Darker Than Black escrita por MsRachel22


Capítulo 15
R.I.P. - Pt I




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R.I.P. (Pt. I)

Descanse em paz

[14:11] 8/12 — Agora, 16 km noroeste, Estrada 337, Nakanocho

  Um urubu exibia suas longas penas e as esticava no ar enquanto rodopiava acima da minha cabeça, como um belo sinal do que aconteceria depois que a minha carne fervesse em cima daquele trailer. É um ótimo dia para morrer... É mesmo um lindíssimo dia para cozinhar com o vírus... Isso aí, senhoras e senhores, esse é o Dia para Morrer Infectado.

  Que forma deprimente e idiota de morrer. Será que comer carne de infectado dá indigestão nos urubus? Tomara que dê. Tomara que os desgraçados caguem as próprias tripas logo depois. Minhas mãos escorregaram da minha barriga e as apoiei sobre a lataria até conseguir sentar, foi aí que o mundo girou mesmo ao meu redor.

  Aquele coro eufórico de rosnados e berros ficou mais alto, mais próximo dos meus ouvidos e parecia que todos aqueles malditos infectados estavam sentados ao meu lado, berrando feito selvagens. Eu precisava fumar; precisei mais do que nunca do tabaco nos pulmões e que ele roubasse o gosto de tudo, necessitava sentir o calor morno da fumaça na boca.

  Só precisava de um trago. Nada mais.

  Ah merda... Não consegui desviar os olhos daquela massa sangrenta de membros e tecido despejada sobre um carro, nem mesmo dos quatro infectados que se curvavam e disputavam parte de um braço desmembrado, como se servissem num buffet. Os olhos – duas bolas brancas em meio àquele tom viscoso de vermelho – estavam no lugar por enquanto, mas o resto era assombroso.

  As costas haviam afundando no parabrisa do carro, o resto do braço direito parecia ter sido puxado como uma corda no cabo de guerra, já o esquerdo ainda era mordido por dois infectados mais corpulentos; mas os olhos ainda pareciam me encarar. Tateei os bolsos e não sabia o porquê, mas as lágrimas simplesmente começaram a deslizar bem como meu autocontrole no instante em que desviei o olhar do garoto.

  É assim que termina? Num monte de sangue, com o corpo fodido e beliscado por urubus e infectados?!

  Enfiei os dentes no filtro do único e amassado cigarro que encontrei e levei as mãos à cabeça, mal senti quando apoiei a testa no joelho e os primeiros tremores balançaram meu corpo suavemente. Um rastro sangrento de dedos estava em parte da minha calça e balancei negativamente a cabeça enquanto afundava-a mais entre os joelhos. Algum deles me puxou para baixo, foi só isso. Foi isso não foi?

  Repassar mentalmente o que deveria ter acontecido era mais aterrorizante ainda e não contive o primeiro soluço ou os que vieram depois desse, nem mesmo quando enfiei os dedos no couro cabeludo e tentava me lembrar do que tinha que ter acontecido. Não, não, por favor não! Não comigo! Não comigo!

— Merda, merda, merda... Merda...

  Você precisa ver isso. Precisa ver com seus olhos e depois morrer com dignidade em cima da porra desse trailer no meio do nada. Enfiei as unhas na palma da mão e respirei fundo, como se estivesse prestes a decepar um membro podre, enquanto estendia os dedos sobre a panturrilha esquerda e a apalpava com medo. ANDA LOGO COM ISSO!

— Ah merda... Merda... Merda! MERDA!

Nar... to... Voc... esc... ta.... Câmb… o…

  O chiado do walkie talkie me assustou imediatamente e me forcei a retomar qualquer tipo de controle sobre minha voz naquele momento, pois eu tinha certeza de que assim que abrisse a boca, berraria. Passei o braço pela alça da mochila e somente na quarta tentativa consegui abri-la o suficiente para agarrar o transmissor.

