Uma Música De Treva E Sangue escrita por Rivotril


Capítulo 7
Boa noite, lolita


Notas iniciais do capítulo

- Ponto de vista: Deli; 1ª pessoa.
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As noivas me mordem, sugam de mim com tamanha sede que seus vestidos brancos logo se tornam vermelhos. E tudo apaga.

O toque da chuva me acorda, uma chuva morna, despertadora, fugazmente familiar. Olho para ambos os lados, nesse charco inesperado, e percebo de sobressalto que sua origem vem das cabeças ausentes de minhas amantes, as quais lhes faltam entre os ombros. “Não foi assim que as deixei no ocaso anterior, eu posso jurar”, penso, em minha condição quase sonâmbula, enquanto dos tocos de seus pescoços, como árvores de carne cerradas, gêiseres de sangue serpenteiam alucinadamente, chicoteando suas revoltas. A parede de trás torna-se uma pintura terrífica, e os lençóis, outrora marcados pela volúpia, agora transbordam morte. Eis que o silvo ameaçador realmente me traz à tona, o som de metal cortando o ar. Entre minhas carregadas olheiras, o gume de uma foice me saúda com o brinde de sua ceifa maldita. Na outra ponta, empunhando a haste irregular com sôfregas mãos diminutas, uma menina de longas tranças louras se desfaz em lágrimas, ao mesmo que rosna, mostra o fio de seus dentes, como um animal selvagem e louco. Gemo de desgosto, compreendendo de súbito o que se passa. É uma coisa pequenina que amo, Nana, a lolita que se prostra diante de mim como um executor de bordados e sapatilhas. Mas ela não compartilha de meu modo peculiar de amar, e me reforça isso da pior maneira possível.

– Na-na... - pronuncio seu nome, separando as sílabas num gesto ponderado. Procuro parecer amigável e compreensível na absurdeza do cenário. - Por que matou as noivas de Luiz?

A lolita vacila, divaga em sua perdição a ponto de ruir. Provavelmente busca as palavras que ilustrem apropriadamente a angústia que a corrói, tão distantes, orbitando a lua poente. A foice, porém implacável, mantém-se firme em sua vigia. Repito a pergunta, “por que matou as noivas de Luiz?”, e ela parece ouvir apenas insultos e acusações, pois explode. Meus lábios se rompem num ligeiro avanço da lâmina, e o sabor do corte infla meu anseio por puni-la.

– Eu, que tanto me dediquei a você... - ela indica com um meneio perturbado os corpos decapitados, deformando a face delicada numa sentença de traços irados. Sua voz quebradiça de menina torna-se apurada como de mulher. - ... não passo de uma tola saturada em corpo de boneca. Humanos ou vampiros, por que todos são abusadores de bons sentimentos? Estou cansada de ser o passatempo de demônios cruéis!

O breve desabafo de Nana me esmaga, desorienta-me como se a nudez me envergonhasse. Mas o que mais me desconsola não é o fato de ser visto como um monstro – disso eu gosto. Dói-me essa falsidade, esse descaso infantil para com minha natureza, tão nítida como o temporal que se aproxima, apenas para justificar cobiça e egoismo. Não restrinjo minha exclusividade por capricho, libertinagem ou vaidade. Restrinjo-me pois, assim, evito de me machucar e machucar os outros – o martírio que fere duplamente, como um espelho. Já não há pele virgem que me vista a carne e os ossos. Minhas cicatrizes se fecham sobre cicatrizes.

No momento, refletir sobre o que estou prestes a fazer é meu maior veneno. O temperamento de Nana se revela uma ameaça – e estou prestes a machucá-la. Muito.

– Preciso refrescá-la quanto ao destino de minha última noiva? Que enterrei-a caixão dentro de caixão, até seus gritos serem totalmente suprimidos? Hoje jaz mumificada em uma gruta verdadeiramente remota no Egito. A perspectiva a agrada, devo supor? - indago-a, com sentimento, na esperança de salvá-la. Entretanto, minha paixão confunde-se com revolta, e instigo sua loucura de minguante para crescente, a qual exterioriza num grasnado pavoroso.

– Estou muito magoada... e com raiva – ela apenas bufa, como a criança que aparenta ser por trás de suas décadas de vidas sorvidas. Seus braços curtos de luvas compridas me concedem uma resposta mais elaborada, uma dança-guilhotina de cetim e aço.

“Nota-se”, a voz interior me confidencia, seguido de um “mate-a!” mais acalorado. A lâmina envolve meu pomo-de-Adão num beijo perigoso. Desvencilho-me como a donzela que recua das investidas do beberrão, tão de repente aliviado por poder respirar sem me sentenciar à degolação.

– Nana... permita-me recordá-la que estou fraco e sem sangue; vazio, infértil. Se me matar nesse corpo, demorarei anos para retornar, talvez perderei um século no nebuloso caminho das almas. Dome seus demônios interiores, criança, ou tratarei de devorá-los juntos de você.

– Depois... de tudo que passamos... sabe como sou sumamente ciumenta... - suas lágrimas tem gosto de súplica e perdão; a arma de uma mulher, artifício tão ardil. Mas o sabor do aço é o único que possuo interesse. Seu caso perdido me farta.

Meu limite ruge na língua de lobos e dragões, e meus olhos rubis de demônio despertam.

