamaru tirou o revólver da cintura e o jogou para mim, meus dedos tremiam demais e eu não conseguia destravar direito o cão da arma. — PORRA! ANDA LOGO HINATA!

  O mundo estava devagar demais. Eu vi o infectado surgindo na proteção da estrada e vindo na minha direção, só reparei na sua aproximação um pouco depois de ouvir seus grunhidos e gritei assustado quando ele esticou as mãos para mim. Mirei na sua testa e só consegui acertar sua garganta, ele fez um ruído abafado e molhado enquanto o sangue jorrava e ele sucumbiu depois de mais um tiro.

  Levantei desajeitado e corri na direção de Hinata quando um infectado apareceu pela lateral da estrada. Ela virou a cabeça duas vezes enquanto se aproximava de mim, o desgraçado também acelerou o passo e estava a pouco mais de alguns passos de distância entre nós. O coice da arma foi mais forte e meu ombro absorveu o impacto em segundos; o disparo causou um buraco do tamanho de um limão na testa do infectado.

  Segurei o rosto de Hinata e procurei qualquer sinal de que ela estava machucada. A hipótese era tão agonizante quanto imaginar estar com o vírus.

— Você foi ferida? Está tudo bem? — perguntei enquanto ela apenas balbuciava palavras desconexas e me abraçava com força. — Hinata? Hin... — ela enfiou o rosto no meu peito e senti seu corpo tremer, afaguei o topo da sua cabeça e a abracei de volta. Você conseguiu, garoto, conseguiu mantê-la viva... Ela está viva. — Vai ficar tudo bem. Estamos vivos. Estamos bem, me ouviu? Nós conseguimos Hinata. Temos que ir agora.

  Virei a cabeça levemente e Shikamaru continuava alarmado, afastei Hinata apenas o suficiente para encarar seu rosto e ela respirou fundo algumas vezes antes de se afastar totalmente e passar por cima do carro atravessado. Assim que ela entrou no jipe, copiei seus movimentos e sentei no banco traseiro do carro.

  A mochila do garoto ainda estava ali, talvez alguns dos seus pertences e tentei tirar da cabeça a forma como seu corpo fora amassado em cima de um carro à beira da estrada. E se... O motor roncou quando Shikamaru girou a chave na ignição e manobrou o veículo em marcha ré e depois as rodas giraram; encostei a cabeça no banco estofado e observei o rosto cansado de Hinata.

 — O que é que você está olhando? — ela perguntou com a voz cansada e me encarou automaticamente. Sua voz era apenas um sussurro e, apesar dos salpicos de sangue, da sujeira e de todo o medo que ainda espreitava ao redor, ela era a garota mais linda do mundo.

— Você.

  Ela ergueu levemente a sobrancelha e desviei o olhar envergonhado para suas mãos. E se... E se você não tivesse sido um babaca? E se o mundo não fosse essa loucura? O jipe avançou pela estrada num balanço suave e quase aconchegante, como se não houvesse mais nada lá fora.

— Somos uma dupla e tanto, eu e você — ela murmurou sonolenta. — Quem diria... Quem diria que... eu teria medo de que você morresse, não é? — ela sussurrou enquanto um sorriso discreto moldava sua expressão e ela ajeitava melhor o corpo ao banco. — Sabe de uma coisa Uzumaki? Eu gosto de pessoas esquisitas como você.

  Aquilo me fez sentir como se o mundo fosse simples de novo.

[01:49] 9/12 – Agora, Zona 4, Sala 6, Muralha, Nakanocho

  O olhar treinado de desinteresse moldou a expressão da moça como uma máscara, ela havia observado por anos aquele tipo de olhar no rosto da mãe e o adotou com incrível rapidez. Se estava chateada, incomodada ou puramente entediada, os lábios formavam uma linha reta e os olhos azuis pareciam distantes demais.

  Enquanto observava o rapaz assustado, encolhido em posição fetal sobre o ladrilho amarelado e molhado, Ino Yamanaka tomou a máscara de indiferença com conforto e desviou os olhos da pele nua para a prancheta em suas mãos. Ele tinha a sua idade, era educado e civilizado – qualidade raras em tempos como esses.

  Ela apenas observava através do vidro temperado, a única luz do cômodo de observação seria apagada em breve e era seu dever anotar o comportamento do garoto enquanto alguém não assumia sua posição. Ele tremia de frio, murmurava coisas desconexas, gemia e pedia por ajuda; foi com esforço que Yahiko finalmente levantou o pescoço e o esticou na direção da figura atrás do vidro.

  Ele a encarou, os olhos marejados e os dedos flexionados, suas pernas tremiam como se ele tivesse corrido uma maratona inteira e suas costas pareciam ter sido alvejadas. Ele esticou o braço esquerdo – esse ainda respondia aos comandos -, espalmou a mão adiante e forçou o antebraço, os bíceps e tríceps a puxarem o restante do corpo. Não adiantou muito e seus quadris escorregaram um pouco para frente.

— P-Po... P-Po-por... fa-fav-

  Faziam exatas oito horas que o vírus circulava por seu sistema nervoso.

