The Surviver escrita por NDeggau


Capítulo 17
Capítulo 16 — Machucando




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Machucando

 FÉ. Ela não me ajuda mais, agora. Fé não sovava pães para mim. Mas eu precisava de alguma coisa, algum passatempo, para me distrair. Estar com as mãos e mente vazia era perigoso, pensamentos demais. Jamie não desistira de me animar – ou pelo menos tentar me animar. Eu tinha acabado de sovar a massa de vinte pãezinhos de centeio. Eu estava lavando as tigelas no rio gelado e tranquilo, Jamie tinha acabado de chegar com outra caixa lotada de pratos. Ele me ajudava a lavar e não deixava o silêncio se aproximar. Ficava tagarelando, falando de Peg, Melanie, Jared e Ursos. Eu sinceramente não lhe dava minha total atenção, apenas me interessei levemente ao ouvir um nome – Bruma. Ele estava falando em como Peg gostava de ter mais uma Alma aculturada. Bruma gostou da definição – aculturada. Minha atenção desviou quando ele voltou a falar de Morcegos – ou Aranhas, eu não sei ao certo. Terminamos e Jamie foi para o quarto, estava exausto. Ele lavrara terras o dia inteiro.

Voltei para a cozinha e deixei a caixa com pratos e tigelas lá. Ian estava ajudando Lily a terminar de guardar alguns alimentos que seriam cozidos naquela noite.

—Oi Ashley.

—Oi Lily, Ian.

Eles sorriram para mim. Lily bocejou e Ian aconselhou-a ir dormir. Ela aceitou de bom grado, e nos deixou sozinhos. Nada bom. Meu coração ficou levemente agitado.

—Quer ajuda? —perguntei.

Ian negou e sorriu. Mordi meu lábio, sem saber direito o que fazer. Eu não tinha o visto desde que ele foi embora do meu quarto, no dia anterior, quando eu estava entorpecida.

—Está melhor? —Perguntou Ian.

—Estou. Jamie, hã... —Engoli em seco.

—Jamie?

—Jamie me ajudou. —Conclui. —Mas você também, obrigada.

  Engoli em seco novamente.

 —Jamie parece gostar de você. —Disse Ian, e mesmo sem ver seu rosto virado para as caixas, eu sabia que ele estava sorrindo. Franzi o cenho.

 —Impossível. Isso é tudo por parte de Bruma.

 Ian riu, a risada dele me arrepiou.

 —Quem disse isso?

 —Eu. —Resmunguei.

 —Ora, Ashley, não existe nenhum motivo que impeça Jamie de gostar de você.

 Minha voz falhou por um instante. O que está acontecendo comigo?

O mesmo que está acontecendo comigo, disse Bruma. Sua voz soou firme na minha cabeça, mas ela logo se acanhou.

 —Isso não é verdade. —Minha voz saiu hesitante, quase um sussurro.

 Ian então estava de frente para mim, os olhos cobaltos ardendo em chamas azuis vários centímetros acima do meu rosto.

 —Ashley, você não é um monstro. Mas parece pensar ser um.

 —Eu machuco todo mundo, Ian. —Minha voz saiu fraca, e respirei fundo para ser mais firme. —Cheguei até a tentar matar meus pais, se não os matei.

 As mãos dele caíram sobre meus ombros.

 —Não matou, não.

 Dos meus lábios escapou um suspiro, e eu não tinha certeza de quem ele pertencia – podia ter sido tanto Bruma quanto eu.

 —A-hã. —Resmunguei.

 —Veja só, Ashley, você deve achar que é...

 —Irresponsável, briguenta, inconsequente, incoerente... —Interrompi-o e fui interrompida em seguida.

 —Não, Ashley.

 Franzi as sobrancelhas.

 —Não?

 —Não. Ashley, você é humana. Todos nós somos assim, alguns menos, alguns mais. Mas, bem, todos nós somos assim.

 —Mas, Ian...

 —Você viveu muito tempo em meio as Almas. —Continuou Ian, ignorando meus protestos. —E todas elas são tão amáveis e bondosas. E você, por ser humana, tem outros sentimentos além da amabilidade. Então, obviamente, se sentia irregular em relação aos outros.

 Abri a boca, mas não encontrei palavras, e a fechei novamente.

 —Mas você está aqui agora. —Sussurrou ele. —Não é o que importa?

 —Ah... Acho que sim. —Incoerente. Era assim que minha cabeça estava agora, girando, tonta. —Sim, acho que sim.