  Linha dois! Ele disse que ia ficar nessa linha! Shikamaru!

— Na... escuta, câmbio — encarei o urubu novamente e forcei meu olhar nele por um bom tempo. Em quanto tempo o vírus atinge o sistema nervoso? Horas? — Câmbio — repeti a palavra enquanto segurava com força o walkie talkie. — Shikamaru?

  A espera foi torturante, parecia que tudo havia emudecido repentinamente – exceto os infectados ali embaixo, os malditos não calavam as bocas por nada nesse mundo. Ah eles se calam sim, garoto... Ou você acha que dá pra berrar com a goela cheia de carne fresca? Apertei a barra da calça jeans amarrotada e suja e respirei fundo enquanto a erguia. Os vermes aparecem quando a carne apodrece, lembra disso daquela aula de ciências biológicas? O que te mantém vivo é o que te devora assim que o seu corpo esfria de vez e a merda toda incha feito um balão... Não vai haver vermes, mas quem sabe um arranhão... Uma ferida... Uma mord-

Escuta... Está na escu... Naru...? Câmbio — os chiados aumentaram e afastei um pouco o walkie talkie. — Naruto, está na escuta? Naruto?

— Shikamaru — murmurei em resposta e comecei a rir descontroladamente. Não sou eu, isso deve ser o cigarro. Essa merda deve estar vencida ou alguém colocou alguma droga aqui. Aos poucos minha risada morreu assim que meu olhar ficou fixo na sujeira e nas marcas de dedos na minha calça. — Eu... estou na escuta.

Você está bem? — o chiado diminuiu consideravelmente e balancei a cabeça negativamente, como se Shikamaru estivesse sentado ao meu lado e finquei os dentes no cigarro enquanto apalpava os bolsos com a mão livre à procura do isqueiro. — Naruto?

— Estou bem fodido na verdade — aquela confissão não surtiu efeito como nos livros de autoajuda, nem um pouco daquele desespero diminuiu e o pânico se intensificou na minha cabeça automaticamente. — Eu tô preso em cima de um trailer e... E-Eu acho...

O que aconteceu? Vocês estão bem? Alguém está ferido? — levou certo tempo até eu associar aquele interrogatório com o que havia acontecido, desviei o olhar e percebi Hinata agachada sobre o teto de um carro ali perto e os quatro infectados devorando o que havia restado do garoto. Aproximei o walkie talkie da boca e não controlei a ânsia quando ouvi os barulhos de mastigação.

— Ah, inferno... — duas cordas grossas, meio rosadas e com sangue espesso e gotejante foram puxadas de dentro da barriga do garoto. Puta que pariu puta merda PUTA MERDA! É a porra do intestino!! A porra do intestino! O som de algo molhado pareceu ter enchido o lugar conforme a porra do intestino escorregava pela lataria do carro. Não consegui prestar atenção à voz afobada de Shikamaru ou aos berros que vinham dali debaixo e o gosto de vômito encheu o céu da boa outra vez.

  Ergui a cabeça e segurei o walkie talkie com força, sentindo os dedos trêmulos e suados deixando o aparelho escorregar um pouco. Tenha algum controle, você tem que se controlar ou vai morrer cozinhando em cima desse trailer! Ou por acaso, señor, você quer acabar servindo de banquete pra infectados?!

 — Estou ouvindo — murmurei ao nada e fitei a silhueta imóvel de Hinata ali perto, parecia que era apenas uma questão de esticar bem as pernas e alongar o máximo possível alguns passos para alcançá-la.

Estou vendo você... E a Hinata... — a voz afobada de Shikamaru superava o chiado do walkie talkie e os sons de mastigação, fiquei aliviado por ambos e respirei fundo. — Cadê o garoto? Eu não es-... Ah merda! — encarei a silhueta de Hinata e fiquei aliviado quando ela passou a me encarar. — Ah merda... Merda Naruto, mas que merda!