  Já faziam sete horas e cinquenta minutos desde que fora despido, jogado dentro de um cômodo de ladrilhos amarelados, uma lâmpada vermelha em uma vértice, a luminosidade restante vinha de um retângulo de vidro temperado. Há sete horas e quarenta e nove minutos implorava por ajuda.

  Faziam vinte e seis minutos desde que fora açoitado com a pressão da água, como se fosse um detento com alguma doença infecciosa; sua bexiga havia se esvaziado por medo duas vezes; havia sido espancado há quatro horas e doze minutos; havia sido abandonado no escuro há uma; se passaram seis horas desde que sua capacidade de fala havia sido reduzida a sílabas cortadas ao meio.

(Help me)

  Yahiko não tinha uma noção exata de todas aquelas coisas, apenas se lembrava que fizera o que Shikamaru havia dito, foi à enfermaria e disse que estava com a barriga doendo. Você sabe que nunca deve mentir, menino... Ou vai ser punido, aquela voz rouca e bêbada da avó que o criara ressoou na sua cabeça como uma maldição antiga e passada de geração para geração.

  Ino desviou sua atenção para a folha de papel em suas mãos, quis tirar da cabeça o olhar moribundo, agonizante do rapaz e sua voz entrecortada; ela quase tapou os ouvidos quando ele começou a ganir de dor. O corpo franzino dele tremia e as pernas se agitavam sobre o ladrilho em espasmos, os punhos estavam cerrados, a coluna encurvada e suas omoplatas pareciam que iam se partir a qualquer instante.

  Sintomas. Anote os sintomas. Como se fosse a porra de uma gripe, nada de mais. Seus dedos tremiam demais e ela não conseguia firmá-los ao redor da caneta e descrever o que estava acontecendo. São apenas sintomas. Ele... só está... Os gritos continuaram e logo cessaram quando o corpo dele desabou, os tremores recomeçaram com seus soluços enquanto seu sistema nervoso era contaminado e suas células atacavam-se.

  O gosto de sangue encheu o céu da boca, a bile subiu em seguida pela garganta e seus lábios mal se abriam – o esforço parecia exigir demais de seus músculos que pareciam ter sido exercitados arduamente, horas a fio. Sua musculatura se rompia ao redor da espinha, seu cérebro explodia numa dor de cabeça descomunal e seus membros se moviam involuntariamente.

— Por... fav... POR FAVOR!

  Quando Hidan aparecera na enfermaria acompanhado por três soldados e quando eles se posicionaram como guardiões infernais, seguraram o garoto e o mantiveram imobilizado na maca, tudo o que a mente de Ino conseguiu absorver é que o garoto tinha a sua idade, era educado e lhe pedira que ela o ajudasse.

  Não fez nada quando um dos homens de jaleco apareceu, trocou palavras com Hidan e algum tempo depois apareceu com uma seringa descartável contendo um líquido amarelado. Ela não era estúpida, então assumiu a indiferença com comodidade assim que o protótipo do vírus foi injetado no garoto e as etapas de incentivo começaram.

  Os dois haviam conversado por uns minutos, ele havia sido educado com ela, havia dito que precisava de ajuda e não sabia se tinha comido algo estragado. Anote os sintomas. Ele sorrira quando ela disse alguma coisa sobre precisar examiná-lo. Não havia traço algum de sorriso no rosto dele, agora retorcido em dor, angústia e confusão.

— POR FAVOR!

  Ela não desviou o olhar do corpo úmido, trêmulo e encurvado, não conseguiu parar de olhá-lo enquanto o desespero e o vírus o consumiam, minuto a minuto, e o transformavam em outra coisa. O que foi que eu fiz?!

P-Po... POR FAVOR!

  O que foi que eu fiz?!


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Notas finais do capítulo

YOOOOOOOOOO!
Cá estou! Vou procurar manter o ritmo das postagens agora que estou de férias ;) Contratempos à parte, há algumas coisas a se explicar sobre esse capítulo:
— as fases de incentivo do vírus são, basicamente, exposições bruscas a situações estressantes e com o máximo de descarga de adrenalina possível, então de acordo com a(s) fobia(s) da pessoa, é feita uma bateria de testes, a ideia é saber se o organismo infectado ainda recebe ordens após o avanço da contaminação;
— o manual de sobrevivência de Suigetsu é essa teoria quase fanática de que ele é uma espécie de ceifador e que sua missão na terra é salvar as pessoas de si mesmas;
Rolou sentimento entre Naruto e Hinata, logo mais outras formas de afeto... Não achei que caberia eles se beijarem (qual é, eles estão sujos, suados, cansados e com fome, além da pirada do Naruto sobre o vírus). Vai rolar um tratamento de choque em algumas personagens, como Sakura, Jun, Kabuto, Ino e outros.
Espero que tenham gostado do capítulo.
Lembretes de praxe: qualquer erro, me avisem. Qualquer dúvida, por favor enviem. Estou aberta à sugestões, críticas, recomendações e afins.
Até o próximo!



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