 Ian sorriu, um sorriso largo sob seus lábios pálidos.

 —Boa menina. —Ele sussurrou, sem abandonar o sorriso. —Eu sei que às vezes esses sentimentos podem ser...

 —Agudos. —Completei.

 —Eu ia dizer “intensos”. Mas “agudos” é uma boa definição. Enfim, você não gosta de Almas...

 —Detesto. —Corrigi-o, entre dentes.

 —Certo, detesta Almas, e teve que viver lá tanto tempo...

 Ian fez um sinal negativo com a cabeça, como se achasse a ideia muito ruim.

 —Em minha opinião. —Ele suspirou. —Você ficou entorpecida lá. Talvez a raiva a entorpeceu.

 Baixei meus olhos, meu olhar caiu para abaixo dos ombros de Ian. A raiva me entorpeceu? Eu seria a dor – aquela ardente – que havia o feito?

 —Não sei o que pensar. —Sussurrei. Minha voz estava frágil – como bolha de sabão. E fiquei desacreditada comigo mesma. Eu estava fugindo dos meus próprios conceitos.

 —Ashley. —A voz de Ian soou quase impaciente, ou talvez infeliz comigo. Ou por mim. —Mantenha isso em mente, ok?

 —Claro. —Falei mais alto. —Vou pensar nisso.

 Uma das mãos de Ian  tirou os fiapos dourados da minha franja do meu rosto.

 —Ninguém deveria passar o que você passou.

 Assenti. Minha cabeça ainda balançava para cima e para baixo quando os braços de Ian se fecharam a minha volta. Abraçada. Eu nunca me acostumaria a isso. Ainda me assustava, me fazia querer recuar.

Entorpecida pela raiva, sussurrou Bruma. Desacostumada aos bons sentimentos.

 Pela primeira vez, depois de vários abraços dele, foi a primeira vez que eu me abracei a Ian e fechei os olhos por alguns segundos. Ele me soltou no mesmo instante que fiz o mesmo. Ele sorriu para mim e repeti o gesto o melhor que pude. Sorrisos eram difíceis para mim, agora. Na realidade, não lembro mais do tempo que os sorrisos surgiam facilmente – era um tempo tão distante que parecia surreal. Desacreditada; eu podia adicionar as palavras que me descreviam.

 —Obrigada Ian.

 Minha aventura na cozinha me rendeu mais um caixa de louças para lavar – eu a havia esquecido lá antes. Eu estava terminando de enxaguar a ultima bacia no riacho e pensando no que Ian havia me dito antes quando ouvi os passos. Pensei ser Jamie, acordado, ou Ian. Eu queria que fosse Ian; ou Bruma queria. Ou ambas.

É, com certeza ambas. Ela suspirou, estava triste, assim como eu.

 Ian era a última pessoa do mundo que poderíamos pensar em se apaixonar. Não, isso nunca. Eu via a intensidade que ele amava Peg e era errado – mais que errado – interferir. Se isso significasse um coração quebrado e um bocado de dor, eu não sei se me importaria. Eu não era um monstro, não a esse ponto.

 Os passos se aproximaram cuidadosos. Fiquei de pé no mesmo instante. Fosse Jamie ou Ian, ou qualquer outra pessoa amiga, não tentaria se aproximar furtivamente.

Bruma, eu acho que você terá que fechar os olhos, pensei.

 Ela deu um gemido em resposta.

 Com o máximo de silêncio, andei até a câmara escura, de olho na porta. Eu me ocultei nas sombras, no centro para ajudar na fuga, sem tirar os olhos da porta. Os passos ecoavam mais altos – mais próximos – e minha pulsação estava alta no meu ouvido. Tinha medo de respirar e fazer algum ruído.

 Os passos se aproximaram até uma figura surgir na luz fraca da entrada da caverna.

Cam? – minha voz quase perguntou. Eu cheguei a abrir a boca, mas as palavras sumiram no momento que a vi, pendurada casualmente nos dedos da mão direita grande de Cam: a Glock. Era um revolver ótimo, o tiro era letal na maioria das vezes. Mordi o lábio, nervosa, e tranquei a respiração na garganta. Eu via a silhueta de Cam pela luz, que parecia forte aos meus olhos escondidos no escuro. Ele estava adentrando a caverna, e a Glock sumiu, presa no seu quadril.

 —Ashley? —A voz dele melodiou.

