Uma Música De Treva E Sangue escrita por Rivotril


Capítulo 6
Entre masmorras e adegas


Notas iniciais do capítulo

- Conclusão dos eventos iniciados no capítulo 5 (Deadly Double)
— Nas notas finais estarão listados os termos mais rebuscados, entre termos característicos do Holocausto e outras coisitas (colchetearei-os em números em negrito ao longo do texto). Abrir uma outra aba para consultá-los pode ser um bom atalho, dik rç
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– Herr Kommandant. Que satisfação recebê-lo em nossos aposentos improvisados.

A voz desconhecida trouxe-o de volta para uma escuridão crua e inóspita, vencendo a hibernação fetal a que se entregara. Serena e complacente, detinha um sotaque que não conseguiu identificar muito bem – mas pode sentir camadas sutis de Leste Europeu. Pelo frio metálico que percorreu-o da nuca ralhada à dor das nádegas, deu-se conta de sua nudez - e completa vulnerabilidade. Os olhos, reduzidos a um azul-vidro fraco e pálido, quase cinza, perscrutaram o ambiente nervosamente, forçando-se em vão. Ao tentar se mover, tampouco foi capaz e, quando o tecido das costas se rompeu junto de um palavrão aflito, foi obrigado a desistir. Correntes de ferro o prendiam, algumas cozidas à carne, serpeadas à uma haste que se erguia de seu trono depressivo até o teto. O olfato, pelo aroma acentuado de uva e licor, denunciou-lhe a natureza de seu cativeiro: uma adega.

Quando a visão cansada e ferida acabou por se acostumar ao ambiente, chamas sambaram magicamente de tochas e lamparinas, alaranjando tudo excessivamente - mas não sabia como reagir a isso. As lembranças que tinha das últimas coisas vistas tentava-o a reduzir seus glóbulos a gemas moles e estouradas.

Adiante, distinguiu uma verdadeira távola redonda de carvalho negro, que estendia-se de ponta-a-ponta pelas paredes subterrâneas de barris. Mas não eram os cavaleiros de Artur que nela ceiavam. Dispostos em tronos de ossos e ouro branco, quatro figuras fantasmagóricas requintavam-se em vinhos e especiarias.

“Não foi um sonho dos infernos, afinal?”. Refletiu numa amargura nauseante, e sentiu, para sua vergonha ariana, as lágrimas brotarem novamente.

O Comandante reconheceu os ruivos de outrora, aqueles exímios atores. Uma onda de vômito surgiu quando as memórias atrozes dos campos de centeio fustigaram-lhe as têmporas, martelando-as com um perturbador latim invertido. Mas logo morreu dentro de si, como se segurada por uma mão invisível. Ainda trajavam o uniforme negro da SS, debochando de sua autoridade nazista – que, ali, nada era além de uma moeda sem valor. Roupava-lhes adequadamente bem em seus corpos pequenos e infantis, e indagaria-se sobre onde os conseguiram, já que suas medidas diferenciavam em demasia de seus soldados assassinados, mas, no momento, realmente não faria diferença alguma sabê-lo. Poucas coisas fariam, deu-se conta, e gemeu inconsolado diante de sua imutável condenação. Sob um trono de espinhos e rosas rubros, jazia o anfitrião misterioso: um conjunto militar de Obersturmführer [18] verde-oliva escurecido severizava seu porte vampiresco com alinho e rigor, e a sombra do quepe destacava o escarlate dos olhos, alimentado sob a lambada de fogo dos castiçais. Um par de braços com mangas bufantes fechava-se em volta de seu colarinho fardado num abraço romântico, e as ondas do lenço de gola que cobriam a fileira de medalhas coloridas terminava no rosto empoado e perverso de seu dono, encimado por uma peruca branca com cachos. Reconheceu-o como pianista, o vampiro adorador de Mozart. O bruxo de Amadeus. Uma súbita ardência subiu-lhe pelo pescoço, acordando sua marca.

– Por que não se junta à refeição? Seu companheiro de partido tem um sabor delicioso, isso posso lhe garantir – convidou-o com hospitalidade caricata, tomando as mãos de ambos os gêmeos. Vez ou outra chamava-os de “anjos do outono", ou “essas belezinhas russas”.

