The Surviver escrita por NDeggau


Capítulo 20
Capítulo 19 — Vasculhando




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Vasculhando

 A VOLTA ERA AINDA MAIS ESTRANHA QUE A IDA. Bruma já havia me dito isso uma vez. Estava escuro demais, longe demais quando retomei minha consciência. Talvez eu não tivesse saído por mais um segundo – era o que aparentava. Eu não sentia o tempo perdido, apenas sabia que eu acabara de voltar. A sensação era semelhante a um desmaio. Demorei alguns minutos enquanto associava tudo. Meu corpo. Ele estava ali, eu o sentia, só não conseguia controla-lo, como uma paralisia. Sentia o coração batendo e a respiração lenta. Bruma estava dormindo. Não sabia ser possível eu acordar enquanto ela dormia.  

 Concentrei-me nas memórias. Elas surgiram na frente dos meus olhos – falando no sentindo figurado – como um álbum de fotos. Não conseguia todas as memórias de todos os segundos, mas as mais importantes estavam ali. Ou talvez apenas as que Bruma queria que eu visse. Encontrei a primeira, que aconteceu logo depois que eu sumi.

Bruma agitou as mãos, sacudindo-as ligeiramente, tentando acreditar que elas agora eram dela. Tocou seu rosto, sentindo a pele macia sob os dedos. Assim que acreditou, procurou por mim, afundando em sua mente. Mas eu parecia distante, desfalecendo, e ela não conseguiu minha atenção. Sentiu uma pontada no peito, como um fio de navalha. Ela se fora, pensou Bruma. Quando ela voltou a se concentrar em seus olhos, se deparou com um par de outros olhos, azuis e brilhantes, a encarando com expectativa. Ela corou veemente, pois sempre fazia isso quando se deparava com aqueles olhos, mas na maioria das vezes seu acanhamento não era refletido naquelas faces.

 —Bruma?

Bruma corou um pouco mais, sentindo seu estômago se revirar. O corpo não era acostumado com essa sensação.

 —Sim?

Ian sorriu.

 —Como está aí? E... Ashley? Fechou os olhos?

 —Ela está bem. Eu acho.

 —E você?

Ela tentou descobrir o que sentia, procurando um sentimento sólido, mas não encontrou. Apenas um misto de coisas a qual ela não estava acostumada.

 —Eu... Não sei. Eu estou... Bem, eu acho. É confuso. Faz muito tempo que eu não... Tenho um corpo. E ele é tão... Desacostumado com essas... Coisas.

Ian falou bem devagar.

 —Que tipo de coisas?

Bruma sentiu o rosto queimar.

 —Eu... Quero dizer, eu... —Ela não encontrava palavras. Era tolo ouvir essa confusão na minha voz. —Ashley era menos... Acanhada do que eu.

Ian riu.

 —Ah. Você quer dizer que está sentindo timidez?

Timidez?

O corpo não era acostumado com esse sentimento angustiante. Eu nunca fora tímida, e isso era um traço da personalidade de Bruma.

 —Bem, pode-se dizer que sim... —Bruma sussurrou.

Ian riu novamente, se divertindo com a confusão.

 —Ora, vamos. Não fique assim.

Bruma engoliu em seco, tentando engolir a timidez.

 —Eu estou tentando. Mas é... Diferente. Conheço todos vocês, mas ao mesmo tempo, nunca falei com nenhum, é tão... Estranho.  Como mudar de espécie de repente.

Ian pegou a mão de Bruma e começou a puxa-la em direção à cozinha. Ela estremeceu. Sentiu que eu estava sumindo e pensou claramente.

Por favor, não demore. Não posso suprimir você, Ash.

 Sorri, fora da lembrança, grata por Ian estar cuidando de Bruma.

Bruma deixou-se ser levada por Ian até a cozinha. A primeira pessoa que seus olhos procuraram foi Jamie. O corpo já estava acostumado em procura-lo.

Mas eu só percebera isso agora, com a visão. Cada vez que eu estivera com Ian, ou sozinha, ou com qualquer outra pessoa, a primeira coisa que eu procurava ao entrar em um aposento era procurar pela forma familiar de Jamie. A questão é: Por quê?

Jamie se levantou quando os olhos o encontraram. Ele começou a vir em nossa direção, mas parou. Talvez houvesse dois motivos. O primeiro, o fato de Ian estar segurando a mão de Bruma. Ou, segundo, o fato de Bruma sorrir assim que Jamie fez o mesmo. Jamie parou, olhou para Ian com o cenho franzido e perguntou:

 —O que aconteceu com Ashley?

Ian puxou a mão de Bruma, colocando-a a sua frente, como um escudo.

 —Jamie. —Disse Ian. —Quero lhe apresentar Bruma.

O silêncio foi imediato. Todos os burburinhos da cozinha encerraram e todos os olhos se viraram para eles. As faces de Bruma queimaram. Jamie a observou por um momento, e pude ver, pelos olhos estreitos dele, que ele observava todas as diferenças no corpo. O rosto corado, os olhos baixos, a postura encolhida, as mãos trêmulas.

