Darker Than Black escrita por MsRachel22


Capítulo 10
No more Kid Stuffs




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10. Sem coisas de criança

[11:30] 2/10 — Agora, Muralha, Zona 1, Floresta de Nakanocho

O barulho suave da sua própria respiração lhe assustou, o teto cinza e as cortinas rodeando sua cama lhe forçaram a entender o que estava acontecendo. Por algumas vezes se esforçava para lembrar o que havia acontecido. Vagamente lembrava-se dos gritos desesperados de seu tio, a sensação de estar flutuando enquanto sua garganta se comprimia, a canção sôfrega que emitia e dos céus correndo por seus olhos.

Estava calmo, quieto demais. Não podia ficar ali - alguém iria machucá-la, alguém viria pegá-la e abandoná-la, exatamente como seus pais fizeram. Ela sentia isso em cada poro de seu corpo miúdo, forçou a visão para se acostumar à baixa claridade e notou a respiração mais pesada próxima a seu corpo.

Levou alguns minutos para reconhecer o rosto da mãe, os traços finos e as linhas de expressão que marcavam o contorno dos olhos além dos cabelos vermelhos e mal cortados. Um sorriso preencheu seu rosto. Sabia que a mãe iria encontrá-la para depois abandoná-la, porque ela era fraca.

Fracos morriam.

— Hã? Oi. — a voz grogue e aliviada de Karin ressoou baixa e cautelosa enquanto ela piscava os olhos, bocejou e levantou a cabeça. Seus dedos percorreram o rosto de Jun, alisaram sua bochecha e ela fechou os olhos com força. — Volte a dormir querida, você precisa descansar...

— Bom... Isso não tem como você saber, porque você não liga mamãe. — as palavras acertaram Karin com impacto e fugia de sua compreensão o porquê daquelas palavras; havia um sorriso calmo nos lábios de Jun e seu olhar era intenso. — Logo você vai me deixar.

— Não... De onde tirou essas ideias? Eu nunca vou te abandonar! — o tom desesperado emergia, lapidava seu rosto e fazia suas mãos tremerem. Suas mãos seguravam o rosto pequeno e redondo de Jun, forçando-a a manter o contato visual. — Eu te amo muito para fazer isso...

— Papai também me amava e ele está morto. Quando você vai morrer?

Não era confusão que abalava Karin e a fazia tremer - não, era algo mais intenso e cruel. A naturalidade que Jun cuspia as palavras e pendia a cabeça para o lado, como se fosse uma questão sobre qual cereal comprar o quanto antes, o sorriso calmo que não abandonava seu rosto e o olhar inocente dilaceravam Karin de dentro para fora.

Sentiu o cenho franzir, num reflexo de confusão e encarou a menina longamente. Queria ouvir uma risada, ver um dedo apontado em sua direção e alguém dizendo que não passava de uma brincadeira estúpida, um teste. Qualquer coisa seria melhor do que o peso daquelas palavras.

— E-Eu não estou te entendendo. Você... só está brincando, certo? — o olhar desesperado de Karin percorria a expressão de Jun, analisava o mais rápido que podia e tentava associar qualquer brecha, qualquer movimento mínimo a uma resposta que anulasse as palavras anteriores de sua filha e lhe transformasse na mesma garota que fora antes o vírus. — Você não pode me dizer essas coisas, ainda sou sua mãe.

— Isso nunca te impediu de me abandonar, certo? — ela sussurrou como se estivesse num monólogo, seus dedos enroscavam-se uns nos outros e sua cabeça pendia para a esquerda. Um sorriso de descrença atravessou o rosto de Karin e ela se forçou a manter aquele repuxar de lábios. — Você... Você vai me abandonar logo, não vai?

Era apenas um conjunto de palavras sendo expelido por uma criança, não passava de um punhado de perguntas e verdades nuas e cruas atiradas com maestria e horror por sua filha. Naquele breve instante de silêncio, finalmente algo fazia sentido: o mundo estava fodido antes de um vírus, antes de contaminação em massa e antes de crianças sobreviverem aos mundos infernais.

Não era mais a confusão, o choque ou o impacto das palavras que desestruturaram Karin e a deixaram sem reação. Nada disso a afeta. Odiava-se profundamente por perceber que aquela menina não era sua filha em nenhum sentido, em nenhuma circunstância e que não podia pedir que ela o fingisse. Aquela não era sua Jun.

A mudança repentina no rosto da menor lhe pegou de surpresa, o par de olhos lilases marejados e o rosto emoldurado pelos rastros úmidos e grossos de lágrimas acendeu um fio de esperança que inflou seu peito. O corpo miúdo se encolheu debaixo dos lençóis azuis, seus dedos enroscavam no tecido e puxavam junto ao peito como se aquilo lhe salvasse da aproximação de sua mãe.

Karin retraiu a mão estendida - mal havia sentido o movimento - e piscou furiosamente, as lágrimas ardiam em seus olhos e ela as enxugou com força.

— Eu não queria ter dito isso! E-Eu...! Desculpa mamãe, me desculpa! Não me deixe! Eu não quero ficar sozinha! — novamente os olhos de Karin vasculhavam o rosto infantil, buscavam uma prova de que ela estava perdendo a razão e imaginando coisas como sua filha perguntando quando iria morrer. Ela prendeu a respiração quando sentiu os braços infantis agarrando seu braço e a forçando a ficar por perto. — Você não pode me deixar. Você é a minha mãe e mães não abandonam seus filhos nunca... Então... Quando você pretende me deixar?

A contradição nas palavras de Jun era clara, instigava sua mente a imaginar o que de fato havia acontecido com a filha durante o tempo em que estivera sozinha e sobrecarregava seu corpo e sua alma de culpa. Sua mão livre pousou no topo da cabeça de Jun e seus dedos afagaram a região, entretanto ela não tinha coragem de encará-la. Não conseguia desviar os olhos, pois aquela criança destruía qualquer memória boa de sua Jun.

Sua Jun... Irônico. Ela não era sua há muito tempo.

— Nunca vou te deixar. — as palavras rasgaram sua garganta e Karin odiou-se no instante em que seu olhar prendeu-se ao dela. Um sorriso doce tornou a expressão de Jun mais suave, como se nenhuma palavra tivesse sido proferida até então.