  O tom paternal na voz de Shikamaru fez irradiar uma grande proporção de culpa na minha mente e a partir daquele ponto eu imaginava os torturantes “E se” dançantes e infelizes tecendo inúmeros finais. Nem mesmo comece com essa merda sentimentalista, nada disso vai devolver as tripas do garoto pro lugar ou te tirar dessa porcaria de trailer. Então se mexa. Logo.

Me escuta co... enção... Voc... tem isqueiro? — toda a minha atenção se prendeu à voz levemente sôfrega e ruidosa de Shikamaru, toda a estática que era transmitida pelos altos falantes anulava algumas sílabas e as palavras cortadas pareciam tão infantis e desconexas que quase ri daquilo.

  O vírus deve estar mesmo no seu sistema garoto... Você quer rir quando sua vida depende da porra das instruções com estática. Devia mesmo. Devia mesmo, concluí assim que observei aquela mancha na calça e enfiei os dedos na barra e puxei-a. Eu esperava ver um buraco pulsante, vermelho e quem sabe com alguns vermes pequenos, de corpo cilíndrico amarelado saindo da carne aberta.

  Ou talvez apenas uma ferida superficial, quase irrelevante e com meias luas marcadas na pele. A segunda ideia era razoavelmente mais possível, dadas as circunstâncias e encarei a pele imaculada da panturrilha com descrença. Nada de vermes de corpinhos cilíndricos e rastejantes, nada de uma ferida brutalmente exposta e dolorida. Não havia porra nenhuma daquilo.

  Então eu soube que estava mesmo delirando.

[14:47] 8/12 — Agora, 12 km leste, Creche Municipal de Nakanocho

  As moscas varejeiras, sobrevoando os corpos sentados que serviam de guardas à entrada outrora limpa e bem cuidada daquela creche, pareciam pontinhos brilhantes como pequenas lascas de topázio, zuniam um coro harmoniosamente espantoso e capaz de embrulhar o estômago. Deviam ter tido seus vinte e poucos anos aqueles cadáveres, as roupas rujas e os bolsos revirados indicavam que outros haviam passado ali.

  Especialmente os bolsos.

  Alguém se dera ao trabalho de cobrir ao menos a cabeça da mulher – devia ser uma pela saia até o joelho e pelas mãos pequenas jogadas -, apesar do tecido marcar nada além de um grande buraco escuro; mas não tivera coragem de fazer o mesmo ao outro. A boca escancarada e congelada num berro de dor, terror ou a mistura dos dois, estava cheia de moscas - a língua pendia numa posição esquisita e parecia tão perfurada por vermes e varejeiras que justificava a falta de coragem.

  Os buracos dos olhos e do nariz tinham quase o mesmo tamanho, parte do antebraço esquerdo dele fora arrancado e a perna direita foi roída até o osso. As janelas, antes límpidas e cheias de desenhos coloridos, adesivos de borboletas, mãozinhas, sóis sorridentes e todo o tipo de coisa animada e feliz, foram lotados de tapumes escuros e tinha o vidro trincado.

  O jipe foi estacionado no meio fio e a sombra do prédio se ergueu sinistra sobre o veículo, foi impossível para Karin não erguer os olhos para o letreiro e imaginar quais fantasmas habitavam ali. Ignorou os muxoxos de desconforto dos demais passageiros e fincou os dentes superiores na carne mucosa e macia do lábio inferior com força, respirou fundo e jurou ter visto uma cabeça minúscula grudada num corpinho imundo na porta da creche.

  Isso é abstinência, garota. A boa e velha caretice veio dizer “olá”, não vê?! Suas veias já devem estar fodidas demais para mais uma dose da senhora H... Abstinência, minha criança, faz os fantasmas da cabeça saltarem pro mundo real... Ela precisou encarar o portal guardado pelos cadáveres e depois encarar o próprio olhar abalado no espelho retrovisor, aliviou a pressão dos dentes sobre o lábio e encarou o banco traseiro.

