The Surviver escrita por NDeggau


Capítulo 24
Capítulo 23 — Salvando




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Salvando

 ALICE CONTINUAVA LINDA. Fora isso que eu pensara em todo o trajeto para casa, carregando-a em meu colo até os catres de Doc. Ajeitei-a com cuidado, de bruços, beijando seus cachos vermelhos rebeldes alguns segundos antes de me afastar de seu corpo adormecido. Percebi que Peg sorria abertamente ao meu lado, observando minha irmã. Doc também estava sorridente – ambos adoravam realizar o procedimento que faria agora. Primeiro, o Corta Dor, para garantir que minha pequena não sentiria nada, e que Chuvisco pudesse ir em paz. Bruma estava aquecendo minha mente com ternura, e esse era o sentimento que pairava no ambiente. Pura ternura. Mesmo depois de destruir seu planeta, exterminar sua espécie e caçá-los até a morte, os humanos tinham um respeito valioso com as Almas capturadas. Esse era o real significado da palavra humano, talvez. Com delicadeza, Peg retirou os cachos ruivos de Alice do pescoço, para que Doc pudesse abrir uma fenda precisa em seu pescoço, sobre a cicatriz. Melanie tomou o lugar de Peg ao proteger o pescoço dos cabelos, e Peg entrou em ação com suas minúsculas mãos, e em um minuto, um brilho prateado e delicado surgiu do corte, úmido de sangue, mas brilhante, um pedaço de oito centímetros de fita prateada, com centenas de antenas se agitando feito plumas. Há alguns meses, eu teria total repulsa desses seres. Mas agora não. Sentia um calor interno ao ver Chuvisco sendo tratada com tanto cuidado, sentia meus órgãos amolecendo. A mesmo sensação de olhar um filhote recém-nascido. Caminhei com cuidado para perto de Peg.

 —Posso segurá-la? —Sussurrei, mesmo que minha voz não fosse ouvida pela pequena Alma.

 —Seja rápida. —Respondeu Peg. —Ela não sobrevive muito tempo sem um hospedeiro.

 Estendi minhas mãos em concha, e senti as finas antenas de Chuvisco tatearam meus dedos e se deslocar delicadamente até o centro da minha palma, ondulando. Ela se agitava delicadamente, suas antenas esbarravam contra a proteção da minha palma, e era levíssima e extremamente delicada. Bruma estava tão amolecida quanto eu por sentir aquela Alma em nossas mãos. Candy surgiu na minha frente com um criotanque aberto. Aproximei minha mão da abertura gelada e deixei que Chuvisco escorregasse devagar para dentro de sua pequena fortaleza, na qual ela viajaria meio universo até o seu próximo planeta. Candy trancou o criotanque e todos trocamos sorrisos vitoriosos. Andei até o corpo de Alice, agora curado, o Suavizar terminando de exercer sua função, deixando apenas uma fina linha rosada no pescoço claro de Alice. Doc a virou de barriga para cima devagar, ajeitando um travesseiro sobre sua cabeça. Quem havia trazido o travesseiro era... Virei-me, procurando a pessoa. E encontrei chocolate, sombra e âmbar.

 —Jamie.

 Ele me observava com a cabeça levemente inclinada, e ergueu um canto da boca quando meu olhar cruzou com o dele.

 —Oi, Ashley.

 Voltei a olhar para Alice, mas meu pescoço travava meus movimentos teimosamente, como se todo meu corpo me obrigasse a olhar para Jamie. Ignorei.

 —Quanto tempo até Alice voltar?

 —Não há um tempo certo. —Respondeu Peg. —Alguns demoram horas, outros dias, outros minutos. E... Alguns não voltam.

 —Alice vai voltar. —Afirmei. —Não é, pequena? Não ouse ficar dormindo por muito tempo, tenho muitos túneis e lugares para lhe mostrar. —Debrucei-me contra o catre e acariciei seus cachos.

 —Esse é o melhor modo de trazê-la de volta. —Informou Peg. —Falar com ela, chamar seu nome.

 —Certo, obrigada, Peg. —Voltei-me para minha irmã. —Há muita gente aqui, Alice, gente de verdade. E algumas crianças, que você vai adorar. Tem o Isaiah, e a Liberdade. Aposto que serão amigos. Acredita que eu também tenho amigos aqui? Quem diria, não é? Lembra-se de quando era pequena, você costumava perguntar onde eu colocava meus amigos, por que você nunca os via? E lembra que eu dizia que eles eram invisíveis, Alice? Pois eu vou lhe confessar uma coisa: eles não existiam. Só na minha cabeça. Sinto muito por enganar você. Mas quem precisava de amigos, não é? Você e eu brincávamos o tempo inteiro. E também tínhamos Lola, lembra-se dela? Lola vive aqui também.