– Não gostará de sentir na pele a vingança que lhe reservarei caso me prive de exato um século, marque bem. Posso ter faltado para com suas promessas imaginárias, mas essa, passarinho sonhador, é uma que não deixarei cair em esquecimento – grito, orquestrando ameaças. Mas algo ingrato em mim me diz que pareço com um pai bronqueando sua filha travessa.

Raios e trovões acompanham a birra letal da pequena, e o quarto se ilumina com sombras distorcidas em relevo. Não compreendo o que diz no limiar da tragédia, mas me conforta pensar que talvez seja melhor assim. Qualquer conforto é válido quando o que há é sofrimento e nada mais.

Quando Nana levanta a lâmina para o golpe definitivo, meu movimento engole o seu numa diferença desleal. Minhas garras perfuram seu coração, e o sangue brota como uma flor de vinho em seu peito, predominando contra o rosa-ameixa do vestido de boneca. A foice se estatela no chão, tilintando como um sino, tão indigno para uma arma assassina. Seus grandes olhos de verão me tormentam com um maldito “por que” desfalecido e, enojado pelo meu ato, sou forçado a torcer seu pescoço ao contrário, afastando aquela expressão vazia para longe de mim.

Desabo nos lençóis, eles que são só sangue junto comigo, o horror. Penso chorar, mas estou rindo.

– Esplêndido, meu amigo. Quem diria fazer-se necessário avisar à lebre de que o coiote come carne? A natureza e as suas peças.

Vinda de cima, a voz conhecida rouba minha atenção. De fato, parece-me ser a única voz que conheço. De cócoras sob o teto, Thorn, meu companheiro de séculos, cumprimenta-me com uma cortês reverência enquanto zomba da gravidade de Eisntein.

– Esteve aí durante todo o tempo? - pergunto entre dentes intricados, com a descrença característica que parece acompanhar as surpresas surdinas de Thorn.

– Sim. E devo dizer que os gemidos de prazer e luxúria de um amigo querido como o senhor me propiciam sonos crepusculares deleitantes como o ventre de uma mãe. Deveria experimentar, caro amigo.

– Esteve aí durante todo o tempo – repito, não poupando ênfase - e apenas assistiu, sem nada fazer? Que os caçadores saqueiem sua tumba, amado espinho, que te empalem e decapitem na frente de suas crianças! - é um desejo de coração, mas muito mais afetuoso do que parece.

Thorn ri, uma risada pervertida, como um bobo que encontra gozo na desgraça. Suas sombras? Elas aplaudem.

– Mas que foi divertido, foi, não me negue isso – ele salta do teto, pousando com a graça de um felino. Sem nada dizer, carrega os corpos sem cabeças das noivas rubras, uma em cada ombro.

– Pobre Luiz... não acredito no azar que possui – lamento, e me ocorre que as cabeças não estão em parte alguma.

– Acredite em si mesmo, meu amigo. O azar de Luiz tem nome e um gosto muito respeitável por raparigas e varões; chama-se Delita, vulgo Deli.

A adrenalina recém digerida me castiga por dentro como uma onda inflamada de aranhas e teias, e a sede mórbida me faz sentir o peso de cada inverno e verão. Como um ancião na abstinência de seu vinho alquimístico matutino, estou mortalmente fatigado.

– Preciso de sangue. O bastante para poder morrer uma morte para cada dia e noite desse século.

– Ora, acompanha-me. Não à toa sou seu eterno anfitrião da noite – ele flutua num gracejo de presas e laços até as janelas, abertas para a sacada e agouros noturnos.

– Creio ter alimentado um novo pesadelo hoje... O que me diz quanto a essas lolitas? - assisto-o do leito macabro, ainda anestesiado pelo drama. Passeio uma mão sangrenta pelo pescoço, onde o esboço de uma linha de corte lateja.

Thorn enche o peito com o ar da noite, buscando inspiração na luz do luar. Associo seu semblante às esculturas angélicas de Michelangelo, mas os cadáveres decapitados que o acercam me remetem a algum verso infernal da Divina Comédia. Ignoro a elegância do conjunto azul-marinho de nobre corsário, temendo o que a combinação de mil léguas submarinas e lolitas possa gerar em meu subconsciente. Já devo muitos favores de sonhos mal resolvidos a Freud.

– Partilhamos da mesma paixão tolamente condenável de gênios da poesia como Carroll e Chaplin. O homem é fruto de seu tempo, mas, no calendário draculino, os séculos são feitos pelo vampiro. O que podemos fazer se por trás do sorriso branco de pureza os anjos escondem a perdição do fruto proibido? Arrancamos um belo pedaço, portanto.

– Não poderia estar mais certo, meu amigo - a não ser que crucificasse meu corpo enfraquecido próximo do pôr-do-sol e me obrigasse a acreditar na profunda verdade do que diz.

Antes de seguir meu anfitrião para a infância noturna, aninho o corpo de Nana paternalmente. Quando sou obrigado a deitá-la de bruços para apreciar a brancura porcelânica de seu rosto uma última vez, a melancolia me vem na forma de seu nome, sussurrado como um pedido de desculpas tardio. Quando o faço, o céu azul de seus olhos se fecha magicamente. Um medo desconhecido me consome. Constrangedor.

Fico ali, estudando o medo mentalmente. Não sei quanto tempo se passa, mas Thorn me aguarda – como sei que me aguardaria mesmo que toda a ampulheta do tempo esbanjasse sua areia.

– Mas será que, em alguma remota vez, isso chegou perto de matar Lewis e Charlie? - reflito, e o temor da resposta me acompanha, como a marca do vampiro que não cicatriza.


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