Coração Gelado escrita por Jane Viesseli


Capítulo 25
Fragmentos de Jane




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Jane se levanta da cama lentamente, limpando a poeira de suas roupas com as mãos e se aproximando do baú localizado ao lado da cama. Maximilian já havia saído para cumprir a sua parte na missão a quase uma hora, deixando apenas o aroma de sua camuflagem para trás.

A vampira respira aquele cheiro profundamente, sacudindo levemente a cabeça para se livrar do torpor que tentava se instalar ali, buscando se concentrar no objeto a sua frente. Ela levanta a tampa do baú com um dedo, não encontrando mais do que cartolas, sapatos, bengalas de luxo, vestidos e jalecos antigos em seu interior. Jane se lembrava vagamente daquela moda, contudo, nenhuma peça em especial chamou sua atenção.

Na cômoda perto da janela ela encontrou mais peças de roupas antigas, além de alguns brinquedos infantis que provavelmente pertenceram a versão infantil de Maximilian. Haviam livros abandonados nas prateleiras perto da porta e um pequeno vaso sobre o criado-mudo, com algo que um dia fora um bonsai em seu interior.

Ela olha ao redor, reparando que o papel de parede era moderno e estiloso, apesar das portas e janelas possuírem uma arquitetura antiga e antiquada. Aquela decoração era difícil de entender e, em vários momentos, ela se perguntou se existia algum tipo de lógica em tudo aquilo ou se o camaleão apenas jogou as coisas a esmo, torcendo para combinarem.

Na sequência, a vampira se aproxima de um armário com designer moderno, abrindo suas portas com ambas as mãos e encontrando dezenas de materiais de desenho em seu interior. Nas prateleiras de cima haviam latas e mais latas de lápis de cores, gizes de cera e pincéis de vários tamanhos, além de um estojo com apontadores e borrachas que ela nem sabia se ainda prestavam. As prateleiras do meio continham potes de tintas de cores variadas, todas já secas pelo tempo em que ficaram ali, repousando. E, ao olhar para as prateleiras inferiores, encontrou duas grandes pastas de couro.

Algo cutucou o fundo de sua mente com relação aquilo.

Jane apanha ambas as pastas e retorna para a cama, arrancando a colcha empoeirada com apenas um movimento e a lançando sobre o baú, sentando-se diretamente sobre o lençol. Seus olhos vermelhos e atentos analisam as pastas, percebendo que uma estava lacrada com uma amarração de couro e a outra não, o que poderia indicar que uma delas já não era mexida há bastante tempo. Com dedos ágeis ela desfaz o nó da pasta lacrada, abrindo-a com certa ansiedade e retirando todo o seu conteúdo de uma só vez, deparando-se com dezenas de desenhos e pinturas feitas à mão.

A vampira salta da cama e se aproxima da janela do quarto, abrindo-a para que a luz do dia pudesse penetrar no cômodo e lhe dar uma visão mais clara de todas aquelas obras. A brisa da manhã entra no recinto assim que a janela se abre e os raios solares acertam o seu rosto como se lhe dessem “bom-dia” depois de muito tempo sem vê-la, fazendo sua pele branca cintilar como um diamante.

Ela olha ao redor para se certificar de que ninguém estava vendo aquilo e retorna para a cama, percebendo logo de cara que aqueles desenhos eram tão antigos quanto ela. Em sua maioria, eles foram feitos em papéis já amarelados com o tempo, e todos continham o nome de Maximilian no rodapé, escrito com a letra característica de uma criança.

Haviam maçãs, árvores e grotescos cachorros desenhados ali, como se, na época em que foram projetados, ele ainda estivesse aprendendo e aperfeiçoando o seu traço. E conforme ia-os passando, Jane percebia que os traços ficavam mais refinados e perfeitos, conforme Maximilian crescia e se tornava mais experiente. Ele tinha muito talento para a arte, pois desenhos de casas, jardins e um bebedouro foram registrados detalhadamente em desenho, apesar de não terem sido coloridos.

A vampira se detém no desenho do bebedouro por alguns minutos, tendo a ligeira impressão de já tê-lo visto antes, apesar de considerar que uma ou outra coisa deveria ser diferente. Ela se concentra em suas formas por alguns segundos, imaginando a pequena Jane em frente a ele ou bebendo de sua água, mas desiste na sequência, ao perceber que isso não lhe trazia memória alguma.

