The Surviver escrita por NDeggau


Capítulo 9
Capítulo 8 — Falando




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Falando

 DEPOIS DE LAVAR MINHAS ROUPAS E MEU CORPO, vesti uma calça jeans e uma regata preta que encontrei amassada dentro da minha mochila. Enxuguei meu cabelo e penteei-o com os dedos. Procurei um pente de madeira na mochila. Descobri que havia confiscado minha comida. Meus dedos tatearam uma serra gasta. Era a faca de cozinha que eu escondi dentro da mochila. Engoli em seco e afastei meus dedos antes que um pensamento ruim surgisse. Bruma se sentiu orgulhosa. Cocei minha cicatriz na nuca por puro habito. Balancei meu cabelo para enxotar gotículas de água e guardei tudo que me pertencia dentro da mochila, exceto minha roupa limpa e molhada, que secava sobre uma pedra no fundo da caverna. Sacudi com força meu moletom, espantando uma nuvem de poeira. Um odor leve de perfume atingiu meu nariz. Amarrei meu moletom cheiroso na cintura. Peguei o sabão grande e azul e coloquei-o sobre uma espécie de “estante” de madeira. Ali tinham outros sabões. Pensei nos sabõezinhos na minha mochila e despejei todos ali.

Boa garota, elogiou Bruma.

Fique quieta antes que eu me arrependa.

Você está toda orgulhosa de si mesma, eu sinto. Não tente me enganar, Ash.

 Franzi o cenho. Acabei deixando as escovas de dente ali também, exceto a minha.

 Joguei a mochila sobre o ombro e saí da caverna. Fui recebida por olhos que fizeram Bruma arquejar com tanta força que o ar me faltou por um segundo.

 —O que você está fazendo aqui, O’Shea?

 Ele deu um sorriso, ignorando minha grosseria, e começou a andar com meu lado, sem dizer nada.

Peça desculpas por tê-lo machucado.

Não.

Achei que você se arrependeu de ter estragado tudo logo no inicio.

Ah, eu me arrependi de muita coisa. Mas não disso.

Ashley, Ashley...

 —Está com fome?

 —Não. —respondi.

 —Está cansada?

 —Não.

 —Então de onde vem o mau-humor?

 Respirei uma vez antes de responder.

 —De anos de convivência com doçura e bondade.

 Ian riu. Sua risada ecoou pelos meus ouvidos e atingiu Bruma. Ela sorriu debilmente na minha cabeça, suspirando. Meu rosto se contraiu, ajeitando os músculos para sorrir, mas fechei a cara antes que isso acontecesse.

Há quanto tempo você não sorri de verdade?

Bastante tempo.

Isso é ruim, disse Bruma.

Não importa, retruquei. Ela ficou quieta.

 —Estamos construindo novos quartos. —disse Ian. —Abrindo um túnel novo. Os números de humanos estão aumentando, e não podemos acomoda-los bem. E ainda não é seguro o suficiente para voltarmos para as cidades ou providenciar refúgio seguro o suficiente para todos. Temos avançado bastante com a povoação correta do planeta, mas os Buscadores também melhoraram seus métodos.

 —O que fazem? —perguntei.

 —Eles não capturam mais os corpos. Eles nos matam assim que possível. Armas potentes, com miras certeiras. Buscadores mais bem treinados. Peg está desacreditada com tanta violência das Almas.

 Bufei ao ouvir o nome da parasita e Bruma não deu o trabalho de me reprender. Estava franzido as minhas sobrancelhas junto comigo.

 —Você deveria conversar com Peg. —continuou Ian, sem se importar comigo.

—Ela quer saber a história da sua Alma. Bem, Jared nos contou isso. Desculpe, não sabíamos se era segredo.

 Neguei com a cabeça.

 —Não, não era.

 —Certo. Então, sua Alma ainda está aí, certo? —Ele apontou para minha cabeça.

 —Está. E está dizendo “oi”.

Estou? Bruma enrubesceu.

 —Como ela se chama?

 —Bruma. —respondi. —E disse que tem medo de você.

Ashley! Sua mentirosa.

 —Olá Bruma. —disse Ian.

 Bruma se assustou ao ouvir seu nome pronunciado pela boca daquele humano.

Pelos seus lábios pálidos e sorridentes.

 Levantei meus olhos para encarar os dele – azuis como céu de verão.­

Tão cálidos e ao mesmo tempo da cor do gelo. Como uma chama azul. Penetrantes e profundos ao mesmo tempo. A neve e a noite. O fogo e o frio. Olhos que contrariam. Intrigam, a corrigi. Ele me intriga profundamente.

Diga para ele que é um prazer conhece-lo.

 —Bruma disse que não tem medo de você. —disse. Bruma não me enganava tão facilmente. Falei tudo que ela pensava no momento. —Ela confia em você. Só em você, de todos aqui presente. E em Jamie também, porque ela diz que ele é meigo demais para tentar me matar.

