The Surviver escrita por NDeggau


Capítulo 18
Capítulo 17 — Curando




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Curando

 MEU CORPO FOI AJEITADO EM UM COLCHÃO. Eu estava tão molenga que não conseguia movê-lo direito. Apenas puxei meus braços para cobrir meu rosto – um movimento que antes era raro, mas agora se tornara frequente. Ian afagou meu ombro.

 —Está tudo bem agora.

 Está? Eu não achava. Era difícil aceitar o que acontecera, difícil até de pensar. Fechei os olhos, percebendo que até enxergar era difícil. Talvez eu estivesse em choque. Eu nunca estive antes, não podendo afirmar de certeza. Mas nada parecia certo, tudo sempre errado, errado...

É, eu estou em choque, conclui.

Duvido que alguém não ficaria, disse Bruma, tentando me ajudar.

 —Peg? —Sussurrei. Acho que era Bruma usando meus lábios mais uma vez, mas a presença de Peregrina era querida por alguma de nós.

 —Sim?

 —Como estava Cam?

 Ela não respondeu de imediato. Arquejou, hesitou e sussurrou.

 —Eu não o vi. Mas... Deve estar... Morto. —As palavras eram difíceis para ela dizer; eu entendi.

 —Estava muito ruim, Ian? —Sussurrei.

 —Sim. —Foi a única coisa que ele disse, e bastou para me fazer estremecer.

 —Fiquei com tanto medo. —Disse Bruma através dos meus lábios.

 —Agora acabou. —Disse Ian. —Agora você está totalmente a salvo.

 —Eu esperava que isso fosse melhor. —Sussurrei, angustiada.

 —Você está ferida? —Perguntou Peg, com sua voz fina.

 Balancei a cabeça, que latejava, tentando negar. Mas meus movimentos entrecortados desmentiam. Mãos grandes afastaram meus braços e ergueram meu rosto, tocando as áreas que não ardiam. Houve um arquejo.

 —Ashley... —Os dedos hesitantes de Ian tocaram minha face onde Cam havia cravado as unhas e arquejei, dando uma guinada para trás tentando me afastar. Minha cabeça latejou e cerrei os dentes.

 —É melhor chamar Doc. —Disse Peg. —Eu vou fazer isso.

 —Peg. —Alertou Ian. —Não chegue perto... Do corpo.

 Peregrina assentiu e sumiu porta a fora. Os olhos azuis de Ian voltaram para mim e me retraí. Ele girou lentamente meu rosto e puxou o ar entre os dentes quando viu meu pescoço.

 —Deve estar doendo, não é?

 Neguei com a cabeça. Eu estava assustada demais para sentir alguma coisa.

 —Não se preocupe. —Sussurrou ele. —Doc vai cuidar disso.

 Neguei novamente com a cabeça. Não queria ser curada. Talvez a dor física engolisse a dor psicológica. Talvez eu pudesse respirar novamente com aqueles arranhões ardentes.

 —Ian, eu... —As palavras morreram na minha boca. Era difícil falar, também. Eu jamais pensei sentir algo tão confuso. Mas eu só estava me protegendo! Não devia ser tão errado...

Não devia ser tão errado... Concordou Bruma

 —Não devia ser tão errado. —Sussurrou meus lábios.

 —Acho que tudo está um pouco errado, não é?

 Assenti infeliz.

 —Mas, Ashley... Você fez o que deveria. Cam teria te matado, e... —Ian mudou a frase de súbito. —Por que ele queria te matar?

 Estremeci a lembrança.

 —A Alma que usou o corpo dele antes era Pinhos na Neve. —Suspirei novamente. —Ele foi o ajudante de Curandeiro que fez minha inserção. Mas eu acho que o hospedeiro e a Alma... Misturaram-se. Ambos queriam matar meu corpo e proteger as Almas... Por eu ser rebelde, selvagem, talvez.

 —Ah. Peg disse que isso é comum. Descartar os hospedeiros selvagens.

 Bruma estremeceu com a ideia, e transpareceu no meu corpo.

 —Eu fui mantida. —Sussurrei. —E nunca entendi o real motivo.

Por que a escolhi, sussurrou Bruma. Eu tinha outro corpo, uma criança... Mas gostei do seu. Gostei daquele corpo hospedeiro que seria descartado, então saltei para ele.

Que péssima escolha, pensei.