 Arranquei um sapato do pé sem fazer barulho e o joguei do outro lado da câmara de banho. Cam seguiu para lá. Andei em direção a saída, encolhida, tentando parecer menor. Eu não tirava os olhos de Cam, que andava calmamente até onde o ruído do meu sapato tinha ecoado. Ele estava calmo. Calmo demais.

 —Ashley? Onde você está? Por que não me responde?

 Engoli em seco. Joguei meu outro sapato perto de onde eu estava e me agachei. Eu estava certa. Algo ecoou alto na câmara, parecendo estremecer a estrutura. Cam atirou na parede, perto de onde eu joguei meu sapato. Enquanto o tiro ainda ecoava, corri para fora da câmara, virando a curva que levava ao pátio central, aos campos. Mas Cam conseguiu me alcançar.

 Ele segurou meus braços, puxando-me para ele, mas eu chutava meu corpo na direção contrária. Consegui me virar de frente para ele e vi ambas suas mãos vazias. A Glock jazia no chão, esquecida, a alguns metros de nós.

 —Acabaram-se as balas? —Berrei.

 —Acho melhor acabar com isso com minhas próprias mãos. —Ele grunhiu, e me segurou com toda a sua força.

 —Por quê? —Minha voz soou mais baixa, mas ainda parecia um grito. —Por que está fazendo isso?

 —Estou apenas terminando um trabalho começado há dois anos. —Ele respondeu, sua voz tinha um tom pacífico que agora me soava falso. —Sua morte.

 —Não. —Chiei. —Você é humano. Como pode?

 Cam riu. Sua risada soou tão maquiavélica que quase me retraí. Seus olhos verdes escuros caíram pesadamente sobre os meus, seu rosto quase me tocando.

 —Eu tentei, Ashley, me aproximar de você. Eu podia mata-la sem sofrimento. Mas você é teimosa e tão difícil de enganar.

Ele negou com a cabeça, como se desaprovasse. Então ergueu os olhos e sussurrou perigosamente. —Ashley, você não se lembra de mim?

 Abri a boca.

 —O que havia de lembrar?

 Cam não precisou responder. Bruma o fez primeiro. Sua voz estava apavorada, fraca. Frágil – mas não como bolha de sabão. Fraca como um fio.

Ele é Pinhos na Neve.

Quem diabo é Pinhos na Neve? Urrei.

 As palavras dela saíram devagar.

O ajudante de enfermagem da Curandeira Brisa de Verão. Ele fez minha inserção.

Meu queixo caiu.

Por que nunca me disse?

Achei que não era importante.

 —Mas Pinhos na Neve foi embora. —Foram palavras de Bruma, que eu repeti.

 —Nunca ouviu falar de Almas que foram aprisionadas por seus hospedeiros e, quando libertas, não eram mais elas mesmas? Pois saiba que acontece o contrário, também. E eu vou fazer exatamente o que Pinhos na Neve quis quando viu a inocente Alma Bruma adentrar esse corpo rebelde: matar ambas.

 —Por quê? —Minha voz saiu num sussurro. —Não vou morrer. Solte-me!

 Debati-me com mais força, esmurrando seus ombros com os punhos.

 Cam agarrou meu rosto e o puxou para perto do dele, arranhando minhas bochechas com as unhas. Ele aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou devagar.

 —Não é tão ruim. Para uma parasita.

 Comecei a me debater, acertando chutes nas pernas dele, mas Cam apenas projetava o corpo para trás, parecendo não sentir dor. As mãos dele se fecharam no meu pescoço, me sufocando.

 Ele errou. Falhou.

Nunca deveria ter abandonado meu corpo e se concentrado só no meu pescoço.

Sorri com meu triunfo.

Quando Cam soltou meu corpo e segurou meu pescoço, meus braços e pernas ficaram livres. A perna esquerda me firmou no chão, enquanto a direita subia violentamente com o joelho projetado na virilha dele. Ao mesmo tempo, minhas duas mãos agarravam seus ombros.

Cam chiou com a pancada, soltando as mãos do meu pescoço. Quando seu corpo tombou para frente, tentando proteger a área machucada, minhas mãos agarradas em seu ombro o puxaram para frente, e ele caiu totalmente no chão. Tasquei dois chutes em suas costelas, e comecei a correr para longe quando Cam agarrou meu tornozelo. Tombei também, conseguindo abafar a queda com as mãos. Pedrinhas entraram na minha pele, mas não tive tempo de me preocupar com elas. Chutei para me livrar das mãos dele, e, de bônus, acertei o nariz dele com o calcanhar. Ele urrou com a dor e me livrou. Não adiantaria correr. Cam já estava se levantando. Saltei sobre ele, me esquivando de seus braços, e comecei a correr. Em direção à câmara escura. Em direção a Glock.