— Quem vai fazer as honras e entrar lá? — embora sua voz forçasse naturalidade e certa descontração, o humor não chegou às palavras de Karin e menos ainda à sua postura. O zumbido das moscas parecia ecoar cada vez mais alto e aquilo a deixou de estômago embrulhado. — Nenhum de vocês quer ser o príncipe encantado e entrar no torre amaldiçoada? Que merda hein...

  A breve troca de olhares entre Sasuke e Gaara, em busca de apoio ou argumentos para simplesmente dar o fora dali, durou pouco e logo o ruivo respirou da melhor forma de pôde – parecia que seu nariz produzia o som de uma bolha de sangue estourando – e saiu do carro o quanto antes.

  Foi seguido minutos depois por Sasuke, os dois conferiram seus revólveres e o fio da lâmina das machadinhas. A caminhada de apenas sete passos curtos até o primeiro degrau, de pouco mais de cinco centímetros de altura, foi lenta e os dois se encararam por um bom tempo antes de Gaara estender a mão e apoiá-la na maçaneta alongada e suja.

  Karin sufocou um grito de horror quando viu um dos tapumes se mexendo e sua respiração de tornou acelerada o suficiente para uma descarga de adrenalina ser produzida em seu corpo. Abstinência... Estou vendo coisas... Estou vendo coisas! Os fantasmas saíram da porra da minha cabeça... As coisas não se mexem sozinhas...

  Mas aquilo se mexeu e quatro dedos relativamente pequenos surgiram na lateral do tapume. Sua saída do carro foi tão desajeitada e desesperada em avisá-los que havia um infectado dentro do prédio, que era quase cômico ver a forma como ela pisava e avançava. O olhar confuso contagiou os dois rapazes e desviou a atenção do restante por alguns instantes.

— É melhor eu entrar nisso aí, moças... Ou vocês vão levar uma mordida — ela balbuciou as palavras e apontou para os dedos enterrados no tapume, precisou respirar fundo algumas vezes antes de segurar o cabo do facão com relativa firmeza.

  Eles se encararam e Sasuke se posicionou à esquerda da porta, Gaara à direita e Karin de frente para o que quer que aquele lugar guardasse. O cheiro de putrefação e merda os atingiu como um belo soco no nariz e todos cobriram o rosto como puderam, o ruivo esgueirou o corpo porta adentro e foi seguido pelos dois.

  Mesas que mal alcançavam seus joelhos estavam reviradas, cadeiras da mesma altura tinham respingos de sangue e fediam a comida estragada, alguns baús estavam abertos, revirados e os desenhos infantis e coloridos pendiam abandonados nas paredes como a decoração de uma festa bagunçada. A primeira fisgada de terror os alcançou de uma vez assim que eles viram as silhuetas miúdas jogadas em ângulos errados atrás de algumas mesas.

  Karin não havia exagerado nem um pouco – era preciso ter o maior par de bolas ou a maior quantidade de frieza no corpo para aguentar aquilo sem ter vontade de dar o fora, cair de quatro no chão e vomitar tudo o que estivesse no estômago. Eles prenderam o ar o tanto quanto puderam e avançaram alguns passos, não conseguiam desviar os olhos dos dedos flexionados para sempre ou dos pés cobertos apenas por meias sujas de sangue.

  O horror crescente era mais enlouquecedor ainda quando se parava para fitar os rostinhos paralisados e ver que havia partes do corpo que estavam faltando. Jun, por favor, por favor, por favor que ela não tenha visto isso nunca! Que ela nunca fique assim! Os pensamentos fervorosos não resolviam coisa alguma e nem aliviavam o aperto que Karin sentia.

  Havia um corredor e Gaara apertou a machadinha contra o peito como se o cabo amadeirado pudesse afastar os fantasmas das sobrinhas de aparecerem e abraçá-lo pela cintura. Ou quem sabe, elas só vão aparecer daqui a pouco... Estão ocupadas brincando com as outras crianças mortas e vão te chamar para participar da coisa toda...