 Olhei em volta, e Candy, Peg, Mel e Doc haviam saído. Apenas Jamie estava recostado em uma cadeira, dobrando os braços atrás da cabeça e me encarando. Não parei de falar com Alice.

 —Trate de voltar logo, mocinha. Aposto que há essa hora Lola já deve ter sentido seu cheiro e está te procurando. Você não pode decepcionar nossa mascote, seria errado. Também não pode me decepcionar. —Comecei a enrolar os cachos dela nos meus dedos. —E papai e mamãe? Onde eles estão? Espero que estejam bem. Você não tem ideia de quão arrependida eu estou por ter tentado matar Orvalho da Manhã e Chamas no Cristal. Aliás, me desculpe por aquilo. Eu não sabia que havia chances para vocês. Mas acredita que eu continuo com Bruma? —Com a outra mão, acariciei minha nuca, na cicatriz. —Mas ela vai ficar bem aqui, eu gosto muito dela. Acredita? Viramos amigas. Eu espero que você também goste de Chuvisco. Gostava... Ela vai embora. Ainda não decidimos para onde.

Que tal, Planetas dos Morcegos?

Por quê?

Parece ser um lugar bonito. Canções, voar... Parece que o tipo de coisa que Chuvisco gostaria.

Mas... Eles são cegos.

Eles não precisam enxergar. Sua beleza está nas canções. E não há tristeza, apenas melodia. É um planeta bonito.

É uma boa ideia.

Apoiei minhas duas mãos no catre, me inclinando para mais perto de Alice.

 —Estávamos discutindo, Bruma e eu, e acho que encontramos o planeta certo para Chuvisco. Mundo Cantor, o que você acha Alice? Bruma diz que lá é muito bonito. Aposto que você vai querer que Chuvisco fique em um planeta legal...

 Escutei Jamie se levantar da cadeira atrás de mim, e minha voz quase falhou.

 —E você não vai precisar se preocupar com ela. Almas, em geral, mudam bastante de planeta. Talvez ela goste de lá o suficiente para não voltar e ficar lá para sempre. Seria bom para ela.

 A mão de Jamie se apoiou no catre ao lado da minha, roçando minha pele. Fiz um tremendo esforço para não demonstrar nada.

 —Enquanto a você, vai me deixar falando sozinha? Vamos Alice. Alice. Alice volte logo. Acho que vou chamar Lola, gostaria disso? Aposto que uma lambida dela despertaria você. Você nunca gostou muito de lambidas babadas de Lola. Eu adoraria que acordasse enquanto eu estiver procurando. Ah, não, deixa pra lá. Quero estar aqui com você, seria melhor.

 Jamie pegou minha mão, prendendo meus dedos nos dele. Tentei soltar minha mão sem olhá-lo, mas ele a apertou.

 —Ashley...

 Ergui meus olhos lentamente para os dele. Estavam muito escuros e muito próximos dos meus.

 —Sim?

 Ele olhou desconfortável para baixo. Não era de se admirar, por eu também estava incomoda e agitada, procurando qualquer ponto para abandonar os olhos. Daria minha vida para não corar.

 —Eu... Sinto. Muito. —Ele disse pausadamente. —Não deveria ter tentado... Bem... Beijar você. Desculpe.

 O que dizer? Eu não poderia dizer que estava tudo bem, por que não estava. Ou estava? Depois de todo esse episódio com Alice, não consegui encontrar tempo para pensar nisso.

 —Não sei o que dizer. —Admiti.

 —Talvez se disser que me desculpa, já é o suficiente.

 —Não há nada para desculpar. —As palavras saltaram na minha boca, e mordi a língua, arrependida. Bruma riu em minha mente e fechou os olhos, apenas ficou ouvindo meus pensamentos. Jamie ergueu os olhos para mim e, infelizmente, corei veemente.

 —Mas eu achei que...

 —Certo. —Interrompi-o. —Eu tenho que... Que ficar com Alice, agora. Tenho que trazê-la de volta. Podíamos... Conversar mais tarde, talvez?

 Meus olhos estavam por cima do ombro de Jamie, eu não arranjava coragem para encará-lo.

 —Claro. —Ele respondeu vacilante.