Escutei o barulho de Cam logo atrás de mim, e faltava poucos cinco metros até a arma. Os dedos de Cam roçaram meus ombros e me joguei no chão, os braços esticados, tentando alcançar o objeto que me salvaria. Ele caiu sobre mim, já apertando meu pescoço.

Agora meu corpo estava preso, e não havia outra saída, a não ser morrer.

ASHLEY! NÃO! Gritou Bruma. Ela não via o que estava acontecendo. Era um estado que eu desconhecia. Ela não via, nem ouvia. Apenas meus pensamentos.

Eu sinto muito não poder nos salvar, sussurrei.

 Eu me debatia, desesperada pela falta de oxigênio. Meus olhos lacrimejavam, minha garganta compressa ardia. Meu corpo berrava, tentando sobreviver.

 Mas não havia saída.

 Até que meus dedos roçaram uma barra metálica. Se não estivesse tão desesperada e com tamanha falta de ar, teria rido. Ergui meu corpo o ultimo centímetro que me sobrava, sentindo as juntas do braço estralar, e meus dedos se fecharam em volta do punho da pistola. Identifiquei o gatilho com os dedos e – de acordo com os filmes de velho oeste do meu pai – ajeitei a Glock na minha mão.

 Minha visão estava me faltando, então dobrei o cotovelo, mirei a arma para cima e puxei o gatilho sem pensar.

 O oxigênio voltou para meus pulmões, e mesmo o ar úmido e mofado da caverna me pareceu o paraíso.

 Um monte flácido tombou ao meu lado e fiquei com medo – muito medo – de olhar para ele. Eu estava apenas adiando o inevitável. Provavelmente outros teriam escutado o tiro. Iriam aparecer. Fechei meus olhos enquanto sentia meu peito arfar.

 Então houve o primeiro grito, seguido por outros.

 —Ashley? Ashley? —Muitas vozes.

 Pensei em falar alguma coisa, mas a voz estava travada na minha garganta. E eu apenas precisava respirar. Calmamente.

Como se não tivesse acabado de matar alguém, disse Bruma, e ambas estremecemos.

 Os outros chegaram, escutei seus passos perto de mim, mas não abri os olhos. Houve arquejos, muitos, ao se deparar com a cena. Eu a imaginava. Onde o tiro teria acertado Cam? Esperava que tivesse sido na cabeça, mas a visão seria muito mais terrível. Passos muito perto de mim, eu temi que os pés me acertassem. Teve o baque surdo e senti mãos tocarem meu pescoço levemente, evitando as partes doloridas.

 —Ela está viva! —Vibrou. Era Doc. Teria reconhecido seus dedos ossudos se meu corpo não estivesse tremendo tanto.

Ela está viva! Ela está viva! Nunca pensei que gostaria tanto de ouvir essas palavras. Ela está viva!

 Abri meus olhos só um pouquinho, e vi apenas pernas e a cintura de Peg – que era menor que todos.

 —Ashley? Consegue me ouvir?

 Assenti levemente, fazendo minha cabeça latejar onde havia batido contra o chão.

 —Abra os olhos. —A voz de Doc soava bondosa ao meu ouvido e eu teria obedecido; se não tivesse sentido o cheiro ferroso de sangue. E não era meu sangue. Estremeci com mais força.

 —Não posso. —sussurrei. —Tenho medo.

 —Doc, ela pode ser movida? —sussurrou uma voz. Estava tão baixa que não consegui identifica-la.

 —Ashley, você consegue mexer todos os seus dedos?

Boa pergunta, pensei.

Consegue? Indagou Bruma sussurrante. Ela voltara.

 Primeiro movi os dedos das mãos, um de cada vez, dobrando-os e alongando-os. Depois foram os dos pés, contraindo todos; estavam bem. Assenti com a cabeça.

 —Sim, Ian, pode movê-la.

Ian! Meu coração tolo se alvoroçou, dificultando minha respiração. Braços ergueram meu corpo e minha cabeça estava apoiada por um par de mãos pequenas; e demorei alguns segundos para assimilar a presença de Peg.

 Ainda consegui ouvir alguns burburinhos antes deles ficarem baixos demais.

 —Rapaz... —Era Jeb. —Que estrago.

 —Não deixe Sharon ver isso. —Sussurrou Doc. —Na realidade, ninguém deveria ver uma coisa dessas.


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