— Eu te amo mamãe.

Karin havia fantasiado aquele momento: quase dois anos longe da filha e finalmente haviam se reencontrado, as lágrimas deslizariam independente de sua vontade e sentiria o calor dos braços miúdos e fracos rodeando seu pescoço; haveria alívio, calma, saudade e nenhum outro prazer no mundo chegaria aos pés de ouvir sua filha dizer aquelas três palavras. A fantasia era mais doce e fácil.

Embora a esperança vã de que podia salvar Jun do que quer que fosse ainda bombeava em seu sistema, nada conseguia diminuir a massa de agonia e dor que lhe afetavam quando sentia os braços de Jun rodeando como podiam sua cintura e sua cabeça repousando em seu peito. Fechou os olhos com força, esperando que em algum ponto fantasia e realidade dessem as mãos e respirar fosse mais fácil.

A esperança era uma verdadeira vadia.

[07:00] 2/10 — Agora, Muralha, Zona 51 - primeiro subsolo, sala 13, Floresta de Nakanocho

A luminosidade baixa e o ar gélido que circula o cômodo não incomodavam o homem de pouco mais de quarenta anos, seu olho bom observava o teto com desinteresse enquanto sentia o remexer inquieto da moça ao seu lado. Ele levantou-se nu e caminhou até o banheiro, bagunçou os cabelos prateados e coçou o olho.

Kakashi Hatake não era um homem movido a emoções, prendia-se e respirava as regras que estabelecia e era movido apenas pela ânsia do sucesso. Seria ele a reestabelecer o mundo. Seria ele a transformar a Muralha num exemplo de força e de controle. Embora seu corpo reclamasse da falta de ação, jamais deixaria de ser um soldado.

Fechou a porta do banheiro e ligou a torneira, a água morna deslizava em abundância ralo abaixo e ele fez uma concha com as mãos. Limpou o rosto e encarou seu reflexo no espelho, sentia a repugna atravessando seu estômago quando olhava fixamente para a cicatriz que atravessava seu olho direito.

Um bom soldado tinha marcas de guerra. Aquela era a sua e a odiava.

Fechou a torneira e atravessou o único metro que o separava do chuveiro, entrou no cubículo protegido pelo vidro temperado e girou a torneira cromada rapidamente, que Deus abençoasse a energia elétrica e sua magia de aquecer a água. Sentiu os músculos relaxando e gemeu de alívio, queria se concentrar naquele som da água caindo e numa canção que o ajudasse a relaxar, mas os urros animalescos não o deixavam.

Se abrisse os olhos veria as mãos ensanguentadas, sentiria o dorso coberto daquele líquido vermelho e podia sentir o gosto enferrujado no céu da boca. Não era seu sangue que o atormentava, era o sangue dos bons soldados, eram suas vozes que o impediam de dormir e eram seus pedidos altos e desesperados por ajuda que ainda fechavam sua garganta no meio da noite.

Era o preço pelo progresso, era o preço pela restauração do mundo e o preço que homens e mulheres pagariam sobre seu comando. Sempre haveria mais um para substituir o posto de um recruta, sempre haveria mais um homem desolado para carregar uma arma e mais uma mulher abalada para se voluntariar à morte.

Fechou e abriu os olhos com força, expulsando temporariamente os demônios que o assombravam e que lhe impediam de aproveitar as migalhas de avanço que conseguia. Balançou negativamente a cabeça. Deslizou os dedos sobre a cicatriz e senti-la lhe provocou enjoo.

A memória da lâmina deslizando por sua carne e cegando-o fez seu corpo estremecer, sua respiração tornou-se mais pesada quando imaginava o sorriso torto que lhe era lançada enquanto era, literalmente, marcado como um animal. Socou o azulejo imaginando que afetaria o rosto orgulhoso do único bom soldado que conhecera e guiou para a morte com prazer.

— Você está morto Itachi. Assombre seu irmão e me deixe em paz! — ordenou ao nada enquanto seu peito inflava com o orgulho de ter silenciado os urros e os pedidos de ajuda. Balançou rapidamente a cabeça e riu um pouco, logo voltou a relaxar sob a água quente.

Kakashi Hatake não era movido por emoções, nem mesmo por ânsia alguma. Eram os fantasmas que o mantinham vivo e era por eles que mantinha seu posto. Era um homem de guerra, seus princípios e valores estavam ligados à lealdade ao país e a mais ninguém.

Um país era único e insubstituível. Pessoas não eram únicas e eram facilmente substituíveis, era por isso que estavam na Muralha e era por isso que seria ele a livrar o mundo de seu caos. Ninguém era melhor do que Kakashi para substituir pessoas. Ninguém.

[07:47] 3/10 — Agora, Muralha, Zona 2, Floresta de Nakanocho

O vasto espaço verde e com grama alta seria relaxante, os raios solares mornos e assustadoramente brilhantes dariam certo conforto em algum momento, um pouco mais à esquerda havia uma fileira de caixotes e cerca de dez homens e mulheres carregando e limpando armas de todos os tipos e calibres.

A brisa suave agitava o mato e as copas das árvores, pouco mais de quinze metros adiante havia algumas cabanas reforçadas com metal nas janelas e portas além de dois buracos retangulares no solo. Franzi o cenho brevemente e virei um pouco a cabeça, avistei Shikamaru, Karin, Yahiko e a Haruno mais atrás de mim.

Uchiha, ambas as Hyuugas, Jun e Kankuro andavam mais à minha direita. Sorri de canto quando notei o tom roxo em volta do olho direito do Uchiha e uma faixa um pouco mais clara no mesmo tom no seu maxilar. Fiquei um pouco decepcionado por vê-lo andando normalmente, talvez eu devesse ter chutado com mais força entre suas pernas.

Meu corpo travou quando senti o toque morno no meu pulso esquerdo, minha mente tentava encontrar quais seriam as palavras certas para dizer quando encarei Jun ou o que fazer quando ela passou a desenhar círculos com as pontas dos dedos sobre a gaze. Ela mordeu o lábio inferior e franziu o cenho rapidamente.

— Dói Oji-chan?