  Ele liderava-os aos corpos minúsculos, às vidas encerradas bruscamente e nem percebia os sons suaves de passos – sua própria respiração era alta o suficiente para preocupá-lo ali. Ele sentiu que pisava em algo rígido e tropeçou para trás ao ver uma menina estirada bem no meio do caminho, os cabelos ondulados e finos não cobriam os olhos eternamente arregalados e a poça seca de sangue ao redor daquele corpo era grande o suficiente para cobri-la, o ombro era o que havia restado do lado esquerdo.

  A cabeça dela ia se mexer, exatamente como nos filmes de terror e ela o encararia com aqueles olhos esbugalhados e a boca dela, suja e cheia de vermes, ia se mexer e ia culpá-lo por abandonar as meninas – as meninas de Kankuro, as suas menininhas— naquele casebre mofado. Por favor não se mexa, por favor fique parada, continue morta!

  Sasuke congelou no instante em que ouviu o som de algo sendo mastigado, roído até o talo e engolido com avidez, com a maior fome do mundo. Ele avançou o restante do corredor e precisou de todo o autocontrole que tinha para não olhar o corpinho rígido, pálido e ladeado por sangue e decomposição; a coisa agachada trajava o que antes era um uniforme de limpeza, os tufos de cabelo preto se emaranhavam na nuca e os braços finos e extremamente feridos agarravam alguma coisa e apertavam-na com força.

  Os três não controlaram o tremor, a ânsia de vômito, as lágrimas e a explosão de ira e verdadeira repugna assim que viram os bracinhos estendidos e os pés, tão pequenos e tão frágeis, cobertos por meias sujas. O barulho do tecido, de carne sendo puxada com força, os dentes podres se enterrando na área mucosa e antes imaculada, o maldito som daquela coisa se alimentando fez os três partirem na direção dela ao mesmo tempo.

(Heroes)

  Gaara alcançou-a primeiro e enterrou a lâmina da machadinha na jugular da infectada, um som grogue saiu dos lábios sujos enquanto um jato morno de sangue esguichava com força e manchava sua roupa. Ele repetiu o movimento com mais força. Cortou mais carne. Tirou a machadinha, devolveu-a aos tecidos e pele.

— LARGA! LARGA! LARGA ELA! LARGA ELA!

  Era só uma criança. Só um ser humano inocente, que não havia pedido para nascer num mundo fodido como aquele. Você abandonou suas menininhas, não foi mesmo? Você ajudou Kankuro a abandonar a família! As próprias filhas! A própria esposa! Ele enfiou a lâmina com mais força até separar parte do pescoço da base do corpo. Enterrou-a com o máximo de força que podia. Tirou e desferiu mais um golpe. E outro. E outro. De novo, até seu ombro e braço doerem pelo esforço.

— EU NÃO... EU NÃO AS ABANDONEI, PORRA! LARGA ELA SUA DESGRAÇADA! — o corpinho estava amassado pelo da infectada e um urro de puro ódio rasgou a garganta de Gaara.

  Karin permanecia onde estava – aquele barulho molhado da carne sendo cortada e o cheiro de sangue preenchiam todo o lugar, como um abatedouro - e se virou quando ouviu um rosnado agudo e muito baixo atrás de si, virou o corpo a tempo de ver uma criança caminhando em sua direção com os bracinhos esticados. Os fantasmas saíram da minha cabeça de novo! Eu estou chapada bem no final do mundo, bem na porra do fim do mundo!

  Aquele monstro podia muito bem ser sua filha, aquela criança transformada numa coisa esfomeada podia ser Jun a qualquer instante. Não era uma questão de se, mas de quando a merda toda bateria no ventilador porque, senhoras e senhores, Karin Uzumaki não achava que conseguiria salvar Jun do inevitável destino de virar uma infectada, ranger os dentes e urrar feito um animal.