 Soltou minha mão, enfim, e me deu um meio sorriso tranquilizante, então saiu pela porta, me deixando sozinha com Alice. Apoiei-me sobre os cotovelos com o queixo perto do rosto dela.

 —Acho que melhor acordar logo, pequena Alice, você não vai gostar de saber que está atrasada. Não lembra o quanto odeia se atrasar? Sempre brigava com todo mundo quando se atrasava. Mas isso faz tanto tempo. Será que você mudou? —Passei a mão pelos cachos dela. —Será que você continua risonha e gentil? Ou ficou mais teimosa, como eu? Papai sempre dizia que você era o contrário de mim, pequena. Lembra? Ele costumava dizer para mamãe: “Alice é tão diferente de Ashley. E tão fácil de convencer! Mas Ashley é durona”, lembra? Ele sempre ria das nossas discussões tolas... Acho que sinto falta disso. Sim, sinto mesmo. E tenho tanto medo de que papai não volte. Ou mamãe. Mas você está aqui, certo? Podemos ser uma família. Menor, mais ainda assim seria uma pequena família só nossa. Então, abra os olhos, Alice.

 Ela não se mexeu, assim como a ultima hora. Soltei os cachos dela e segurei sua mão entre as minhas.

 —Vamos, Alice, eu sinto sua falta. Sinto falta da minha irmãzinha. Eu não tenho tantos amigos como disse antes. —Sussurrei. —Acorde, para poder ver. Eles não confiam muito em mim, Alice. Ou talvez eu não consiga deixar que eles confiem. Eu sou tão imprevisível, Alice, e tão teimosa. Ao contrário de você, claro. Você atrai as pessoas, e eu afasto. —Dei um meio sorriso. —Você é tão melhor que eu, Alice, mesmo só tendo nove anos. Meu Deus, você já tem nove anos! Eu perdi seu aniversário. Foi há dois meses, não é? Desculpe. Talvez eu consiga algo para você na próxima incursão. Se eu for, claro. Acho que posso ser útil, no fim das contas. Eles não podem me pegar, eu desapareci sem que ninguém soubesse. Sou uma Alma.

 As palavras soaram erradas. Eu não era uma Alma.

 —Bem, não, não sou não. Só pareço. Sabe, as Almas, em sua maioria, são pacíficas. E você sabe como eu gosto de uma briga. —Minhas sobrancelhas se apertaram, querendo se juntar. —Essa é nossa maior diferença, não é? Você é a irmã boa, eu sou a irmã malvada. Somos uma bela dupla.

 Ela não se mexia.

 —Você não vai acordar? Alice? Por favor?

 —Às vezes demora um pouco. —Sussurrou Jamie as minhas costas.

 —Achei que você tinha ido embora. —Não soou grosseiro como eu queria, foi suave.

 —Eu estava no corredor.

 —Ouvindo escondido, hã?

 —O som se propaga pelas cavernas. —Ele sussurrou.

 —Certo.

 Ele então estava ao meu lado, suas mãos em meus ombros, e me virou de frente para ele com demasiada gentileza.

 —Você falou com Bruma?

 —Bruma? Por quê?

 Jamie olhava tão fundo nos meus olhos que parecia que ele olhava minha alma. Senti Bruma se contorcendo sob aquele olhar, quase como uma advertência.

Bruma... O que Jamie quer dizer?

Ele devia ficar de boca fechada. Ela parecia zangada.

Bruma, estou falando sério. Conte-me, ou arrancarei de você a força.

Não!

 —Jamie... O que Bruma deveria me falar?

 —Eu acho que ela mesma deveria dizer.

 —Jamie. —Adverti. —Diga. Agora.

 Ele então respirou fundo, baixando seu rosto do meu de modo que sua testa tocava a minha.

 —Eu havia prometido que não lhe contaria...

 —Por favor. —Sussurrei. Minha voz saiu macia e suave.

 Ele fez uma careta de desgosto.

 —Eu prefiro quando você grita. É mais fácil de resistir. —Ele não estava sendo engraçadinho, era verdade.

 Engoli em seco.

 —Conte-me. Por favor, Jamie.

 Ele baixou os olhos do meu, e uma de suas mãos pousou na lateral do meu rosto.

 —Sinto muito, Bruma. —Ele sussurrou.

Jamie, NÃO! Ela gritou em minha mente, tentando se liberar, mas fiz muita força mental para mantê-la onde estava.

 —Jamie...

 —Não fique zangada. —Ele implorou. —Eu não quis prometer aquilo, mas Bruma é... Uma Alma persuasiva. E ainda no seu corpo...