— Não faça isso. — ignorei o olhar assustado que ela me lançou e agachei, eu não conseguia encará-la sem questionar o porquê de ela ter sobrevivido ou como ela havia feito. Assisti o movimento inquieto de seus pés para frente e para trás, enquanto ela equilibrava o peso do corpo num balanço suave. — Eu estou dando meu melhor, entende?

Não mesmo. Eu nem ao menos queria tentar. Entretanto era tudo o que eu conseguia dizer, repetir aquela mentira em voz alta parecia soar mais real a cada instante. Levantei a cabeça e ela me encarava com um sorriso calmo, exatamente como costumava fazer após invadir uma discussão.

Levantei e olhei em volta rapidamente, os olhares de acusação e leve irritação me acompanharam por mais algum tempo antes do rapaz de cabelos prateados aparecer correndo e agitando os braços num aceno mudo. Ele parou diante de nós e pôs as mãos nos joelhos, recuperou o fôlego e ajeitou os óculos de armação circular.

— O seu grupo está inteiro? Ninguém está faltando? — ele questionou olhando brevemente para cada um e tornou a apoiar as mãos nos joelhos. — Tudo bem. Sabem... Não sei quanto tempo vocês estiveram fora, mas há uma coisa chamada comunicação. Gesticular entende? Abrir a boca e emitir sons. É... um tanto eficiente.

Ele esperou um murmúrio, qualquer som ou gesticulação e ao notar que nenhuma reação aconteceria, simplesmente prosseguiu.

— Tudo bem, tudo bem... Meu nome é Kabuto Hatake e sou o responsável pela distribuição de tarefas dentro da Muralha de acordo com suas habilidades. É claro que vocês conversaram com nossos médicos e a doutora Ellie, então entendem que existe um sistema aqui. — ele colocou as mãos nos quadris e franziu a testa devido à temperatura. —Esse sistema mantém esses muros em pé e as pessoas vivas, por isso temos o cuidado de analisar cada um de vocês antes de permitir que circulem entre nós.

— Então por que estamos aqui? — Kankuro perguntou dando os ombros.

— Acho que uma caminhada não faz mal e seria interessante conversar um pouco. Como gente normal. — o garoto respondeu rapidamente e ajeitou seus óculos de aro circular. — Então... Seria normal vocês se apresentarem, compreendem o que eu quero dizer?

Ele não era o único com olhares analíticos enquanto cada um dizia seu nome e de onde vieram, os outros espalhados pelo campo também paravam e nos encaravam. Éramos perfeitos estranhos que fizeram uma entrada triunfal na Muralha no dia anterior, motivo mais do que suficiente para haver o dobro de cautela.

Mas não eram aqueles olhares que realmente incomodavam, mas sim os desenhos circulares e suaves sobre a gaze na minha mão. As perguntas clássicas rondavam minha mente e entravam em contraste com o sorriso travesso que Jun exibia, meus lábios repuxaram-se num sorriso cínico que ela interpretou como um incentivo positivo aos círculos imaginários.

Não importava quantas vezes eu analisasse e comparasse seus trejeitos, o modo como sua respiração parecia desaparecer quando arregalava os olhos ou a distância que ofuscava seu olhar quando ela pendia a cabeça para a esquerda. Não importava comparar o timbre de sua voz, suave e estridente com os segundos de sua risada infantil que me atormentavam durante o dia. Nada disso importava porque eu não a via como um pedaço da minha família.

Karin ainda era tudo o que me restava. Jun era um fantasma que se recusava a ir embora.

— Eu sabia que você me encontraria. Eu sabia que você me protegeria... Você prometeu, lembra Oji-chan? — as palavras dela me pegaram desprevenido, embora sua voz fosse suave e baixa foi a expressão calma e confiante dela que me destroçou. — Você nunca vai me abandonar, como a mamãe e o papai. Eu sei.

— Seus pais não te abandonaram Jun. — a mentira rasgava minha garganta e meu cenho franzia-se com força. O olhar inocente dela queimava. — Eles apenas... Precisavam de um tempo entende? — Claro, um tempo para foder e se drogar. Um tempo muito longo. — Mas acabou, entende isso? Sua mãe... Ela está melhor com você.

Eu queria acreditar naquilo fielmente. Queria acreditar com todas as minhas forças que havia uma razão maior para Jun estar viva, uma razão maior que se encaixasse diante da expressão contente de Karin e de sua cautela cada vez que se aproximava de Jun, como se ela fosse um animal acuado e pronto para atacar.

O ar que inflava meus pulmões parecia formar um bolo na minha garganta, entalado e difícil de aguentar por muito tempo. Apenas notei que havia desviado os olhos de Jun quando senti seus dedos tocando meu queixo e forçando o contato visual.

Aquela maldita inocência no olhar queimava, deslizava como veneno em meu sistema saber que simplesmente não conseguia mais vê-la como minha garotinha e a forma como ela insistia em me chamar, como se o mundo ainda fosse fácil de esquecer com canções de ninar, era apenas outra parcela que me destroçava.

Os outros 96% estavam cravados no ponto em que eu havia chegado.

— Nós vamos morar aqui, Oji-chan? Para sempre?

— Eu não sei. Estou dando o meu melhor para morar aqui, todos nós estamos tentando... — sussurrei agarrando um punhado do mato e o esfarelei entre meus dedos. Abaixei ligeiramente a cabeça, sentindo o bolo na garganta cada vez mais insuportável e meus olhos queimando suavemente. Levantei a cabeça e a encarei por algum tempo.

— Você ainda vai me proteger de tudo e de todos Oji-chan?

— Claro.

Eu havia chegado nesse ponto apenas para me livrar do olhar carente de uma criança. A palavra deslizou com a mentira nítida, um sorriso cínico e doído no rosto e meu olhar sendo sustentado pelo dela. Eu era filho da puta a tal ponto.

Senti o olhar curioso de Kabuto em minha direção, a felicidade que atingia Karin e o sorriso de aprovação de Shikamaru. Eu era um filho da puta ao ponto de fazer que todos acreditassem que eu realmente queria tentar reestabelecer laços com minha sobrinha.

Eu queimaria no inferno se ele ainda existisse.