  Nada disso. Ela não tinha fibra para enfiar uma bala na cabeça da própria filha se necessário, não mesmo. Uh-hã. NÃO É JUN! NÃO É! É SÓ UMA CRIANÇA! SÓ UMA CRIANÇA! Ficou hipnotizada por aqueles bracinhos, os pés deixando uma trilha de sujeira e a boca escancarada em uma clara proposta de qual era a serventia daqueles dentes.

  Uma das poucas regras de Sasuke Uchiha era não atirar em pessoas inocentes, nunca apontar uma arma contra quem não tinha como se defender e limitar o número de execuções ao estritamente necessário. Sua reação lógica seria, depois de tirar a arma do coldre, simplesmente puxar a porra do gatilho e abater aquela criança como um animal doente. Misericórdia, meu bom rapaz, nunca vai aliviar a verdade de que isso é um infectado e ele quer morder uma pessoa relativamente boa. Sua misericórdia vai matar a pessoa errada.

  Mas ele não conseguia parar de tremer, não conseguia tirar da cabeça os braços e pernas minúsculos, os corpinhos estirados e as pequenas mãozinhas se agarrando em qualquer coisa enquanto eram devoradas. ATIRA LOGO! Ele puxou o gatilho, mas o disparo acertou a parede e foi o suficiente para despertar Karin e a criança daquele torpor hipnótico.

   Karin balançava negativamente a cabeça enquanto se afastava, ergueu o facão automaticamente e na primeira investida que a criança fez, tudo o que ela pôde fazer foi empurrá-la.

— Por favor, não me obrigue... Não me obrigue... — ela implorou como nunca havia feito. As vezes seguintes, as malditas vezes seguintes, foram mais rápidas e ela continua a se afastar, a fugir daquela coisa. — Por favor... — Jun vai terminar desse jeito, vai ser assim que ela vai ficar... E sabe da melhor? Ela tem mais chances de sobreviver assim... Isso aí garota, você conseguiu foder ainda mais com tudo: nem mesmo para proteger a sua filha, sua única filhinha, você presta... — Por favor... — os soluços se misturaram aos gritos de raiva quando ela segurou a criança pelas mãos e a jogou contra a parede o mais forte que pôde.

  O grito seguinte foi mais sofrido e raivoso assim que aquele fato a abateu: não importava implorar naquela versão deteriorada de mundo normal, não adiantava fugir daquelas coisas, no final eles sempre saltariam e levariam tudo. Ela berrou quando desferiu o cabo do facão naquele rosto miúdo, berrou mais ainda enquanto o corpinho frágil se contorcia em espasmos estranhos e os pés pareciam sapatear; foi mais doloroso enquanto ela via aquele rosto ser desfigurado por suas mãos – as porras das próprias mãos - e o vermelho pintar tudo.

  Karin empurrou o corpo inerte para o lado e largou o facão ensanguentado, como se ele fosse ácido e pudesse machucá-la pelo contato, suas costas escorregaram pela parede e seus pés tocaram parte da poça fresca. Ela sentia os salpicos quentes de sangue no rosto, na mão e no pescoço, escorrendo em pingos disformes pela pele; escondeu os olhos no antebraço e não conteve os soluços e os gritos de dor, de raiva e de repugna. No final das contas, ela sempre teria que escolher entre ela e alguém.

  Nenhum deles ousou fazer algum barulho além de respirar um tempo depois, ninguém se moveu, nem mesmo quando mais duas crianças infectadas se ergueram da pilha de corpos e rastejaram na direção deles. Sasuke empunhou o revólver .22 outra vez e encarou os rostos distorcidos pelo vírus e cumpriu as ordens automáticas e desesperadas que sua mente dava. Os dois disparos seguintes cobriram qualquer outro barulho e o cheiro de sangue encheu o ar.

