Obrigado e Volte Sempre escrita por Loly Vieira


Capítulo 6
Não se apavore, conte algodões doces.




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–Mel? – Até o momento eu estava absorta a conversa deles. Ocupada demais escrevendo uma mensagem pra minha irmã, avisando que havia raptado a filha dela por um período curto.

–Hm? – A garota também estava concentrada em fazer uma carinha de ketchup no seu amontoado de batatas fritas. Nem sei como o garçom tinha arranjado ketchup na cozinha, restaurantes assim não pareciam nem ter.

–O que você acha de viajar nessas férias? – Eu parei de dedilhar o celular. Prendi a respiração. Ele não estaria jogando tão baixo... Estaria?

Ajeitei-me na cadeira, desconfortável demais ao som de música clássica. Esse deveria ser um dos restaurantes mais chiques que eu estive na vida. O que era muito estranho, porque eu nunca me imaginei entrando em nenhum deles, e se já me imaginei, com certeza não era de calça jeans, all star surrado e uma blusa branca simplezinha.

–Viajar? – Repetiu. A voz mais animada. – Eu adoro viajar.

–O que acha de viajar com o Sam? – Ele estava jogando sujo. Imundamente sujo. Olhei desesperadamente para o garoto, mas ele estava ocupado demais brincando com a comida de seu prato para notar meu pânico. – Gosta de animais também? Você pode até ganhar algum filhote, se quiser.

–Sério? – Seus olhos brilharam num estado de empolgação tremendo.

–E sua tia ainda poderia vir com a gente.

–Ai. Meu. Deus! – Ela nem notou quando apertou com força o ketchup, tamanha a empolgação e achou graça quando ele respingou todo em mim.

O ketchup pode até ter se camuflado no meu rosto de tanto que eu corei.

Minha blusa branca ficou num estado pós-UFC tão grande que eu quase chorei.

–Obrigada, Jeremy. Era tudo que eu precisava para colorir meu dia. – Não poupei no tom sarcástico. – Quer botar maionese, mostarda ou já acha está bom?

Uma mulher engraçadinha da outra mesa nos estendeu um azeite e sorriu.

–Aqui não tem maionese ou mostarda, querida.

Ela tinha as unhas muito bem pintadas de vermelho vivo e seu vestido combinava com o restaurante. Sofisticado.

E os quatro (até o quieto do Sam) explodiram em gargalhadas.

Eu quase a apontei o dedo do meio, mas trancafiei esse desejo e me levantei ruidosamente da mesa. O garçom vestido de penguin reprovou meu ato com uma olhadela.

Passei reto até o banheiro feminino, praguejando ao vento.

Ele estava querendo me deixar encurralada. E estava conseguindo. Eu odiava aquele babaca. Idiota. Imbecil. Infantil. E...

–Nossa! – Uma velhinha parou no para peito da porta e me encarou assustada.

Sorri amarelo.

–Acidente com ketchup. – Esclareci antes que ela pensasse que eu era uma procurada da lei. Sei lá né? Com a minha sorte... Eu poderia acabar meu dia vendo o sol quadrado.

Ela não se fez satisfeita e saiu a passinhos rápidos. Bufei irritada.

–Vai embora mesmo antes que eu atire em você também e depois esconda seu corpo na mata.

Pude ouvir um gritinho abafado atrás de mim. Girei nos calcanhares, com as mãos ainda avermelhadas do ketchup. Uma garotinha de uns 8 anos me encarava com a boca aberta e segurando sua revistinha de pintar ainda dentro do box do banheiro.

Ótimo.

–Não conte para sua mãe, ok? Eu só estava brincando.

E ela fechou a porta, escondendo-se do bicho papão.

Não tinha conseguido dar um jeito na minha blusa, agora estava um vermelho muito mais artístico na blusa. Todo espalhado.

Eu ainda resmungava para o vento quando eu voltei a mesa. Mas não tinha mais ninguém ali. Nem criança, nem marmanjo e nem minha batata frita que eu tinha guardado no prato pro final, com o maior carinho.

Então eu ouvi. Aquela gargalhada inconfundível.