— Vocês todos compareceram... Gosto de pontualidade em meus soldados. — a voz séria e mecânica ganhou volume rapidamente, acompanhava o som de seus passos e de mais alguns. Virei rapidamente a cabeça e encarei o homem de cabelos prateados e máscara negra sobre o rosto. — Relaxem. Não vamos começar um tiroteio.

Ele caminhou altivo até o centro do semicírculo que estava formado e se pôs ao lado de Kabuto, lançou um olhar analítico sobre cada um e cruzou os braços sobre o peito. Logo ele colocou as mãos atrás das costas e passou a andar da esquerda até a direita.

— Algum de vocês tinha ouvido falar da Muralha antes?

Yahiko levantou a mão receoso e depois de um balançar de cabeça por parte do outro, abaixou-a e trocou o peso do corpo para a perna direita. A pergunta sobre o quanto ele havia ouvido e de quem foi respondida em palavras cautelosas e bem colocadas debaixo de seu olhar analítico.

— Você está certo, garoto. A Muralha é um lugar para pessoas fortes, pessoas que deixam os pesos mortos para trás e continuam olhando para frente. Mas esses muros não são nada sem pessoas fortes e é por isso que somente elas conseguem atravessá-los. — seu tom era inspirador, um discurso com cunho forte e perfeito para soldados. Mas não éramos soldados. — Essas pessoas desempenham suas tarefas que mantém o sistema funciona. Se o sistema funciona, todos nós podemos dormir à noite e acordar no dia seguinte. Vivos.

Meus olhos estavam focados nele, no modo como gesticulava e mantinha a postura ereta.

— Se qualquer um falhar, o sistema falha e estamos mortos. Se o soldado Ferril falhar com a sua tarefa de distribuir o alimento diariamente, estamos mortos. Se a senhorita Ellie deixar de analisar cada um que entra por aqueles portões, estamos mortos. Se eu abandonar meu posto... Inferno, estaremos realmente mortos. — ele tomou fôlego e prosseguiu. — A partir do momento em que vocês entraram por aqueles portões, todos vocês foram submetidos a testes físicos e emocionais a fim de analisarmos quem realmente é forte.

Contive a vontade de exibir um sorriso sádico diante daquelas palavras, a inquietação à menção dos testes abalou cada um de maneiras similares e discretas: raiva, frustração, vergonha, humilhação e agonia. E era fácil notar que todos queriam fazer os responsáveis pelos testes sentirem o mesmo.

— Analisamos suas personalidades, habilidades, forças e fraquezas. Vocês foram vigiados e analisados por quarenta e oito horas e aqui estamos. — ele pendeu a cabeça para o lado e respirou fundo, propositalmente alto para acentuar certo pesar às palavras seguintes. — Vocês foram admitidos para a Muralha, todos vocês. Mas só tenho duas perguntas a fazer e a partir da resposta de cada uma, decidirei se sua estadia é temporária ou permanente.

Outra tomada de ar, outro olhar pesado e mais uma pitada de peso ao cargo que ele carregava teatralmente. Tratava-se apenas de dizer o que ele queria ouvir, fazer o que ele queria assistir e estaríamos dentro. Simples assim.

— Vocês estão dispostos a merecer essa estadia?

— Sim.

— Vocês morrerão defendendo esses muros e seu pessoal?

— Sim.

Não. Não mesmo. Não, não, não. Nem em um milhão de anos colega.

Eu não seria estúpido de morrer por outra pessoa, não jogaria minha vida para que outro filho da mãe sobrevivesse ou caso o fizesse, se tornasse um infectado no final. Eu não seria fraco. Nem ferrando seria um peso morto para que outro se erguesse e sobrevivesse dentro daqueles muros.

Mas meus lábios moveram-se na resposta positiva, minha expressão continha uma convicção odiosa e pendi a cabeça para o lado pouco depois. Jun me estudava com seu olhar e feições miúdas, ela se aproximou e fez uma concha com a mão e a pôs ao redor da minha orelha.

— Seu segredo está a salvo Oji-chan. Eu também não morreria por eles.

¶ [01:14] 25/12 — Dez meses antes, Tóquio ¶

Ela podia ouvir os gritos, embalados por fogos de artifício e canções natalinas. O suéter verde e vermelho - presente de seu pai - envolvia seu corpo e ela havia deixado os cabelos exatamente como a mãe gostava: presos num rabo de cavalo alto. Embora sentisse os braços aconchegantes da avó, embalando-a num abraço calmo sobre a sua cama, não era aquele par de braços que queria.

Seu quarto estava arrumado, pois seu pai dissera que queria conhecê-lo. Havia separado seus melhores desenhos e o presente dele estava debaixo da árvore de Natal no centro da sala, tal como o presente de sua mãe. Fora trabalhoso encontrar algo que eles pudessem usar, mais trabalhoso ainda embalá-los.

Mas ela ainda ouvia os gritos. Ela conseguia ouvir o barulho da prataria sendo atirada, conseguia ouvir a raiva sendo atirada em palavras hostis e conseguia ouvir as palavras desconexas de seus pais.

— Por que não descansa um pouco querida? Logo seus pais vão entrar e você vai querer conversar com eles a noite toda, não é? — Kushina sugeriu adquirindo a atenção da menor quase instantaneamente. Sorriu gentilmente enquanto agarrava a mão da pequena e a colocava para deitar. — Vamos tirar essas botas também?

— Papai e mamãe prometeram me levar para o centro. Vamos fazer bonecos de neve. — a convicção e a alegria permaneciam inabaláveis em sua voz infantil, ela esticou as pernas e ajeitou-se no travesseiro. — Depois vamos tomar chocolate quente e assar marshmallows com alguns amigos deles... E papai me deixou comer quantos eu quiser!

Aquela cena estraçalhava Kushina por dentro e a forçava a controlar as lágrimas diante da neta, afagou os cabelos vermelhos e lhe cobriu até a cintura. O colchão cedeu ao peso de seu corpo e ela se esforçou para manter o sorriso gentil enquanto Jun contava as promessas que havia escutado dos pais há duas semanas. Ambas sabiam que nenhuma delas viria a se tornar verdade, ambas sabiam o quanto aquilo era doloroso de dizer em voz alta, mas preferiam se agarrar às pequenas mentiras a enfrentar a realidade no cômodo ao lado.