O indicador enluvado do pianista apontava para o lado do Comandante, com uma ponta de diversão nos lábios maquiados. Esse olhou para a direção segredada, hesitante. O assombro que o atingiu com o que viu fê-lo balançar num pulo doloroso em sua casaca de correntes: sobre uma cadeira-de-rodas rústica e enferrujada a sua direita, desnudo e arruinado, encontrava-se Obersturmführer Hans Waltz – ou o que sobrara dele. Dado como desaparecido durante a investigação dos frequentes e estranhos acidentes na construção do Aeródromo de Boreham [19], acreditava-se que, por baixo dos panos, envolvera-se numa mancomunação conspiratória com os Aliados. [20] Era uma verdade que agradava mais a Herr Kommandant. Grotescamente mutilado, dos membros restava-lhe apenas o braço esquerdo, e, em diversas partes, o corpo cobria-se por faixas ou remendos costurados. Não gostava de imaginar o que haveria por trás da metade de seu rosto enfaixado. A pele desbotava-se num aspecto acinzentado e inumano, e a respiração irregular falhava constantemente num ronco áspero e desagradável. Não fosse pela tatuagem de âncora em seu pescoço esfolado, reconhecê-lo seria improvável. O seco que engoliu assemelhava-se a vidro moído. Temeu estar diante de seu futuro.

– Escutem... escutem, por favor. Eu sou... - começou, desesperançoso.

– Não gaste saliva, Comandante. Não queremos saber quem é. Não nos importamos com isso – o pianista interrompeu-o rispidamente, percorrendo a adega com um punhal da Waffen SS manejado pelas luvas. Examinava os signos rúnicos contra uma lamparina e, dado por satisfeito, simulou golpes de esgrima, cortando o ar, traçando passos.

– O que... pretendem... comigo...

– Nós comemos nazistas, tal como humanos comem carne bovina e frango. Não é óbvio? – esclareceu a ruiva com um risinho maroto, lambendo o gume afiado de uma espada do tamanho de seu tronco. A linha do corte dividiu sua língua em duas, com as quais lambeu a nascente de sangue com um desejo bíblico. - O uniforme serviu bem a Thorn, não?

– Bondade sua, meu morango. Ela não é sodomizável? - o vampiro à rigor militar apertou calorosamente as sardas dos gêmeos entre os dedos, mimando-os como um pai faz para com suas crianças fofas. - Esse dois flocos de fogo, ambos são. Obrigado, Mãe-Rússia. Mas é como disse, sim.

À sombra das colunas e nereidas de mármore, a prata do vampiro Thorn cortou, regida pela etiqueta, um generoso pedaço de carne caramelada sob porcelana branca. Mastigou a porção demoradamente, num ritual de 33 mordidas – a idade de Cristo. Seus lábios sem cor coraram. – A adrenalina deixa a carne com um sabor exótico, sabia? Por isso ainda te mantemos vivo. Não é crueldade, é uma questão de carinho para com uma receita familiar e secular. Claro, se fosse eu no seu lugar, certamente pensaria diferente. - pensou alto a última parte, somente entre vampiros. - Certo, Deli?

– Certo, certo – contornou o encosto de pregos e correntes que aprisionavam o Comandante, rodeando-o como um predador calculista. Passeava a lâmina gelada por suas pálpebras nervosas, descendo ameaçadoramente pelo pomo-de-adão, riscando as omoplatas. Ao alcançar a pélvis, conseguiu fazê-lo agitar-se sob o assento, alarmado. Suava frio como um tuberculoso. - Vocês, nazistas, são divertidos. São diferentes, como fazem questão de frisar. Mas não como pensam, afinal.

– Seria piegas – continuou por Deli, esse distraído em mergulhar o hóspede de sangue no caos de sua psicose -, quero que me entenda, se tratássemos vocês, nazis, como os demais. Equilibramos um pouco a balança. À sua maneira, os nazistas tratam seus semelhantes como animais ao abate, e nós, inimigos declarados que somos do ócio eterno, damos o troco devido a vocês, escrotinhos de uma geração devassa: assamos e preparamos sua carne loura com um bom tempero, como leitões gordos e rosados – ele sorriu maldosamente, e as luzes da adega subterrânea vacilaram.

“Atuamos como um carma, pagando-lhes na mesma prata ariana coroada pela suástica bastarda, cujo valor é regido por nossos mestres da moeda, ou canibais odiosos, como preferir. Tiramos vidas, sim, mas há uma poesia assassina por trás do palco quando as cortinas se fecham, uma beleza milenar de amor e ódio marejando águas imortais num cálice de poder. E o que é a vida senão um jogo de gato e rato sob um tabuleiro com casas de treva e sangue? Vocês, crianças, não passam de psicopatas gratuitos - apesar da boa remuneração do partido. E gostamos dos nossos flambados e acompanhados de um bom vinho francês.”