Lá estava Jeremy. Pronto para mais um ataque. E como ironia do destino, seu próximo alvo era a garota que tinha sugestionado me jogar azeite.

Aproximei-me de mau humor. Uma carranca tão grande que eles pararam de conversar.

–Podemos ir embora agora? – Meus braços estavam cruzados, eu tentava inutilmente esconder a arte moderna que eu tinha adquirido na blusa.

–Logo depois de eu dar meu número. – Ela sorriu para mim. Acredita? Aquelazinha ainda teve a audácia de sorrir para mim com aqueles dentes clareados recentemente no dentista.

–Seu número? – Fingi um engasgo surpreso. Olhei para Jeff de cenho franzido. – Você não contou a ela? Deixou-a se iludir, Jeff? – Balancei a cabeça em negativa. – Querida, ele é gay.

Sua mão gigante agarrou meu punho com força.

–Talvez ele queira seu número para dormir com seu irmão. – Avisei em tom lamentoso. Jeff já começava a me puxar para a direção contrária com uma cara nada boa. – Tenha cuidado, hein? Quem sabe até seu pai.

–Alma! Para! – Ele me sacudia pelos ombros. Distante o suficiente para que ela não conseguisse mais nos ouvir. – Porque diabos você fez isso?

Ele estava tão vermelho quanto minha camisa e eu gostei disso.

–Onde estão as crianças? – Ignorei sua pergunta.

–Estão na porra do parquinho.

–E cadê minha batata frita que eu tinha deixado no prato?

–O quê? – Ele ergueu uma sobrancelha.

–Minha batata frita que eu tive que pedi no cardápio infantil. Eu tinha guardado pro final.

Soltou-me. Bagunçou os cabelos a dois passos de distância e só então voltou a me olhar.

–Eu estou começando a achar que você não é normal.

–Você pediu a conta e se mandou para dar em cima de uma garota que nem devia ter 19 anos enquanto eu estava tentando tirar uma mancha de assassinato da minha blusa! – Me defendi. – E está tentando fazer a cabeça de uma criança de 5 anos. Meu bem, acho que você também não bate muito bem da cabeça.

Ele se aproximou de mim novamente, deu os dois malditos passos até que eu o olhasse naqueles malditos olhos verdes acastanhados. Ridiculamente lindos.

–Poderia até ser pedofilia, sabia?

Ele resmungou irritadiço. Ui, a fera tava solta!

–Eu te trouxe num dos melhores restaurantes da cidade, não deixei você pagar e te aguentei durante todo esse tempo. Você já se deu conta que é difícil de ser agradada?

Se antes meu rosto fervia de vergonha, agora ele fervia de raiva.

–Se você pensa que vai conseguir um ‘sim’ me trazendo a restaurantes que uma água deve custar meu salário, está muito enganado. – Eu apontava o dedo indicador no seu peito musculoso. – Era bem melhor que tivesse ido a uma lanchonete onde tenham fritas em cardápios normais!

E saí dali batendo o pé. Deixando Jeff, os garçons e vários clientes boquiabertos.

Ótimo.

Pude até ver a garotinha do banheiro apontando para mim quando eu saí daquele inferno.

Encontrei minha sobrinha descendo a escorregadeira com os braços erguidos e Sam sentado no banquinho ao lado, olhando-a enquanto ria.

–Melaine! – Gritei mesmo. Mandando a educação que me sobrava para a puta que a pariu. – Vamos embora. Agora!

–Samuel. – E lá vinha o capeta atrás.

Minha sobrinha olhou para mim e depois para minha blusa.

–Ficou linda, tia Al.

Puxei o ar pela boca e tentei contar dez algodões doces mentalmente. Algodão doce me acalmava.

–Mel, só dê tchau pro Sam, tá legal?

–Mas a gente vai embora como?

–De ônibus, táxi, jegue, carrinho de role mã ou a pé. Qualquer coisa. – Já começava a pular a cerquinha do parquinho de criança para resgatar minha sobrinha daquela perdição.

Jeff estalou os lábios atrás de mim.

Um algodão doce. Dois algodões doces.

–Eu levo vocês para casa.

Três algodões doces.