O som de algo sendo derrubado chamou a atenção de ambas, era impossível conter a curiosidade que agitou o corpo pequeno de Jun e ela lançou as pernas para fora da coberta e da cama. Ela conseguia ouvir os gritos, era só uma questão de atenção.

— Querida, volte para a cama. Você não vai a lugar nenhum hoje. — a frase lhe pegou de surpresa, chocava-lhe ouvir aquilo de sua avó e vê-la com os olhos marejados. Ela não entendia. — Você... Está tarde. Já comemoramos o Natal de qualquer jeito, está na hora de dormir.

— Mas... Mas o papai e a mamãe... Eles prometerem, vovó! Eles vão fazer, eu sei! — sua voz soou aguda, desesperada e atravessou Kushina com brutalidade. Jun tropeçou para frente, seus olhos estavam arregalados e respirava rápido demais. — Eles vão cumprir vovó! Você deixou! Você prometeu!

Não estava certo a seu ver, ninguém podia impedi-la de viver com os pais, ninguém a amava mais do que eles. Era nisso que ela acreditava quando abriu bruscamente a porta e o ar fugiu de seus pulmões; o mundo girava em câmera lenta: seus pais desequilibrados, um tentando encontrar no outro o mínimo de ajuda possível para andar em linha reta, seu tio sendo segurado pelo avô.

Foi então que ela notou o sangue, os presentes amassados, os móveis revirados. Seu avô estava com o rosto ferido, sua mãe e seu pai gritavam, seu tio apontava na direção de ambos com o punho sangrando. Ela sentia a violência recém-chegada inflando seus pulmões.

Não haveria chocolate quente. Não haveria bonecos de neve e menos ainda marshmallows.

— Eu vou matar você! — o urro enraivecido de seu tio a assustou quando ele se desvencilhou do mais velho e se atirou contra seu pai. Outra vez o mundo estava em câmera lenta: os corpos atracando-se, os punhos erguendo-se em defesa e ataque, sua mãe empurrando seu avô e seus corpos tombando.

Mal sentiu seus pés arrastando-se pelo piso amadeirado até que notou que havia chutado uma bola amarela da árvore, agachou e pegou os presentes amassados que havia embrulhado.

— PÁRA!

— Eu vou... te matar! FILHO DA PUTA!

— Naruto! Karin! Por favor, parem! Por favor!

— Cala a boca! ODEIO... ODEIO VOCÊ!

Ela sentia os gritos, as expressões raivosas rodeando-a e se espalhando pela casa. Jun não compreendia, não entendia o porquê dos socos, das palavras cruéis, do modo hostil como seus pais gritavam, não conseguia encontrar a lógica naquilo. As lágrimas deixavam rastros úmidos em suas bochechas, pingavam de seu queixo e caíam frias em seus dedos.

— Por que... Por que estão brigando?

Ninguém a notara, ninguém sequer a ouvira ou sentira sua presença. A briga lhes sugava, lhes incentivava a continuar aquele ciclo destrutivo e animal. Aos poucos o olhar desolado de seu avô lhe alcançou, o choque inicial o aturdiu e ele correu em sua direção. Ele balbuciava palavras doces ante o antro de feridas frescas e violência mútua, mas Jun não as escutou.

Não escutou quando sua mãe a chamou com a voz grogue e arrastada, não deu atenção ao filete de sangue que escorria do alto da testa de seu avô e não deu a mínima quando seu pai tropeçou em sua direção com um sorriso idiota nos lábios. Sentiu o corpo trombando com algo macio e com pontas que coçavam suas canelas - a árvore de Natal.

Jun conseguia ouvir sua respiração alta e irregular demais, seu cérebro processava o tempo todo que estava vendo um pesadelo, estava na hora errada e no lugar errado, era isso. Era isso, certo?

Então simplesmente parou de respirar quando viu Naruto e Karin a poucos centímetros, ele com o punho erguido e ela com os braços estendidos a fim de proteger o corpo curvado de Suigetsu. Ela sentiu o cômodo cada vez menor, amassando seus ossos e a sacudindo para manter os olhos bem abertos.

— Por Deus! Parem! Vocês são irmãos! Jun está vendo! — foi numa voz chorosa e culpada que Minato cuspiu as palavras com uma firmeza que não reconhecia. Num esforço quase descomunal, ambos os irmãos se fitaram com mais calma.

— Saia daqui. Pegue esse filho da puta e saia daqui. — Jun não conseguia reconhecer aquele tom de voz perigoso e baixo que escapou da garganta de Naruto como sua voz, não conseguia ver em seus olhos duros o olhar carinhoso que a acompanhava até que ela entrasse na escola. Suas feições trincadas a assustaram, não havia nada do tio preocupado em desafiá-la a fazer a lição de casa. — Faça isso Karin, antes que eu...

— Não! Eu... — ela parou e piscou furiosamente. — Nós estamos aqui para passar o Natal com Jun e não com vocês, bando de desgraçados otários. Nós não vamos sair sem ela. Pode crer.

— Eu não te perguntei se você quer fazer, eu disse para pegar esse desgraçado que só sabe te foder e sair da minha vista. — o tom duro de Naruto sobrepôs sua raiva e estava realmente a ponto de batê-la se necessário. Jun enxergava isso em seus olhos odiosos, desgostosos e ainda assim penosos. — Ninguém precisa de você, não consegue enxergar isso? Ele vai meter em você e depois? Vão colocar outra criança para ser abandonada? Não, muito obrigado. Foda com a sua vida longe daqui. Bem longe.

(My imaginary Friend)

— Filha... — a voz de consolo em Minato ecoou tão fraca quanto sua menção de aproximar-se de Karin e lhe afagar o rosto contorcido numa dor só sua. Ela piscou furiosamente, processando a informação e seus olhos caíram em Jun. — Jun... Sua filha precisa de você. Mas precisa de você inteira, não apenas por uma noite entende? Nós podemos ajudá-la. Apenas diga e eu vou fazer isso.

Jun via a confusão atravessando os olhos de sua mãe, mas não entendeu como explodiram em fúria instantes depois, não entendeu o riso cínico que atravessou seus lábios machucados e formou linhas finas nos cantos dos olhos marcados pela maquiagem preta e borrada. E ela sentiu que aquela palavra, aquela pequena e estúpida palavra marcava muito bem sua existência.