  Apesar do som das balas ecoarem nos ouvidos dos três, tudo o que Karin conseguia ouvir era a voz clara e arrastada de Suigetsu na sua cabeça, perpetuando um enigma que ele gostava de dizer quando estava chapado. Se ele soubesse que estava certo desde o começo, por Deus! Ele estava certo! Estava certo! Recomeçou a chorar.

  É assim que tudo termina, docinho. Ou você mata essas coisas....

  Os estalos úmidos recomeçaram do lado do cômodo em que Gaara ocupava, aquele baque molhado de carne sendo fatiada grosseiramente se tornou um barulho cada vez mais contínuo, mais persistente. Seu antebraço fazia um semicírculo quase perfeito todas as vezes em que erguia a machadinha e a desferia no corpo inerte do antigo funcionário do lugar.

  Sasuke mantinha a cabeça abaixada e curvou o corpo levemente enquanto a poça de sangue do corpinho estirado aumentava. Não tem como ela ter tudo isso de sangue. É tão pequena... Tão pequena... Seus olhos focalizaram o rosto abatido de Karin e a forma como seu corpo tremia, os dedos puxavam e repuxavam os fios vermelhos; suas próprias mãos tremiam todas as vezes em que ele encarava os pequenos estraçalhados.

  O tilintar da lâmina encerrou os movimentos mecânicos de Gaara, ele se afastou daquela massa sangrenta e encarou as crianças que foram deixadas ali a própria sorte. Exatamente como você ajudou Kankuro a fazer com as meninas, não foi? Não importava quantos infectados ele desmembrasse, quantos corpinhos inocentes ele vingasse ou que porra ele achava que fazia para compensar o que havia feito com a própria família, no final aqueles fantasmas iriam persegui-lo.

 — Não há nada aqui — aquelas foram as palavras mais irônicas que Gaara se lembrava de ter dito. Ele desviou o olhar dos membros pequenos espalhados, das poças de sangue seco, dos olhares vidrados em horror e do cheiro pungente de carnificina. O olhar catatônico de Karin o sufocou.

    Ou você mata essas coisas, ou elas matam você.

 


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Notas finais do capítulo

YOOOOOOOOOOOOOOOO!
Desculpe a demora, mas estive bem ocupada. Problemas pessoais à parte, espero que tenham gostado do capítulo.
Tentei um estilo mais gore dessa vez, se ficou muito pesado peço que me avisem. O capítulo original tem dez mil palavras, mas será dividido em dois. O próximo já está programado para daqui uns dias, então a espera será menor.
^-^'''' Peço desculpas pelo tempo entre uma postagem e outra, ando com mil coisas ultimamente...
A fanfic está praticamente na metade, ela não terá oitenta capítulos, talvez vinte e uns poucos. Ainda não decidi. Tentei caracterizar com a música "Heroes", que rolou no Stranger Things, esse sentimento de impotência e cobrança que cada um dos personagens que mais bancam os durões realmente têm. Eles não são os heróis óbvios, fizeram muita merda, mas não sentem que suas ações diminuam seus erros, não importam o quanto tentem.
Adicionando a atmosfera, essa impotência de impedir que crianças tivessem aquele final, juntou tudo. A covardia do Gaara com suas sobrinhas, o despreparo da Karin sobre ser mãe e a falha do Sasuke com o próprio irmão, ele podia ter evitado que Itachi fosse mais uma cobaia do Kakashi, mas ele preferiu se manter a parte e dizer que não podia interferir. Então essas falhas, toda a pose de badasses não adianta quando eles entram em campo e não conseguem encarar que o mundo está perdido - papo apocalíptico...
É isso.
Qualquer erro, dúvida, sugestão, recomendação, comentário, enfim... Enviem. Sei que não respondi todos os reviews, mas é que é muito legal saber que tem gente que se importa com meu trabalho e gosta das coisas doidas que eu escrevo.
Muito obrigada! De verdade!
Até o próximo!



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