Nenhumas dessas características eram minhas.

Jamie sorriu.

 —Bem vinda, Bruma. Como está aí dentro?

Bruma demorou a responder, e quando o fez, gaguejou.

 —Estou bem.

 —E... Ashley?

Bruma negou com a cabeça.

 —Não sei. Não sei dizer. Ela... Fechou os olhos.

Todos se preocupam tanto com ela, ela pensou.

Jamie assentiu e baixou os olhos por um segundo. Mas logo voltou seu olhar para Bruma e sorriu.

 —Bem, aposto que quer conhecer a todos melhor, não é? Que não seja dentro da cabeça de Ashley.

Bruma sorriu.

 —Ah, sim, por favor. Se não for incomodo, eu poderia falar com Peg? Eu gostaria de falar... Eu mesma... Com ela.

Ian se manifestou.

 —Claro. Eu te levo até ela.

Bruma se deparou com os olhos azuis, rodopiando lembranças e pensamentos em sua mente. Eles me atingiam como brisa. Ao ver os olhos de Ian, por um segundo, meu corpo firme e rígido se derreteu como manteiga quente.

 Sem esperar nenhum segundo, procurei a próxima lembrança. Haviam muitas, cheias de sentimentos e sensações, rodopiando e atingindo meu rosto. Folheei as memórias até me deparar com um paredão escuro. Tentei ultrapassa-lo, mas Bruma, mesmo adormecida, o protegia firmemente. Debati-me contra ele, mas o paredão continuou firme. Desisti e voltei para as outras lembranças, as que aconteceram logo após a que eu vi.

Ian e Jamie levaram Bruma para os campos lestes. Todos estavam lá, Jared, Melanie, Peregrina, Jeb, Heidi, Paige, Andy, Aaron, Violetta, Bill, Trudy e Darcy. Bruma reconheceu todos eles, mas não reuniu coragem suficiente para abrir a boca.

 —Ei gente. —Gritou Ian. Ele conseguiu chamar a atenção de todos. —Essa aqui é a Bruma.

Peg foi a primeira a se aproximar, quase correndo, procurando por sinais no rosto de Bruma. Ela sorriu, e estava tão nervosa quanto Bruma.

 —Olá. Está tudo bem?

 —Está. —Concordou Bruma. Ela respirou fundo, buscando coragem. —Peg, eu... Queria conversar com você... Sobre... Almas, se não se importa.

 —Tudo bem. Tudo bem. —Peg sorriu. Seu tamanho diminuto a tornava agradável.

E assim se seguiu uma conversa longa sobre Origem, troca de espécies, hospedeiros. A conversa se seguiu como eu imaginei que se seguiria, até Peg tocar no assunto que me chamou a atenção.

Peg apoiou os cotovelos sobre os joelhos, agora que ambas estavam sentadas no chão.

 —Bruma... Eu preciso perguntar. Como foi quando Ashley... Suprimiu você?

Os olhos de Bruma quase saltaram das orbitas, e seu corpo sacudiu num tremor violento.

 —Ashley nunca me suprimiu. —Suprimiu? —Ela apenas reconquistou seu próprio corpo, e eu não revidei.

 —Por quê?

 —Eu não me achava no direito de toma-lo novamente. Afinal, é o corpo dela. E ela encontrou uma saída... Um modo de tomar o corpo de volta... Não faria sentido tirar isso dela...

 —Está querendo dizer que você a deixou ficar com o corpo?

Bruma corou e assentiu.

 Abandonei a lembrança abruptamente, ganhando uma pontada súbita de dor de cabeça. Então Bruma me deixara acreditar que eu tinha conquistado o corpo de volta? Então eu não era forte como imaginei? Tudo não passara de uma farsa para não me magoar? Era doentio pensar nisso. A pontada de dor de cabeça foi se intensificando, se alastrando por todo meu corpo, até que foi substituída por sono e adormeci, compartilhando os sonhos de Bruma.

 —Vamos, Bruma! —Gritou Jamie, sorrindo como sempre. Bruma forçou as pernas, sabendo o quão forte elas eram. O corpo foi tomado pelo instinto de acelerar violentamente, guinadas fortes para frente sempre mais rápido. Ela conseguiu chegar, desabando no chão depois da linha de chegada. Mas era tarde demais. Melanie chegou em primeiro. Jamie surgiu ao seu lado rindo. Bruma sentia as faces quentes, mas não era timidez. Era algo que ela não gostava – a desavença. Jamie percebeu.

 —Não fique assim. —Jamie deu uma risada. —Você foi muito bem, apesar de tudo. Ninguém ganha de Melanie na corrida.

Bruma sorriu.

 —Eu reparei.