 Ele falou de um modo desagradável, como se fosse uma ofensa. Mas continuou.

 —Eu tentei fazê-la mudar de ideia. Juro que tentei, Ashley. Mas... Acho que ela abusou de sua teimosia.

 —Diga logo.

 —Bruma nos fez prometer cumprir algo... Pelas suas costas... Ela quer ir embora.

 Minhas sobrancelhas se franziram com muita força, e afastei-me de Jamie numa forte guinada, livrando-me de suas mãos.

 —O QUÊ? Como vocês concordaram com isso? Jamie!

BRUMA! Que droga de história é essa? Você não pode ir embora. Está me escutando? Não pode! Eu não vou deixar ninguém tocar em você, vai ficar bem aí.

Mas... Ashley...

 A voz dela estava como bolha de sabão novamente, e senti minha fúria desapareceu como fumaça a céu aberto. Foi substituída por uma tristeza incontrolável e zangada.

 —Eu não queria... —Começou Jamie.

 —Como pôde concordar com isso? Bruma é o que me faz humana, Jamie!

 Ele não disse nada, baixou os olhos.

Eu não vou perder você, Bruma.

 Antes que ela respondesse, saí correndo porta afora, desviando das mãos de Jamie e indo em direção à saída.

 Descobri Ian e Melanie postos fora do consultório, provavelmente prontos para uma retirada minha. Empurrei Melanie e me desviei de Ian.

 —Ashley! Ashley, não! Volte.

 —Não! Vocês não vão tocar nela!

 Continuei correndo para a saída, e poucos metros antes da rampa que me levava à luz do deserto, Jeb apontou a arma para mim. Ouvi o cão da espingarda sendo armado, mas continuei correndo, sabendo que ele não atiraria em mim. Subi a rampa e corri sem rumo pela areia do deserto, meus passos atrapalhados pelo chão irregular, e interrompidos pelos meus soluços. Tropecei uma vez e estiquei as mãos na frente do corpo, caso eu caísse, e percebi que elas estavam cobertas de poeira grudada em minha pele pelo calor. Meu coração bateu ainda mais rápido. Minha visão. Olhei para trás e vi duas pessoas. Com suas roupas cor de marfim. Se eu não focasse neles, não passariam de borrões cor de marfim. Estavam se aproximando.

 Desesperada, lembrei que havia sido pega em minha visão, então teria que correr. Na visão, as pessoas ganharam tempo enquanto eu falava e procurava Bruma. Mas eu sabia disso, e não lhes dei o tempo necessário. Corri em linha reta, avançando com tanta força sobre o chão que minhas pernas logo começaram a doer. Mas eu não pararia, nunca. Eles teriam que desistir primeiro.

 Corri por muito tempo, para muito longe, e estava rápido demais. Minhas coxas ganharam cãibras terríveis, paralisando os músculos, e tive que parar. Meu corpo me traíra na hora mais imprópria. Então os ouvi se aproximarem, respirando pesadamente e com passos pesados. Tentei correr, mais não consegui dar mais de três passos antes que sentir as cãibras paralisantes novamente. Caí de joelhos e tombei. Tuf. Protegi meu rosto com as mãos para evitar engolir areia. Alguém caiu pesadamente sobre mim, sem me machucar, e me virou de barriga para cima. Era Jamie, e senti lágrimas de traição se acumularem nos meus olhos. Fechei os olhos com força para espantá-las.

 —Deixe-me em paz. —Gemi.

 A mão de Jamie segurou meu rosto, acariciando-o. Então ele me segurou firmemente contra o peito, apertando-me quando tentei me afastar. Minha respiração estava descontrolada. Meu coração martelava as costelas. O rosto de Jamie estava perto de mim, e não consegui impedir que ele visse as lágrimas escapando pelos cantos dos meus olhos. Os olhos escuros dele estavam brilhantes e úmidos quando ele tirou uma seringa coberta do bolso da calça. Eu reconheci a seringa. Morfina. Ele me drogaria e tiraria Bruma de mim. Que tipo de monstro faria isso?

 Quando ele espetou a seringa no pedaço descoberto de pele sobre minhas costelas senti suas lágrimas caírem no meu rosto, escorrendo pela minha bochecha.

Minha visão começou a borrar, o rosto de Jamie perdeu os traços e se tornou um borrão.

Logo, eu adormeci, com um soluço, pensando que nem mesmo me deixaram me despedir da minha Alma.


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