É a coisa que mais me orgulho na vida, disse ela.

 Sorri.

Obrigada Bruma. Por salvar minha vida tantas vezes.

É o meu trabalho.

 —O que estão conversando? —Perguntou Ian.

 —Ela estava... Contando-me uma coisa. Que ela já tinha um hospedeiro e escolheu saltar para meu corpo.

 Ian sorriu e afagou minha nuca, igual eu fazia quando falava com Bruma.

 —Essa é a nossa Bruma, não é?

Minhas faces queimaram, por parte de Bruma. Talvez de mim. A mão de Ian abandonou meu pescoço e escorregou pelo meu cabelo, deixando-a cair no colchão ao seu lado.

 Passos chamaram a minha atenção, vindo do corredor. Estremeci, a lembrança dos passos de Cam queimaram na minha mente. Mas era só Doc, Peg e Jamie. Todos com rostos preocupados.

 Suspirei e fechei os olhos novamente, me escondendo atrás dos meus braços. Senti o peso de Doc afundar o colchão e me encolhi um pouco mais, tentando desaparecer.

 —Ashley... Ashley... —Chamou Doc, baixinho. —Deixe-me ver isso, querida. Não tenha medo. Ninguém vai te machucar.

 Estremeci. Era por isso que eu estava assim.

 —Ela está em choque, não é? —Sussurrou Peg.

 —Está. —Concordou Doc. —Temos que ser muito cuidadosos com isso. Ashley já passou por muita coisa, recentemente.

 —Parem de falar como se eu não estivesse aqui. —Resmunguei.

 Houve um longo silêncio, eu só ouvia minha respiração entrecortada. Ouvi passos para fora do quarto. Duas pessoas haviam saído, e para infelicidade do meu coração, eram Peg e Ian. Mais silêncio.

 —Jamie, você pode...? —Murmurou Doc, baixo demais para que eu pudesse compreender.

 —Claro. —Sussurrou Jamie.

 Uma mão bronzeada procurou a minha, enrolada na frente do meu rosto. Jamie tirou meus braços da frente do corpo e puxou delicadamente meu corpo até eu estar sentada, minhas costas apoiadas nele. Eu insistia em esconder meus olhos atrás da franja, de tão difícil que era enxergar. Eu não entendia. Nem o que tinha acontecido, nem o que acontecera. Nada. Era isso estar em choque?

 Evitando os arranhões, Jamie puxou meu queixo para cima, descobrindo meus olhos, e me obrigando a olhar para ele. Pela primeira vez, ele não sorriu quando encontrei seu olhar. Ele parecia aflito e triste...

Preocupado.

 Jamie engoliu em seco quando minha pele lesada foi iluminada pelas frestas de sol que adentravam o quarto. Era meu quarto, somente agora eu o tinha reconhecido. Talvez o choque estivesse passando.

 Doc ajoelhou-se ao meu lado, com aqueles cilindros brancos – medicamentos de Alma – prontos para serem usados. Engoli em seco.

 —Ashley. —Começou Doc. Meu olhar caiu pesadamente sobre o dele. —Eu só irei curar você, tudo bem?

 Assenti.

—Tudo bem.

—Nada vai te machucar. —Sussurrou Jamie.

Baixei os olhos. Nada vai me machucar? Acho que nada me machucava tanto quanto eu mesma. Meus próprios pensamentos eram mais perigosos que uma Glock.

Doc segurou meu rosto com cuidado, erguendo a bochecha direita, projetando a luz sobre ela. Minha mão procurou a de Jamie, tremendo. Ele a segurou firmemente.

—Doc, não acha melhor dar a ela um Corta Dor antes?

Doc assentiu, e beliscou um quadradinho fino de papel e me ofereceu. O quadradinho se dissolveu na minha língua e o engoli, sentindo a dor se dissolver. Tudo ficou mais fácil de repente, até mesmo pensar. Doc continuou seu trabalho, borrifando Limpar no meu rosto e Limpar por Dentro perto do meu nariz, para que eu inspirasse. Depois o Curar, o Fechar e Suavizar. Doc sorriu satisfeito.

 —Pronto. Nenhuma marca desse incidente horrível.

Será mesmo? Pensei. Eu acho que terá uma grande marca. Tinha 1,75 mais ou menos e cabelos vermelhos. A falta dele não será uma marca? Solucei infeliz.