E assim que chegou ao último desenho, seus olhos se fixaram em um impressionante desenho de uma mulher nua. A assinatura de Maximilian, àquela altura, já estava fluída e firme, o que a levava a acreditar que ele já estava maduro quando o fizera. A figura feminina não tinha o rosto exposto, como se o artista quisesse unicamente transformar as suas curvas em arte, e não a sua identidade. Contudo, como reparou logo em seguida, a obra estava inacabada, o que a levou a crer que aquela tenha sido um de seus últimos trabalhos enquanto ainda era um humano e que ele nunca voltou para terminá-la.

Jane reuni todos os desenhos em um montante, colocando sobre a pasta em que estavam armazenadas e apanhando o segundo objeto de couro. A pasta estava aberta e não possuía muitas folhas, mas, ainda assim, ela queria vê-los.

A vampira puxa o conjunto de desenhos para fora, deparando-se, logo de cara, com uma folha inteira repleta de olhos. Os primeiros eram incertos, como se o artista não tivesse certeza de como eles eram, mas acertando em sua forma no decorrer da folha, culminando em um último e perfeito par de olhos coloridos de azul, que fez o corpo de Jane entorpecer por completo.

Ela conhecia aqueles olhos, só não reconhecia aquela cor.

— São os meus olhos! – sussurra para si mesma, sentindo a voz sair engasgada devido a sua perplexidade. Eram aqueles olhos que a fitavam todas as vezes que se colocava frente ao seu espelho, em Volterra.

E ali, diante daquele desenho, a vampira percebeu que Maximilian tinha tentado desenhá-la. Aquela pasta não continha paisagens, animais ou outras pessoas, mas estava repleto de fragmentos dela, de tentativas de ilustrá-la, como se o camaleão tivesse tentado se lembrar de como ela era.

— Ele já deveria estar transformado quando começou a fazer isso – conclui em pensamento, constatando que as lembranças dele ficaram enevoadas com a transformação e que, por isso, ele não conseguia se lembrar de suas feições com nitidez.

Jane passa para o desenho seguinte e depois para o outro, encontrando iguais tentativas de se lembrar de seus traços, como eram os seus lábios, o desenho de suas sobrancelhas ou o formato exato de seu nariz. Todas as folhas continham a assinatura de Maximilian e hora eram feitos a lápis, hora à tinta, hora em preto e branco, e hora coloridos.

Se a vampira tivesse que respirar para sobreviver, com certeza se esqueceria de como fazê-lo, tamanho era o seu choque com tudo o que estava descobrindo sobre o camaleão através daquelas pastas. Por quanto tempo ele ficou naquele jogo de tentar se lembrar dela? Nossa, a ideia de que ele pensara nela dezenas de vezes após a sua transformação, de que Maximilian a levou consigo da vida mortal para a imortal, era algo estranho demais para se ter na cabeça.

Ela muda para a folha seguinte, encontrando um desenho completo e exato de seu rosto, um retrato tão perfeito que era impossível dizer que não era ela. A ilustração estava inteiramente em preto e branco, com exceção dos olhos, que foram pintados de vermelho e pareciam tão intensos quanto os olhos azuis que vira a princípio.

— A folha não está amarelada como as outras – percebe rapidamente, constatando que, em algum momento de sua vida com Andrômeda, ele a viu, a reconheceu, e registrou novamente cada mínimo detalhe de sua aparência.

Um arrepio percorre sua coluna ao pensar na possibilidade. Quando acontecera? Como? Onde? Nossa, quantas perguntas não respondidas ela tinha agora e quantas indagações um único desenho levantava a respeito dele. Aquilo estava mais intrigante do que um livro de terror.

— O que está fazendo? – pergunta Maximilian de repente, fazendo a vampira pular de susto devido a sua chega inesperada e excesso de concentração em todos aqueles desenhos.

O camaleão arregala os olhos e solta um palavrão ao perceber as ilustrações sobre a cama, atirando-se sobre eles e os juntando rapidamente, sentindo-se inteiramente envergonhado por Jane ver algo que julgava ser tão particular.

— Não era pra você ter visto isso – explica-se em desespero, a medida que ia juntando as folhas e colocando-as de volta em suas devidas pastas. Seus desenhos eram parte de suas lembranças, parte de quem ele fora, eram como um tesouro que só tinha valor para ele e que não poderia ser remexido por mais ninguém.

Maximilian estende o braço para apanhar o retrato das mãos de Jane, sentindo seu pulso ser segurado por ela, a medida que sua outra mão afastava a folha de papel de seu alcance.