– Em nossa fábula, Comandante, os nazistas possuem outro papel – o pianista concluiu com um sussurro sombrio de capa. Cantarolava uma música tântrica e diabólica entre os lábios brancos, ostentando-a durante sua marcha de calças justas até o fundo da adega. Por trás de um barril couraçado, ele sumiu - mas os assovios de nervos distorcidos [21] permaneceram. Exclamou um sonoro “voilá!”, e, na volta, um som metálico e pesoso acompanhou-no pelo cascalho.

O banquete dos vampiros se seguia; prata e sangue, fatiando a carne, mastigando e engolindo, bebendo de porções do primeiro-tenente Hans Waltz.

– Como a chapeuzinho-vermelho – aludiu o gêmeo com sua graça traiçoeira de presas e sardas, uma dança de fogo e gelo que se confundia. O negrume do uniforme avivava o cobre das madeixas, acendendo-o. Por debaixo da mesa, a bota da irmã aventurava-se entre suas pernas, encabulando-o com o enrijecer de uma ereção incestuosa. - Thorn e Deli conhecem a dama que inspirou a lenda. O Sir, na verdade. Mas não é sábio referir-se a ela como macho na sua frente, a não ser que queira se deitar com a morte. É uma lady de temperamento ardente como sua capa de sangue de matilha.

– Milady Farneze. Uma relação complicada de metralhadoras e explosivos. Ainda bem que não somos lobos – o anfitrião concordou num meneio de recordações, tamborilando o carvalho com uma garra em relevo ameaçador.

– Ou homens em peles de lobos – completou Deli, anunciando sua volta com assovios sociopatas em dó maior. - Me preocuparia mais com sua magia negra. Aquela vadia albina ainda tem muitos de meus enchiridions. [22]

Quando a lâmina corpulenta estendeu seus dentes serrilhados de ferrugem e vermelho seco sob a ponta da orelha que sobrava a Herr Kommandant, ele desabou: uma motosserra acimava-o. O pianista puxou a corrente com uma veemente arrancada, fazendo o motor gritar – mas o prisioneiro gritou mais alto.

– N-nein! Deus, bom Deus! Suplico, me libertem! Não me matem, NÃO ME MATEM!

– Eu disse que seria melhor amordaçá-lo – muxoxou a pequena com sua dupla de línguas, inflando as bochechas num bico.

– Faz parte, pintarroxo. De nada vale derramar o sangue de mil bastardos se não pudermos desfrutar de sua unânime sinfonia de dor e desespero – Thorn argumentou com sua filosofia milenar.

– Hm, acho que fiquei molhada... tem toda razão, Sir... - ela pressionou a bota contra o sexo do irmão com mais anseio, fazendo-o contrair-se em seu lugar.

O motor roncava e explodia, falhando logo em seguida. O vampiro repetia e tornava a repetir o processo, mas o resultado era sempre o mesmo. Os berros do Comandante podiam ser ouvidos da superfície, afastando os corvos para longe de seu banquete mortiço. A expectativa mortal agoniava-o, brincava com os fragmentos de sua mente perdida. Por onde olhava, em busca de um apelo desapercebido, suásticas rodopiavam e se expandiam como o nascimento violeta de uma supernova.

– Nazistas! Seus... seus problemas são com nazistas, claro! Eu posso.. desafiliar-me ao partido... eu juro... nunca mais me veriam com uma insígnia nazista... até beijaria judeus! - ele tentou uma brincadeira desiludida para com os imortais, e sua risada tropeçou tão falha e inverossímil que, na cega tentativa de conquistá-los, soou como um gemido doente.

O anfitrião encarou-o com seriedade por um longo minuto, e então desprezou sua cacofonia patética com o ranger de prata sob osso e porcelana.

– Não diga bobagens, Hugo Boss [23] é um dos melhores frutos dessa juventude hitleriana. Não o fosse, não estaríamos confeccionados à moda nazi – esclareceu com displicência, anelando uma taça com vinho. - Elegância no horror, como não nos vestir feito luvas?

– Pode continuar com suas insígnias, Comandante. E imagino que beijar judias não deva ser um problema quando fornicar com elas é um passatempo recorrente – a ruiva lembrou-lhe da ode ao estupro nos campos de centelho, e suas línguas serpentearam.