Abandonada.

— Ajudar? Não... Vocês são hipócritas e têm inveja de mim. Queriam se divertir como eu me divirto... Vocês queriam viver como eu vivo e têm uma puta inveja porque nunca vão me controlar! — o riso arrastado e grogue que rompeu sua garganta soava cruel demais, insuportável e o modo como seus ombros se agitavam era mais insuportável ainda. — Eu não preciso de vocês. Nós dois não precisamos.

Seus dedos moveram-se do peito exposto pela gola em V na direção de Naruto e depois na de Minato, o sorriso não abandonou seu sorriso mesmo quando ela se agachou e ajudou Suigetsu a levantar. O acesso de riso voltou mais forte e contagiante - ela e Suigetsu riam e riam. Riam por abandonar Jun novamente com sonhos de bonecos de neve e marshmallows assados.

Aquela alegria nos rostos risonhos e marcados por uma magreza assustadora lhe doía. Ela sentia os sonhos ruindo, o cômodo cada vez menor e esmagando seu corpo, mas querendo que ela ainda ficasse de olhos abertos e assistisse a realidade sorrindo ante os fogos de artifício eclodindo e iluminando os rostos desolados de seus avós.

Jun manteve seus olhos nas costas de seus pais e nos braços entrelaçados, dando suporte ao outro. Nenhum dos dois olhou para trás. Nenhum deles notara o suéter, o rabo de cavalo estúpido ou os malditos presentes que havia embrulhado. Porque eles não demonstravam nada além de alegria em se ver livres dela.

De novo.

— Onde você está indo Naruto? Naruto?! NARUTO?! RESPONDA! — aquela erupção na voz de seu avô a pegou de surpresa, o homem calmo tremia e recebeu um olhar ferido e de aviso vindo do outro. — Por favor... Filho será...

— Será que podemos tentar do seu jeito? Não. Já tive o suficiente por uma noite. — ele retrucou arisco e suas mãos tremiam. Ele fechou os olhos e massageou a nuca num sinal de nervosismo claro. — Eu estou cansado, estou por aqui da Karin e desse vagabundo. Estou de saco cheio de vocês todos tentando dar uma chance a ela quando ela não quer.

— Ela ainda é sua irmã, queira ou não, ainda somos uma família!

— Família hã? Grande porcaria.

O baque da porta não fora maior do que aquele que as palavras finais de Naruto causaram, havia ódio em suas palavras que transbordavam de sua garganta e se transformavam em injeções letais de crueldade sádica. Jun apertou os dedos com força no embrulho que ainda segurava e sentia as lágrimas pingando de seu queixo.

Ela abaixou a cabeça e ouviu o último estalar da queima dos fogos nos céus, a música natalina soava alto do apartamento ao lado e os risos deles machucaram-na, encostavam-se a sua agonia e retalhavam os pedaços restantes de seus sonhos.

Não haveria bonecos de neve, nem mesmo marshmallows e menos ainda chocolate quente. Porque ninguém ligava, ninguém lhe dizia a verdade e estavam esperando a primeira oportunidade para abandoná-la. De novo. De novo. De novo e mais outra vez.

[12:03] 2/10 — Agora, Muralha, Zona 1, Floresta de Nakanocho

Os barulhos dos disparos compunham a mais perfeita melodia na Terra, nada se comparava àquele som da bala atravessando o ar e fincando-se no que estivesse em seu caminho. A tensão nos ombros e braços era aliviada pelos tremores repentinos da arma ao ser disparada, o cheiro de pólvora e estilhaços recém-feitos inflava meus pulmões.

Eu podia sentir meu dedo perfeitamente encaixado ao gatilho como se fosse uma extensão natural do meu corpo. Àquela altura era. Os raios solares ou sua intensidade não me atrapalhavam, pareciam me desafiar a acertar com maior precisão nos caixotes com garrafas e copos estilhaçados.

E eu sabia que era apenas outro teste.

— Parem! — a ordem curta e quase infantil foi emitida com firmeza por Kakashi e quase mecanicamente os outros seis que estavam mais ao meu lado direito pararam, alguns minutos depois eu, a Haruno, Yahiko e Shikamaru paramos. — Foi um treinamento produtivo não acham?

— Não acha que estamos desperdiçando munição em garrafas? Isso não é um treinamento. É um desperdício. — Yahiko conseguiu emitir certo desespero em suas palavras e ele trocou a arma de mão, da esquerda para a direita, limpou o suor da testa e levantou os ombros. — Quero dizer...

— Acha que é perca de tempo e de recursos soldado? — a voz imperativa ecoou novamente, seus passos duros amassando a grama alta pareciam ser parte de sua natureza arrogante e altiva. Ele pendeu levemente a cabeça para o lado e seu único olho transbordava indiferença. — Essa é sua opinião final?

Eu poderia fazer duas coisas naquele instante: a primeira era bancar o idiota e ver até onde aquela discussão iria, enquanto a segunda consistia em destruir a imagem estúpida que vinha arquitetando e perder a estadia dentro daqueles muros. Mas eu sabia que estava faltando alguma coisa. Vamos lá, ele quer alguma coisa, mas o que? O que ele quer provocar com isso?

— Acho que temos um problema de comunicação soldado... Isso não é um desperdício de recursos ou tempo, é um treinamento que irá salvar sua vida e garantir a estabilidade do sistema. — ele argumentou com dureza e respirou lentamente. — Mas é claro que vocês não estão acostumados a tudo isso, esteve acostumado à escassez de recursos e entendo sua preocupação.

— Se você quer saber se podemos matar um infectado à distância bastava perguntar... — Karin interveio e lançou um olhar desinteressado sobre Kakashi. — Vamos lá Capitão Gancho, todos nós estamos torrando aqui porque você está fazendo do seu jeito e é lento. Então porque não pergunta ao Uchiha ali o quanto ele sabe sobre nós? Nós salvamos o rabo dele.

Karin era rápida demais em perceber as coisas e mais ainda em cuspi-las do modo mais hostil que encontrasse, embora suas palavras tivessem pegado a todos de surpresa estava nítido que ela estava testando Kakashi também.