Ian deu um sorriso torto que fez Bruma acelerar meu coração. Os olhos azuis-cobaltos cintilaram.

—Mas não me olhe desse jeito. —continuei. —Eu não gosto de você.

—Não precisa ser um gênio para descobrir isso. —ele respondeu.

Bruma empurrou meus olhos para baixo e visualizei a canela exposta pela bermuda de Ian. Um belo hematoma arroxeado cobria a superfície clara da pele abaixo do joelho. Bruma de um gemido na minha cabeça. Ela odiava e desprezava qualquer tipo de violência. Pelos meus lábios, saiu uma palavra que não era minha.

 —Desculpe.

Bruma!

Eu precisava fazê-lo, Ash. Sinto muito.

 —Tudo bem. —disse Ian. —Pelo menos vimos que você é durona.

 Os túneis escuros nos levaram a cozinha. Os poucos que estavam lá se reuniam em uma mesa, conversando baixo. Vi Jeb de olhos jeans, a garota Melanie, Howe, a parasita, Jamie, Trudy, Doc e seu olhar bondoso, um homem de cabelos negros que se parecia com Ian. Ian segurou meu braço quando nos aproximamos. À medida que chegávamos mais perto, seu aperto aumentava.

Ele está com medo que machuque Peregrina.

Oh, que bonitinho, protegendo o bichinho de estimação com tanto afeto.

Ashley, se você...

Já sei, a interrompi. Não estrague tudo mais uma vez.

 Trudy se levantou quando me aproximei. Ela se colocou ao lado da parasita e não pude deixar de me sentir traída.

Minha própria espécie... Minha gente protegendo uma parasita de um igual.

 Howe também se levantou, seguido por Jamie, que sorriu para mim. Desviei os olhos e encarei a parasita loirinha. Ela me olhava com nervosismo. Ian indicou com o queixo para o banco do outro lado da mesa. Sentei-me ali, de frente para Peregrina. Ela esfregou a mão repetida vezes. Ian e o homem parecido com ele ficaram ao lado de Peregrina. Jamie sentou-se á minha esquerda. Á minha direita, Howe se acomodou e trouxe Melanie para perto dele.

 Cruzei os braços e levantei uma sobrancelha enquanto encarava Peregrina. Ela respirou fundo.

 —Olha, eu... Hã, nós... Precisamos conversar. Todos aqui. —Ela fez uma pausa para passar os olhos sobre todos os presentes, enfatizando suas palavras. —Queremos conhecer você melhor. Eu sei que você está assustada... —Ela avaliou minha expressão e hesitou. —Ou não. Mas está confusa. Deve ter vivido muito com aqueles de que não gostava.

 —Com parasitas como você? Sim, dois anos.

 Peregrina ignorou meu xingamento.

 —Por quê? —ela se inclinou quando perguntou.

 —Por que o quê? —me inclinei para trás.

 —Por que viveu entre eles? Porque não fugiu assim que teve chance?

Boa pergunta, disse Bruma. Por que, Ash?

 Hesitei.

 —Por que... Porque eu queria entende-los melhor antes de fugir. Procurar pontos fracos e tentar reorganizar as coisas.

 —Sozinha? —insistiu Peregrina.

 —Eu não podia perder as esperanças. —respondi. —Eu perdi muita coisa por causa desses parasitas, Peregrina. Perdi tudo que eu aprendi a amar. Uma garota fica traumatizada com algo assim. Ver os corpos de seus pais agindo como se eles ainda estivessem ali, me tratando como eles me tratavam. É como se... —Mordi o lábio com força, me impedindo de falar demais.

 —Como se...? —disse Jamie. Ele estava concentrado na minha história.

Meus olhos saltaram para ele.

 —Como um sonho ruim. —Falei. —Um sonho perfeito demais que é errado.

 As sobrancelhas de Jamie se juntaram, mas meu olhar voltou para a parasita.

 —Posso falar com Bruma? —perguntou Peregrina. Seus olhos prateados se estreitaram. —Por favor?

 —Diga. —falei. —Respondo o que ela responder.

Promete? Perguntou Bruma.

Prometo, respondi.

 —Certo... —disse Peregrina. —Bruma, esse é seu primeiro planeta?

 —Não. —respondi, já sabendo essa história. —É o segundo. Bruma nasceu e habitou o planeta dos Pássaros de Gelo. Viveu três vidas lá.

 —Você não habitou esse planeta, Peg... —disse Melanie.

 —Escolhi o planeta das Brumas. A viagem para o planeta dos Pássaros de Gelo era muito longa.

 —Meio milênio. —disse eu, depois que Bruma respondeu o mesmo na minha mente.

 —E como era lá? —perguntou a parasita.

 —Pequeno. —respondi. —O planeta era pequeno o suficiente para sobrevoa-lo em uma semana.

 —E os Pássaros? —Peregrina continuou seu interrogatório.