— Esse é meu! – alerta ela.

— Não, Jane, ele me pertence – rebate com insistência, não querendo abrir mão do único desenho que tinha de sua amada.

— Faça outro pra você! Esse agora é meu – conclui, soltando o pulso do vampiro e analisando novamente a imagem desenhada naquela ínfima folha branca. – Nunca tive um retrato antes, quero levar este comigo para Volterra. – confessa, realmente apreciando a ideia de possuir um retrato somente dela e achando a arte do camaleão realmente esplêndida. – Por que não terminou o desenho da mulher nua? – pergunta na sequência, ignorando completamente o fato de que Maximilian estava envergonhado com a invasão de sua privacidade.

— É particular, Jane. Tudo isso é particular! – esbraveja, fechando as pastas de couro de qualquer jeito e as jogando de volta no armário, saindo do cômodo logo em seguida.

A vampira ignora seu súbito acesso de raiva, contemplando o desenho de seu rosto mais uma vez antes de depositá-lo sobre a cama, junto ao seu manto e a corrente com o brasão do clã. Ela deixa o quarto calma e silenciosamente, dirigindo-se para a sala. Maximilian estava sentado numa poltrona, de braços cruzados como uma criança fazendo birra, e havia várias sacolas de lojas locais sobre a mesa de centro.

Jane se senta na poltrona do outro lado da mesa, cruzando as pernas e ficando frente a frente com o camaleão. O vampiro ergue os olhos para ela no segundo seguinte, sentindo que, se ainda estivesse de posse de seus poderes, ela o machucaria naquele exato momento devido a sua petulância.

— Muito bem, Maximilian! – começa ela, com a voz forte e autoritária da líder da Guarda Volturi, a voz que todos os vampiros que cruzaram seu caminho aprenderam a temer. – Eu sou a líder dessa missão e não gosto de ficar no escuro. Quando eu fizer uma pergunta, espero ser respondida, independente de quão tola ela pareça ser. Conhecê-lo me dará vantagens sobre Andrômeda, por isso, comece a falar agora mesmo: por que não terminou o retrato da mulher nua?

Maximilian aperta os lábios para conter um protesto, bufando logo em seguida e se ajeitando na poltrona, permanecendo calado por quase um minuto inteiro para se certificar de que estava realmente calmo.

— Eu não me lembro mais dela. Aquele desenho começou a ser feito quando eu ainda era humano. Depois que me transformei, demorei para ter acesso as minhas coisas novamente e não consegui mais me lembrar como ela era... – admite, confirmando toda a teoria que Jane elaborara ao redor do retrato.

— Você está com raiva de mim?

— Sim – resmunga.

— Isso quer dizer que aquela história sobre me amar não é mais verdade? – questiona subitamente, apenas para confrontá-lo, fazendo a raiva do vampiro se acalmar no mesmo instante.

— Do que está falando? – questiona perplexo. – Eu fiquei irritado apenas porque você estava mexendo em algo bastante pessoal. Nada disso anula o que sinto por você… Se nem a imortalidade foi capaz de fazê-lo, por que um pequeno momento de irritação o faria? Eu amo você, Jane.

— Ok! Agora que você está respondendo a todas as minhas perguntas, estamos começando a nos entender – conclui Jane, pousando as mãos sobre a coxa e esboçando um sorriso vitorioso de quem adorava permanecer no controle, apenas para disfarçar o quanto aquela declaração a deixava constrangida e sem reação. – O que são estas coisas? – Aponta as sacolas com o olhar.

— Roupas novas, para nós dois. Os humanos já sabem que estamos aqui e precisaremos nos enturmar se não quisermos chamar a atenção. Além disso, já estamos no inverno e a neve começará a cair logo, você poderá sair livremente quando o tempo estiver turvo…

— Bom – admite, apreciando a iniciativa e gostando da estratégia, intimamente esperando que nenhuma de suas roupas fosse da cor verde. – Deixamos o castelo sem um banquete, portanto, caçaremos esta noite… Esteja pronto! – ordena, levantando-se e retornando para o quarto, para continuar a mexer em todas àquelas velharias assim que o camaleão se distraísse.


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Notas finais do capítulo

Dedico o capítulo de hoje para @skammoon, pela recomendação maravilhosa que fez para a fanfic. Obrigada pelo carinho e pela consideração em deixar uma recomendação ★, eu fiquei muito feliz com o que escreveu.
Obrigada de verdade :,)



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