— O ponto aqui não é sobre como vivemos lá fora ou como matamos um infectado. Você quer saber se prestamos para ficar dentro desses muros definitivamente, acertei? — ela jogou a pistola que carregava e jogou na direção de Kakashi que a pegou habilmente, ambos se encaravam com desafio e certa ansiedade. Um sorriso cínico atravessou os lábios de Karin. — Você já esteve fora desses muros, Capitão?

Kakashi estreitou os olhos o máximo que pôde enquanto ficava em silêncio.

— Sim.

— Por quanto tempo? Uma semana no máximo? — Karin deduziu rapidamente e sorriu com o silêncio dele. — Então você nunca vai entender o que é ter recursos escassos e nunca vai entender essa preocupação. Então que tal você fingir que você sabe do que está falando e nós fingirmos que você entende o que passamos lá fora, hã? Sem corações partidos e ainda vamos ajudá-lo a manter essas paredes intactas.

Direta como sempre.

— O teste acabou Gancho. — o modo como Karin lançou aquelas poucas palavras deixou Kakashi levemente sem reação, como se não estivesse acostumado com aquele tipo de tratamento e isso era interessante. — Se quiser saber de qualquer coisa, pergunte. E não nos chame de soldados ok? É infantil.

Não demorou muito para os outros imitarem o ato de Karin ou a maneira arrogante como pisava no matagal até o alojamento, mas eu precisava admitir: Karin era esperta o suficiente para saber que Kakashi não admitiria outro confronto.

— Sua irmã tem personalidade forte, Naruto... Exatamente como você. — franzi ligeiramente o cenho ao ouvir sua voz e notar que ele ainda encarava as costas de Karin. — Espero que ela tenha consciência de que todos precisam colaborar para que o sistema continue em perfeito funcionamento.

— Qualquer coisa por esses muros, lembra? — murmurei levantando a sobrancelha rapidamente; recebi outro olhar analítico de Kakashi como resposta e sua máscara se retorceu num sorriso asqueroso e eu sabia que não era amigável. Pense... O que ele queria com essa droga de teste, hã?! Pare de pensar em Jun e se concentre! Repasse o que aconteceu.

Era uma matemática bem simples: some um Uchiha estúpido, uma Haruno arisca, um punhado de tensão aqui e olhares analíticos de Kakashi ali. Acrescente a atitude brusca de Karin ao momento e também a busca constante de Kakashi por uma garota e... Bingo!

— Ah e Naruto? Tenho um palpite de quem é a responsável por ter feito meu soldado abandonar o posto... — o sorriso cresceu sob o pano escuro e seus olhos brilhavam como se ele conhecesse o melhor segredo do mundo. Aquele maldito sorriso me irritou. — Mas é claro que não serei estúpido em dizer o nome del...

— Em quarenta e oito horas e isso é o melhor que você tem? — interrompi-o bruscamente e seu sorriso oscilou. Ótimo. O próximo passo é arrancar a porra da máscara e depois seus dentes, um a um. — Você não é estúpido em dizer um nome porque você não o tem. Sabe, minha mãe dizia que pessoas mentem porque são fracas e arrogantes demais para admitir que não sabem de tudo ou que são covardes para fazer o trabalho sujo sozinhas. Acho que ela estava inteiramente correta... não é?

Assisti-lo andar o mais altivo e arrogante possível para longe dali foi um momento de leve triunfo, como se trocar palavras hostis ainda jorrasse adrenalina em minhas veias e fosse o suficiente para viver dentro daqueles muros. Talvez fosse.

— A vovó nunca disse isso.

— Não é como se ele precisasse saber.

[21:36] 2/10 — Agora, Muralha, Zona 3, Floresta de Nakanocho

Sorria Naruto... Apenas continue sorrindo como um perfeito canalha e logo poderá dormir. É só seguir o plano. Apague a droga da luz! Aquela sensação de déjà vu continuava trazendo à tona memórias que eu precisava esquecer, sentimentos que não podiam fazer parte daquele mundo e que não se encaixavam em Jun.

Não era o apartamento em Osaka, aquele não era o quarto de Jun e não havia seus desenhos espalhados pela cômoda e grudados na parede. Não havia as marcas de suas mãos em tinta guache verde e vermelha - uma escolha alternativa para mostrar o quanto havia crescido -, nada do maldito suéter vermelho e verde que havia ganhado do pai imprestável ou da mochila jogada no pé da cama.

Continue sorrindo. Ela vai desconfiar que você não está tentando. Manter aquele repuxar de lábios é sufocante, as negativas em minha mente chocavam-se contra o apartamento de Osaka e o quarto na Muralha. Enquanto eu puxava a coberta até seus ombros, eu sentia Jun me analisando e procurando uma brecha do quão desesperado eu estava para fugir logo dali.

— Oji-chan... Tudo bem?

Não! Não diga uma palavra ou vai ferrar com tudo! Apenas balancei positivamente a cabeça e respirei fundo quando me afastei dela. Bom garoto... Apague a luz e pode ir. Meus dedos formigaram quando toquei o interruptor.

— Oji-chan? Pode ficar comigo até eu dormir? Não confio neles... — ela sussurrou como se houvesse algum monstro debaixo da cama ou dentro do armário, estava pronto para dar meia volta e atravessar o corredor até meu quarto quando Karin entrou carregando duas canecas fumegantes.

— Sua mãe pode fazer isso. — ditei rapidamente antes que Jun retrucasse e Karin sorriu desconcertada. Parecia que ela encarava um animal arisco e acuado, não a própria filha.

— Eu não confio nela também... — Jun murmurou como se estivesse contando um segredo, sua voz quase inaudível estava à altura dos dedos agarrados à ponta da coberta e o corpo encolhido sobre o colchão. Encarei Karin rapidamente e suas mãos tremiam.

Havia algo seriamente errado ali.

(The first time I saw your face)

— Por que nós dois não ficamos então? Eu fico de olho na porta e seu tio fica de olho em você, que tal? — embora Karin tentasse soar o mais casual possível, seus olhos não acompanhavam o sorriso que esboçava e suas mãos ainda tremiam. Ela andou com cautela e me estendeu uma caneca. — Nós vamos protegê-la.