– Não nos envolvemos em sua guerra mundana, homem. Ganhamos mais ao deixar que se matem, facilita nossa camuflagem. Thorn e eu nos excitamos nos campos de batalha como beberrões em tavernas-bordéis. Os tempos de violência que a guerra traz rejuvenesce nossa natureza assassina como o elixir prometido pelos alquimistas – confidenciou Deli, com seus rubis malignos brevemente perdidos na fantasia de explosões de corpos e granadas.

– Há aqueles que simpatizam com uma causa ou outra, mas são maçãs negras isoladas. A sobrevivência do Führer a dezenas de atentados internos não é um presente dos céus, como sentenciam os misticistas entusiastas, esses leigos que não sabem de nada. Um dos nossos faz parte da guarda-pessoal de Hitler, o senhor de Castelo Invernal. Um braço-direito muito importante quando a queda brusca de temperatura pode invalidar bombas vira-casacas tanto quanto um peso de papel. Meu palpite é que bigodes escovinhas são um amuleto de boa ventura. A sorte de amantes lolitas de Chaplin não me deixa faltar com a verdade – o senhor dos espinhos complementou. Percorria os dedos pelos braços pontiagudos de seu trono numa cadência íntima para com cada espeto.

– Thorn e Deli adoram contratos. O que tinha dito sobre se encontrar com uma bela senhorita no Pube Cafe, Herr Kommandant? - o pequeno gêmeo instigou, e seus olhos felinos trovaram um verso maléfico. A bota da irmã invadia suas calças. Ele arfou, degustando a ousadia.

“Não”.

O nazi descorou de pálido para fosco, aproximando-se do cadavérico Obersturmführer, cuja respiração pesada arrastava-se como um quadro negro castigado, lembrando-o de que ainda vivia. Não lhe ocorrera que rumariam a tortura psicológica para esse caminho, tal como não lhe ocorria muitas coisas desde que tudo apagara no casebre com as notas Mozart engolindo-o. Eram tempos obscuros de guerra, e amar alguém seria inconsequente. Mas nunca dissera as palavras para Elisabeth, em nenhuma das muitas vezes em que partilharam da mesma cama. Amava-a para si só.

– Um sacrifício? Que interessante. Adoro trocas equivalentes – Thorn juntou os dedos animosamente, recostando o queixo sobre o fecho. Era um vampiro sempre disposto a colecionar assinaturas e contratos, como o próprio Satã.

– Nein... nein... Elisabeth não, deixem-na... ela não...

– Oh my, desenterramos sua empatia? Espero estarmos perto do petróleo - Deli desdenhou, recostando a serra sobre o colo mutilado de Hans. O único segundo em que o motor bombeou foi suficiente para o sangue esguichar e açoitar o Comandante, refrescando os horrores vindouros que o aguardavam.

O banhou cruel bastou para convencer o tenente do Reich. Somou Elisabeth a seu luto interrompido, precipitando a cabeça da moça à equação obscura dos vampiros.

– Oh Deus! Elisabeth Novak se apresentará por toda a noite de hoje no Club Cafe! Acharão as entradas VIPs com acesso a seu camarote nos bolsos de meu casaco! Beleza, dinheiro, influência! É neta de um poderoso Sturmbannführer [24] e uma das amantes do próprio Führer, uma prisioneira muito mais valiosa! Cativem-na em meu lugar, mas poupem-me a vida, por favor!

– Sabemos disso tudo, Herr Kommandant. – confessou um dos ruivos, num gracejo de deleite. - E um pouquinho mais, mesmo que não muito. Mas foi uma bela defesa.

– S-abem? - estava confuso. E exausto.

– É sempre divertido ouvi-los sentenciar-se pela própria boca – murmurou o pianista num breve sopro de gelo, tão logo que cravou as presas mortais contra o pescoço do hóspede, encaixando-se nas fendas. Ouviu-se os trovões violentos dos dentes da motosserra em algum canto da adega, mas agora era somente um fantasma carente. Sugava o orgulho do sangue ariano, e a pulsação pulou, gritou, descompassou gota por gota, como uma garoa melancólica de verão, até atingir o estado de semi-vida.

– Eu aceito sua oferta, Comandante. Pouparei sua vida desgraçada, sim, por que não? Mas, em troca... será... como vocês vulgares dizem? Oh, sim. Em troca, será a minha putinha particular – Thorn riu-se, furando o próprio pulso enquanto assistia-o ser esvaziado. Selou os lábios na gota que brotou. - Sua Elisabeth pode ser uma das meretrizes num cassino muito promissor que administramos em Chicago. Conhecemos os portes das moça. Um cão de caça do Reich não poderia exigir menos do que uma celebridade em seus lençóis, suponho.