Ian a parabenizou também, os olhos azuis flamejantes brilharam na direção dela. Bruma corou agora acanhada. Violetta ofereceu garrafas de água a todos, e entregou uma extra a Bruma, junto com uma tigela funda. Bruma agradeceu e assoviou para Lola. A cachorra dourada chegou perto de Bruma hesitante. Ela não parecia gostar de Bruma assim como gostava de mim. Bruma derramou a agua na tigela e a colocou no chão. Só depois que se afastou que Lola bebeu a agua, mas hesitava e encarava Bruma com os olhos âmbar. Ela sentia falta de Ashley. Era bom saber que alguém tomava por essa falta. Peg surgiu em meio às pessoas com barras de granola, e parabenizou Bruma pela corrida com um abraço delicado. Bruma sorriu mais feliz do que nunca.

Ashley?

 —Oi Bruma. —Saudei, dentro do escuro da cabeça dela.

Você voltou! Já era hora.

 —Quanto tempo eu sumi?

Um mês inteiro.

 Arrepiei-me terrivelmente.

 —Para mim, não passou de uma piscada de olhos.

Eu sei como é. Mas você não sentiu... Nada?

 —Não. Eu esperei sentir seu coração, ou algo do tipo, assim como você. Provavelmente o meu “fechar de olhos” é diferente do seu.

Pode ser. O seu é mais perigoso.

 —O que quer dizer?

Você corre o risco de se suprimir para sempre. Isso seria horrível.

 Ela se arrepiou, senti o corpo estremecer.

 —Está tudo bem. —falei. —Eu voltei.

Jamie vai ficar louco de felicidade. Peg também. Ian também. E Lola, principalmente. Ela não gosta muito de mim.

 —Eu vi isso. Nas suas memórias.

Você viu minhas memórias?

 Ela ficou nervosa. Amedrontada.

 —Algumas. —Respondi, desconfiada. —As que eu tinha acesso. O que significava aquele paredão? Você está me bloqueando?

São as memórias das minhas vidas passadas. Você não consegue acessa-las nem se eu quisesse. Mentiras. Sua voz soou falsa, mesmo em pensamento.

 —Tem certeza? —Pressionei.

São memórias que você não pode ter acesso. Ela concluiu. Sua voz soou firme dessa vez, sem falsidade. Foi o suficiente para me contentar.

 —Está bem.

Vamos ver os outros. Eles estão sentindo sua falta.

 —Mas parecem gostar mesmo de você.

Quer seu corpo de volta? Ela já estava diminuindo.

 —Não! —Exclamei. —Fique com ele mais algum tempo. Estou bem onde estou.

Tem certeza?

 —Tenho.

 Bruma suspirou e abriu os olhos. Ela tinha acabado de despertar. A luz que atingiu seus olhos era ofuscante, há princípio, mas percebi o quanto senti falta dela. Vi meu quarto pelos olhos de Bruma, as pontas de sol que surgiam entre as frestas. A visão familiar me confortou. Percebi que agora meu coração – no sentido figurado – estava mais leve. A agonia havia partido, junto com a dor e a raiva. Era como renascer. Eu me sentia incrivelmente leve.

Isso é muito bom, sussurrou Bruma.

 Minha voz falou, mas não era eu que a controlava. Ela estava macia e sussurrante, controlada por Bruma.

 —Jamie? Está aí? Tenho notícias.

 A voz de Jamie surgiu perto, como se ele estivesse ao lado dela.

 —Bom dia, Bruma. Quais notícias?

 —É a Ashley. —Bruma não conseguia conter o sorriso. —Ela voltou.

O rosto de Jamie surgiu sobre meu olhar... Nosso olhar... Primeiro ele estava confuso, mas sorriu assim que encontrou os olhos de Bruma.

—Como ela está?

Meu coração – o real, o que bombeava o sangue daquele corpo – se alvoroçou por minha causa. Bruma se assustou com a aceleração cardíaca, foi um susto alegre.

—Uau. —Ela deixou escapar. —Ela está bem. Está feliz em ver você.

O sorriso de Jamie se alargou de um jeito que eu não achava ser possível.

—Ela pode falar comigo?

—Não! —eu falei, no fundo da cabeça dela, sabendo que Jamie jamais me ouviria.

O que quer que eu diga? Perguntou Bruma.

 —Diga que estou bem e voltarei logo. —Sussurrei. —Mas ainda não.

 —Ela voltará em breve. —Disse Bruma. —Mas ainda não está pronta. Está... Não sei. Não quer encarar tudo ainda.

 O sorriso de Jamie escorregou do seu rosto, sumindo aos poucos.

 —Diga para ela não demorar. —Ele sussurrou.

 —Ela pode ouvir. —Respondeu Bruma. —E ver, qualquer coisa que eu vejo e ouço.

 Jamie sorriu só um pouquinho.

 —Sentimos sua falta, Ash... Ashley.

 Engoli em seco, lembrando-me de como fui grosseira com ele quando Jamie queria apenas me ajudar.

 “Não me chame de Ash! Não me chame assim. Nunca.”

 —Diga a ele... —Falei, mas me calei.

Dizer o quê?

 —Que eu já vou indo. Amanhã estou de volta.

 Bruma repassou minha mensagem e ela e Jamie sorriram facilmente. Sorri também, mesmo presa na minha própria mente.


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