Jun não parecia confiante do que Karin dizia e manteve o corpo na mesma posição até que eu sentei no chão, o contato visual era praticamente forçado e desagradável da minha parte. Rodopiei a caneca entre minhas mãos até que Jun relaxou o corpo e o sono a venceu. Encarei a porcelana enquanto tentava entender o que estava acontecendo.

Quando Karin me encarou, estava em outro déjà vu: ela com quinze anos, os olhos tremendo e a boca seca enquanto estendia o exame de gravidez. Positivo. Aquela maldita palavrinha me tirou o sono por semanas enquanto berrava o quão morto Suigetsu estava. Foi necessário algum tempo antes que eu percebesse que não tinha mais dezesseis anos quando ouvi a notícia.

— Então... Aconteceu alguma coisa entre vocês duas? — murmurei com cautela e Karin forçou um sorriso, seus olhos piscavam furiosamente e seus lábios tremiam tanto quanto suas mãos. Ela pendeu a cabeça para o lado e fixou o olhar em Jun.

— Não, é só que... Ela está um pouco inquieta. Só isso. Todos esses exames, a pressão de ser observada e tudo o que aconteceu desde que a encontramos sozinha... É muita coisa para ela lidar. — parecia que ela havia ensaiado cada palavra, o timbre que cada uma adquiria conforme seus olhos piscavam mais e ela estreitava os olhos. — Você... sabe de alguma outra coisa? Como quando vocês conversaram na floresta?

Franzi ainda mais o cenho enquanto encarava o rosto calmo de Jun e sua respiração suave.

[23:15] 30/9 — Dois dias antes da Muralha, Floresta de Nakanocho, Joto Ward

Você tem que tentar Naruto... Ela precisa de você. As palavras de Karin ziguezagueavam na minha cabeça conforme eu observava as chamas dançando e crepitando sobre a madeira, eram tão malditas e irritantes que pareciam criar novas frases, novos motivos para me dar ao trabalho de fingir que eu compreendia o motivo de Jun estar respirando.

Supostamente eu deveria tentar. Mas não queria, não queria conseguir.

Mantive o corpo agachado, à altura do dela enquanto seus olhos não se desviaram do meu rosto. Tente. Só um pouco. Suspirei e respirei fundo. As palavras arranhavam minha garganta e soavam falsas, mesmo seu eu as imaginasse o mais convincente possível ainda seriam mentiras cuspidas sobre uma criança.

E eu queria não ligar.

— Você entende o que está acontecendo, Jun? Com as pessoas e com o mundo? — perguntei enquanto ela apenas balançava positivamente a cabeça. Como se explica a uma criança que o mundo que ela conhecia acabou? Não existem manuais para o fim do mundo. — Bom... Olhe, eu vou dar o meu melhor entende? Mas nada mais é como antes.

— O vovô está morto? — um soluço cortou sua garganta enquanto ela me encarava com os olhos marejados e lágrimas rolando pelo rosto. Eu queria respirar fundo, o mais fundo possível e cuspir toda a verdade de uma vez sobre ela. Mas não consegui.

— Ninguém sabe. O que eu sei é que você precisa ser forte Jun, precisa se proteger do que existe lá fora. Existem pessoas boas, pessoas más e infectados... É tudo o que restou. — murmurei enquanto ela continuava a soluçar. Por favor! Tem que ser mais fácil! — Um dia eu vou morrer, sua mãe vai morrer e todas as pessoas que você conhece também vão, mas até lá você precisa ser forte para sobreviver e para proteger quem você ama. Entende? Eu gostaria de te proteger disso... — era insustentável olhá-la e pronunciar cada palavra como se elas realmente significassem algo. E eu queria realmente que elas significassem, queria que aquela menina soluçante fosse a mesma Jun que eu segurei ainda recém-nascida de olhos curiosos e sorriso banguela.

Os risos me atormentavam - os meus e os dela - enquanto eu pressionava suas mãos pequenas e gordas contra a tinta verde e depois contra a parede. Ela havia conseguido com apenas quatro anos e sete meses pintar boa parte do meu rosto e sujar o vestido lilás novo.

— Eu gostaria de dizer que vai haver sorvetes e condições para dormir, queria mesmo que o vovô estivesse aqui para negociar com você, mas não posso. Eu...

— Nada de coisas de criança?

Num ato mecânico balancei a cabeça positivamente e minha mente continuava dando voltas sobre o que fazer ou o quanto falar. Eu gostaria que você fosse uma criança normal com uma infância normal, queria que o mundo fosse como antes, mas nunca vai ser. Não existe espaço para esse tipo de coisa. Eu não posso prometer nada disso. Sinto muito.

— Nada de coisas de criança.


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Notas finais do capítulo

YOOOOOOOOOO!
Cinquenta anos depois... Perdoem a demora. ^^'''' Estou focando em DTB por esses tempos (escrever essa fanfic me atrai) e dividindo meu tempo com ead, projeto da faculdade, enfim... Espero não ter perdido o ritmo e espero que tenham gostado da proposta do capítulo.
Algumas pequenas explicações adicionais:
— o relacionamento entre Suigetsu, Karin e Naruto era bem tenso, por conta dela ter engravidado aos quinze anos e abandonado tudo por Suigetsu e seu dito amor, logo Naruto cria a Jun como se fosse o pai dela;
— a Jun é uma personagem complexa e traumatizada, confia apenas no Naruto;
— o título condiz com a atual situação em que Jun se encontra, ela sente que não deve mais agir, pensar ou falar como criança, ela assume uma maturidade que não é tão adequada levando em conta certos fatores, mas necessária em outros fatores.
Sei que o foco acabou muito na Jun e na relação dela com o Naruto e com a Karin, mas também foi preciso. Os próximos capítulos terão um salto de tempo e de comportamento das personagens, em especial da Sakura, Hinata e Naruto.
Se houver sugestões de músicas ou afins, são bem-vindas.
Obrigada por todos que acompanham a fanfic e aos novos leitores: boas vindas. o/
Críticas, sugestões, reviews, recomendações e outros são bem-vindos.
Até o próximo! o/
P.S.: A Muralha vai começar a ter seu lado sombrio explorado. E não vai sair nada realmente saudável disso.



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