O anfitrião tomou o cetro de ébano e prata, e, inspirando soberba imortal, valsou seu voo sobrenatural e absoluto até o Comandante caído. As sombras envolveram o beijo do vampiro com seu manto, e o pianista atravessou-as através de uma porta oculta. Farto com a porção generosa de vida que rugia sedas dentro do cálice vampírico que era, deixou o ponto final para Thorn.

– Herr Kommandant... tão pouco justo para um servo de sangue... - refletiu soturnamente.

Deli deitava-se à távola, só galhofas, livre do fardo da tortura, delirando nas nuvens multicoloridas do nirvana. Suas maçãs coravam-se com o néctar perverso recém bebido, carregando a maquiagem de nobre colonial como sangue na neve. Um a um, os ruivos montaram sobre si, entregando-o ao gozo. O menino sentou-se ao colo, e a menina aconchegou-se reversalmente em seu corpo relaxado, abraçando o rosto embriagado do vampiro com o ventre. Rompiam bordados e fios de ouro com unhas afiadas, em busca do líquido precioso que descia morno de seu sorriso tingido até onde as roupas o escondiam.

Thorn desceu as garras pelo peito nu do Comandante, descrevendo linhas naquele campo suado e coalhado. Deixou escapar uma exclamação afetada entre os lábios escarlates ao absorver o choro do coração no limiar de vida e morte, como o silvo de uma serpente excitada. A caveira de prata percorreu das marcas inchadas do beijo vampiresco até a virilha do nazista, repousando-se ali por um tempo. Seus contornos faciais eram tão brandos e neutros que, em alguns momentos, o tenente pensou que se apiedaria. Quase nutriu um sentimento positivo pelo vampiro naquele segundo de perdição, uma ilusão estocolmica no precipício do fim. Lendo aquela película frágil e inocente de pensamento, o senhor dos espinhos sorriu, e sua máscara caiu num breve lampejo de treva, revelando a faceta negra e horrorosa de chifres e rugas de um demônio antigo por trás da androgenia de anjo. Ergueu o bastão acima do quepe, como a própria espada de Lustitia [25] em seus julgamentos olimpianos, e desceu-o com uma trovoada contra as coxas nuas do homem, fraturando ambos os fêmures expostamente. O cetro partiu-se com a fúria do golpe, e a explosão de lascas cegou-lhe um dos olhos de azul fraco, apagando-o de vez. O Comandante tentou gritar, mas suas cordas vocais falharam em doloroso rompante, sufocando-o no acesso de uma asma que desconhecia. Com a metade da caveira nazista, o imortal abriu caminhou entre as pernas inválidas.

– Sabe o que vem agora, não? Partilho de um sádico prazer com um Conde que governou a Valáquia do século XV. Só sentirá uma dor agonizante no início... meio... e fim...

Ao ouvir aquele prólogo maldito, a expressão de Herr Kommandant anulou-se. Não havia dor, pânico, raiva, tristeza. Talvez o torpor da bruxaria ajudasse. As veias perfuradas pelo pianista ardiam, alucinando-o, e, não raro, sentia-se distante da realidade. Ouviu o chamado, e seu olho ileso percorreu por uma amurada escura e pesteada por ratos. Ali concentrou-se. Sobre correntes e estacas, havia uma travessa de barro com as sobras do banquete presente – e outros anteriores. Atrelado à Estrela-de-Davi [26] e marcado a fogo, nela lia-se: “Herr Kommandant”. Compreendeu. Eles reduziriam-no ao mais baixo dos vermes.

(...)

– Estou entediada.

– Eu confundo fome com tédio.

As línguas gêmeas percorreram pelas linhas de sangue até a intimidade masculina, e o mastro pulsante de veias e prazer foi penetrado por caninos vampirescos. Uma ejaculação vermelha veio.

O nosferatu limitou-se a gemer, enfeitando o orgasmo com as imagens dos amantes beijados pelas chamas de Apólo. [27] Com os dedos enterrados nos fios ruivos, consumando a luxúria proibida, remetia-se a tempos de masmorras e dragões.

– E aias virgens, como fazem falta, meninos. Deveriam ver.