Você é humana, Ashley. Não devia ter esses sentimentos culpados. O instinto é mais forte que a razão quando se trata de sobreviver.

Bruma, eu tenho a impressão que trocamos de papel. Você é sentimental, eu sou racional. O que está acontecendo conosco?

A convivência é algo perigoso, ela concluiu.

 Doc disse alguma coisa para Jamie e se levantou, saindo do quarto. Fechei os olhos novamente, os escondendo sob a franja. Jamie passou um braço sobre meus ombros e me apertou contra seu peito.

 —Tudo bem. —Ele sussurrou. Seu hálito agitava minha franja. —Tudo bem.

 Toquei meu rosto com a ponta dos dedos e senti a pele macia e recém curada.

 —Eu fiquei com medo. —Admiti sussurrando. —Achei que ele iria me matar.

 —Mas ele não conseguiu. —Sussurrou Jamie. —Estou tão feliz que você esteja bem.

Mas eu não estou bem, pensei.

Diga a ele. Jamie vai cuidar de você. Vai proteger você, podemos confiar nele.

Bruma, Bruma... Eu posso estar abalada, mas ainda não me perdi totalmente. Eu não preciso que ninguém cuide de mim, lembra?

 Bruma se retraiu com minha súbita mudança. Eu apenas voltei a ser eu mesma, talvez. Engoli os sentimentos – todos – diminuindo e escondendo-os. Respirei fundo e me afastei de Jamie. Ele sorriu, e um sorriso fácil surgiu nos meus lábios.

 Depois de poucos minutos, minha cabeça estava coerente, alerta. O choque passara. Concordei em ir até o pátio com Jamie. Ele segurou meu pulso, como sempre fazia, e me puxou para fora do quarto, indo em direção aos campos.

 Muitas pessoas estavam lá, provavelmente todos os humanos. Os burburinhos eram altos e Jamie freou ao ouvirmos um nome familiar – Cam.

 Minhas pernas travaram. Meu corpo sacudiu violentamente. A mão de Jamie escorregou até a minha e a apertou. Meu dedos se enrolaram nos dele, buscando conforto. Não encontrei.

 Ignorei a sensação ruim se debulhando no estômago e continuei andando, rebocando Jamie comigo. Parecia ser hora do almoço. Eu não podia afirmar com certeza, porque nos últimos dias estive tão abalada e chocada que não sabia distinguir dia e noite. Teria que recomeçar a partir de agora. Era meio-dia, porque todos os pratos esquecidos nas mesas estavam meio-cheios de ensopado de carne.

 Continuei andando, até o maior amontoado de pessoas. Jamie freou, segurando meu braço e me fazendo parar também. Olhei ao redor e vi. Jamie me puxou para perto e escondeu meu rosto no seu ombro, mas era tarde demais. Eu já tinha visto. Sharon.

 Ela estava abraçada a Doc, seus longos cabelos vermelhos grudados no rosto molhado pelas lágrimas. Maggie estava ao lado dela, tentando consola-la, mas também chorava. Eu vi a cena por um segundo, mas tinha certeza de que não a esqueceria. Apertei os olhos quando me lembrei da dor que senti ao descobrir que havia a possibilidade de meus pais estarem mortos. Estaria Sharon sentindo a mesma coisa? Por minha culpa? Meu corpo ardeu, pontadas flamejantes contraíram meus músculos. Jamie apertou o braço a minha volta, mas não foi o suficiente. Tentei espantar a dor, substituindo-a por alegria, como Bruma havia feito – porém não era suficiente. Tentei então com o único sentimento que eu conhecia bem – a raiva. A dor ardente de repente ficou pesada, sólida, afundando no meu peito, arranhando minha garganta. Raiva. Engoli a sensação de o meu coração ser de ferro em brasa. Tentei empurrar Jamie e me afastar, mas ele me segurou com mais força quando minha intenção foi fugir.

 Fiquei presa no abraço dele por mais dois minutos quando ele finalmente me soltou. Sharon, Doc e Maggie haviam sumido.

 Suspirei infeliz e abafei o sentimento novamente. Bruma estava em silêncio. Parecia ter fechado os olhos, mas eu ainda sentia a presença dela no fundo da minha cabeça.

 Jamie procurou meu olhar e sorriu quando o encontrou. Nenhum sorriso surgiu facilmente nos meus lábios, e não tentei força-lo.