 —Do tamanho de um cavalo, com dois pares de asas e cinco braços, sendo um no centro do peito, que servia mais ou menos como uma tromba. —expliquei, repetindo exatamente o que Bruma dizia. —O corpo inteiro dos Pássaros era duro, gelado e transparente, como gelo, porém sua fonte vital era o calor da estrela mais próxima do planeta, Galitinus. Eles tinham duas características especiais que marcavam muito a espécie e lembram os humanos. Foi por causa dessas mesmas que Bruma escolheu a Terra.

 —Que características? —quis saber Ian.

 —A primeira é semelhante a sonhar. —respondi depois de respirar fundo e acalmar a uma quase taquicardia de Bruma. —Mas funciona mais como um aviso. Os Pássaros tinham inimigas, as Aves de Ferro, que tinham bicos e asas afiadas como navalhas. Essas visões ajudavam os Pássaros a se proteger e se prevenir dos ataques das Aves. Eles preveem trechos do futuro, ou de um provável futuro, e tomam as providências necessárias.

 —O que quer dizer com “provável futuro”? —perguntou Melanie, apoiando a cabeça na mão.

 —O futuro muda de acordo com as escolhas. —respondi. Bruma parou para pensar e logo recomeçou a falar. —Então o futuro nunca é certo.

 —E a segunda característica? —perguntou Jeb.

 Saltei de susto ao ouvi-lo, momentaneamente esquecido na cabeceira da mesa.

 —É algo semelhante ao sentimento de amor dos humanos. —respondi. —Mas, bem, não há muito como explicar, segundo Bruma, já como ela nunca experimentou o amor humano.

 —E como é o amor dos Pássaros? —perguntou Peregrina.

 —É mais certo. —disse eu. Bruma procurou palavras. —Não é tão cheio de reviravoltas quanto o amor humano parece ser. Bruma tinha um parceiro lá. —Bruma aquiesceu por um momento, meu coração começou a bater num ritmo lento por causa dela. —O nome dele exige muitas palavras, e significa algo como Chama.

 Bruma gostou do nome. Afinal, na nossa língua, o seu antigo parceiro se chamava Brilho Intenso Que Irradia Calor E Aquece Seu Coração.

Ficava mais bonito naquela língua. Disse Bruma. Parecia uma melodia. Mas “Chama” é um resumo perfeito para seu nome. Ele era como uma chama para mim.

 —Os Pássaros não precisavam de convivência ou qualquer outra coisa para se apaixonar, bastava olhar dentro de seus seis olhos. E, depois, não havia nada que o separasse. —expliquei.

 —E o que separou Bruma de Chama? —perguntou Ian.

 Encarei-o nos olhos e esperei pela resposta, mas ela não veio.

Bruma?

 Todos olharam para mim com expectativa.

Bruma? Qual é a resposta? O que te separou de Chama?

 Procurei por qualquer sentimento vindo dela, mas não encontrei nada além de um muro rodeando-a.

­Bruma? O que aconteceu? Fale comigo.

Vá embora. Ela gemeu. Sua voz estava frágil como bolha de sabão novamente. Por favor... Diga que não quero falar mais nada. E me deixe em paz, Ashley.

 —Garota?

 Levantei os olhos e encarei Ian. Respirei fundo e baixei muros mentais. Deixei os sentimentos de Bruma fluir sobre mim e entendi sua exclusão.

 —Preciso ir. —falei. —Bruma não está bem, nem eu.

 Ian me encarou por mais alguns segundos e os sentimentos de Bruma atravessaram meu corpo, e estremeci. Os olhos. Era isso. Os olhos. O mesmo tom de azul cobalto com pontos celeste. A harmonia perfeita entre neve e noite. Como eu não percebi antes? Os olhos eram iguais aos de Brilho Intenso Que Irradia Calor E Aquece Seu Coração. Por isso Bruma arquejava. Ela não estava caidinha por Ian. Ele era uma lembrança que doía nela, e começou a doer em mim por ter deixado seus sentimentos tomarem conta da minha mente.

Tudo bem agora, Bruma. Sussurrei. Estamos no mesmo barco agora.

Entende como dói? Ela gemeu.

Desculpe por ter te reprimido cada vez que sentia isso, disse eu.

Tudo bem, você não entendia.

Mas me desculpe mesmo assim.

Desculpo.

Você gosta de estar perto de Ian?

Parece que ajuda a acabar com o vazio.

A solidão, corrigi gentilmente. Eu sei como é. Não ter quem você quer. No meu caso, minha família.

No meu caso, meu amor inteiro.

 As lágrimas de Bruma se acumularam nos meus olhos e funguei para espanta-las.

 Antes que alguém pudesse dizer algo, levantei e comecei a correr pelo túnel sul, que levava para os campos de cenouras.

 Bem, era minha intenção, mas acabei entrando em outro campo, com espigas de trigo altas e pálidas plantadas em todas as direções, refletindo as luzes de outros espelhos. Corri até elas e engatinhei pelo meio da plantação até o centro e sentei, abraçando meus joelhos. Os soluços de Bruma escaparam pelos meus lábios e eu os deixei fluírem suavemente.


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