O bruxo de Amadeus justificava o visual rebuscado de uma moda esquecida pela nostalgia dos velhos e novos tempos, acumulada como o pó de sua biblioteca na cidade perdida.

– Ah, Glen e Glenda [28] – um amor especial entre irmãos. Muito especial. E todo nosso, meu amigo.

A voz grave do senhor dos espinhos abocanhou a penumbra, e as luzes da adega se apagaram. O cheiro de sangue predominou sobre o vinho.

(...)

Na Toca do Lobo [29], a cadela de Hitler uivava. Dedos glaciais sufocavam a província.




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Notas finais do capítulo

18 - Obersturmführer: patente paramilitar da SS criada pela Alemanha Nazista, equivalente a Oberleutnant na Wehrmacht alemã (o conjunto das forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich entre 1935 e 1945) e, por sua vez, primeiro-tenente nas outras organizações militares.

19 - Aeródromo de Boreham: lenda urbana sombria e recorrente da Segunda Guerra Mundial. Conta a história que no local onde foi construído esse aeródromo, em tempos passados uma bruxa havia sido enterrada embaixo de uma pedra que se localizava o bosque de Dukes, sendo que a mesma tinha que ser removida para a construção da pista. Os engenheiros da operação, ignorando os alertas dos moradores locais sobre a maldição, foram atormentados tanto por perseguições sobrenaturais quanto acidentes, onde eram sempre eles as vítimas. O grupo acabou por enlouquecer. Seriam vampiros com doces e travessuras macabras?

20 - Aliados: os Aliados da Segunda Guerra Mundial foram os países que se opuseram às Potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) na Segunda Guerra Mundial. A União Soviética, os Estados Unidos e o Império Britânico eram as principais forças.

21 - "Assovios de nervos distorcidos": Mas como?! Não rebusquei essa descrição à toa haha youtu.be/c1NN9rnNpEQ (sim, a música foi composta em 1969, mas o que a impede de ter sido sussurrada por um imortal de beleza e horror para Bernard Herrmann em um momento de epifania psicótica?)

22 - Enchiridion: almanaque em latim antigo (termo conhecido entre os fãs de Adventure Time hue)

23- Hugo Boss: o alfaiate do nazismo. Tornou-se fornecedor exclusivo dos uniformes negros das SS (Schutzstaffel), da Juventude Hitleriana e de outras organizações criminosas (sempre muito preocupadas com o porte e o corte). Naturalmente ganhou muitos milhões de marcos entre 1934 e 1945, e para dar conta das encomendas, a solução foi recorrer a mão-de-obra – baratíssima – dos prisioneiros de guerra.

24 - Sturmbannführer: patente paramilitar da SS criada pela Alemanha Nazista, equivalente a major nas outras organizações militares. O posto originou-se a partir das unidades de tropas de choque alemães da Primeira Guerra Mundial, onde o título de Sturmbannführer (líder da unidade de assalto/tempestade) ocasionalmente passou a se referir ao comandante do batalhão.

25 - Lustitia: (Justiça ou Justitia) era a deusa romana que personificava a justiça. Correspondia, na Grécia, à deusa Dice. Difere dela por aparecer de olhos vendados (simbolizando a imparcialidade da justiça e a igualdade dos direitos).

26 - Estrela-de-Davi: durante a 2ª Guerra Mundial, os judeus eram identificados pela Estrela de Davi costuradas à camisa, como um símbolo de ódio e escárnio.

27 - Apolo: foi uma das divindades principais e mais ecléticas da mitologia greco-romana, um dos deuses olímpicos. Na mitologia grega é considerado o deus da juventude e da luz, identificado primordialmente como uma divindade solar.

28 - Glen e Glenda: Glen or Glenda é um filme americano de 1953 do gênero exploitation em tom de documentário, escrito e dirigido por Ed Wood, com participação do famoso ator Bela Lugosi (o primeiro Conde Drácula do cinema) em fim de carreira. "Recentemente" foi homenageado pelo filme Seed of Chucky (2004), onde o filho dos bonecos assassinos tem um vergonhoso transtorno de identidade sexual ("vergonhoso" é uma palavra que cabe bem ao filme lol). Ed Wood é reputado como o pior diretor do cinema e Glen or Glenda é sempre citado como um dos piores filmes da História, embora com o tempo ganhasse a fama de cult.

29 - Toca do Lobo: Wolfsschanze em alemão, foi o nome em código de um dos maiores quartéis-generais (Q.G.) de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial.



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