 Mastiguei meu ensopado sem sentir o gosto e engoli sem sentir a comida descer. Eu não sentia uma gota de fome, mesmo sabendo que meu estômago estava vazio há horas. Nem a raiva sólida implantada no meu peito abafava certa agonia, consequência de tudo que já aconteceu. Odiava me sentir assim, com a cabeça tão frágil, atingível. Eu sentia uma sensação meio estúpida para com tudo isso.

 Jamie estava comendo ao meu lado, e eu sentia que ele me encarava de tempos em tempos, mas não dizia nada. Ele estava certo em ficar quieto; agora, para mim, o silêncio era mais seguro.

 Ele só me deixou sozinha, horas depois, quando insisti em tomar banho. Procurei uma muda de roupa e meu moletom recém-lavado. Sorri com remorso, pois Peg havia lavado meu moletom apenas para me deixar melhor. Fiquei submersa na água escura até meu folego escapar lentamente pelos meus lábios. Ficar daquele jeito me fazia pensar mais claramente. Era o que eu precisava. Enxuguei-me e me vesti. Estava saindo da câmara de banho quando vi as marcas de sangue no chão. Eu quase conseguia ver Cam tentando me matar, a Glock abandonada no chão, o tiro. Um gosto ferroso tomou conta da minha boca. Sangue. Eu sentia o gosto do sangue de Cam no fundo da minha garganta. Apertei meus olhos e repeti um gesto tão frequente – escondi meu rosto atrás dos antebraços, enroscando meu cabelo dos dedos. Ouvi passos e me arrepiei inteira, me sacudindo com força.

Está tudo bem. Sussurrou Bruma, me confortando. Ninguém vai te machucar agora.

Pare de repetir isso! É o que mais dói, não vê?

 Ela ficou em silêncio e eu a acompanhei. Os passos se aproximaram descuidados, fazendo ruídos altos. Ninguém se aproximava sorrateiramente. Mas não ousei destampar o rosto, e me encolhi conforme os passos se aproximavam. Até que eles pararam.

 —Ei, ei Ashley. Está tudo bem.

 Os passos voltaram, mas agora eu não os temia. Ian passou os braços em minha volta e me abraçou.

 —Tudo bem, tudo bem.

  Ele me balançou levemente, me acalentando, como uma mãe ninando uma criança. Soltei os braços que escondiam meu rosto e os deixei cair sobre os ombros dele, ainda sem abrir os olhos.

 —Vamos sair daqui. —Sussurrou Ian. —Esse, com certeza, não é um bom lugar para você.

 Assenti, fazendo meu rosto roçar a camisa dele. Ian me soltou, pegando minha mão e me levando para longe dali. Só quando entramos no túnel, quando a luz sumiu sob minhas pálpebras fechadas, que abri os olhos. Eu tinha medo de ter mais alguma cena encrustada violentamente na minha memória.

O pátio estava movimentado, muitas pessoas fazendo muitas coisas. As visões distintas, toda a ação que ocorria naquele espaço fizeram minha cabeça latejar sem dó. Meus olhos pareciam cansados. Meu coração estava cansado, na realidade. Um coração de dezesseis anos não deveria se sentir assim. Apertei a mão de Ian, que segurava a minha com segurança. Ele me puxou novamente para perto, sem soltar minha mão, passou o braço livre pelos meus ombros e me segurou junto a seu peito, mais uma vez me ninando igual a uma mãe. Os pensamentos de Bruma se fundiram aos meus e oscilavam terrivelmente.

Não se apaixonar por ele... Olhos cheios de harmonia... Segurança... Distância de Ian... Ele me faz sentir segura... Ele é tão bom... Gentil... Errado...

Bruma. Disse eu, por fim, interrompendo aqueles pensamentos.

Sim?

Vou pedir um favor.

O que quiser.

 Sussurrei mentalmente o meu pedido. Ela se assustou, hesitou e então aceitou. Afastei-me de Ian e olhei-o nos olhos. Seus olhos me fitaram de volta, cálidos, a safira e as nuvens, a luz e as sombras em tons azulados.

 —Ian. Eu... Eu tenho que fazer uma coisa.

 Ele hesitou.

 —O quê?

 Baixei os olhos, caindo para minhas mãos apoiadas em seus ombros.

 —Bruma vai assumir o controle do meu corpo. Chegou a minha vez de fechar os olhos.


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