–Vamos logo, Mel. – Tentava a tirar de um cavalinho preso a uma mola, mas a pestinha prendinha os pesinhos ali. – Coopera comigo...

–A gente pode ir com o tio Jeff? Papai não gosta que eu ande de ônibus.

–Claro que não. – Praguejei mais uma vez.

–Para de pensar só em si, Alma. Eu levo vocês.

Babaca. Idiota. Cachorro.

Quatro algodões doces.

–Vem tia Al – Agora minha sobrinha me puxava.

Ainda batia o pé quando chegamos ao carro. Pedi para sentar entre as crianças no banco de carro. E assim fomos todos os três no banco de trás. Eu me recusava a sentar com aquele homem ao meu lado!

Sam estava concentrado brincando num joguinho matemático no celular do pai, Mel tinha parado de tagarelar e estava com a cabeça apoiada no meu ombro, prestes a cair num cochilo e eu estava ali no meio. Quieta o suficiente para tentar me faze de invisível enquanto no carro tocava uma música eletrônica.

Eu já tinha falado para ele o endereço da casa da Mel e essa foi a primeira parada.

Era um bairro meio barulhento, com um salão de festa que vez ou outra bombava uma festa de gente rica. Hoje era dia de festa, pelo visto. As luzes coloridas quase me cegaram sem nem mesmo que passássemos pela frente do salão.

Nós paramos a casa da minha irmã, de dois andares e cercas brancas. Abri a porta do carro, equilibrando a loirinha nos meus braços, tentei sair.

Mas antes que eu movesse um músculo a mais, uma figura apareceu ao meu lado.

–Eu posso levar ela. – Agora ele estava tentando se desculpar por ser um quadrúpede?

–Não, valeu. Não quero que ela pegue um câncer pulmonar.

Ele fez uma careta ofendida.

–Eu bem que estou precisando de um cigarro, mas não peguei em um a tarde inteira. – Defendeu-se.

–Grande coisa. Fale isso pra os CA, cigarrentos anônimos, e não pra mim.

Ele bufou irritadinho.

–Eu pego ela e você pega a pasta dela na mala, pode ser? – Pelo visto ele também estava se controlando para não me dar o dedo do meio e me jogar pra fora do carro.

Eu não podia me virar sozinha, realmente Mel estava ficando pesada demais para mim, uma verdadeira dor nas costas. E foi por isso, e somente por isso, que eu assenti com a cabeça e ele pegou-a dos meus braços. Rapidamente a garota se aconchegou no novo colo, pousando a cabeça na curvatura do pescoço dele e os braços ao redor do seu pescoço. Parecia bastante confortável ali.

Recuou alguns passos para que eu saísse do carro e eu o fiz. Batendo a porta do passageiro por ato involuntário, Sam nem piscou os olhos lá dentro, Mel resmungou alguma coisa inaudível e voltou a dormir, Jeff me lançou um olhar torto. Como se desculpasse com seu carro por ter uma troglodita com ele.

Abri o porta malas de seu carro e retirei a mochila de rodinhas da minha sobrinha.

Fechando-o delicadamente dessa vez.

Nós nem precisamos tocar a campainha, a babá da Mel apareceu na porta sorrindo para nós, tentando ignorar a monstruosa mancha vermelha da minha blusa. Agradeci-a mentalmente.

E mais uma vez a loirinha trocou de colo. Gil, a mulher baixinha, mas de coração enorme, a segurou meio desajeitadamente.

–Ela está ficando grande. – Sorriu para mim. E eu balancei a cabeça.

–Assustadoramente.

–A Sra. Agatha não se encontra, mas gostaria de esperar?

Balancei cabeça, já recuando alguns passos depois de ter colocado a pasta de rodinhas dentro de casa. Jeff ainda estava de meu lado, com as mãos nos bolsos.

–Só vim deixá-la mesmo, Gil. Estou louca para chegar em casa. Até mais.

E ela fechou a porta enquanto caminhávamos de volta ao carro.

–Olha... – Porque ele tinha que interromper a caminhada até o carro? Nós estávamos indo muito bem calados, não estávamos? – Me desculpe pelo o que eu falei, tá legal?

Olhei para dentro do carro, Sam poderia estar gritando para que voltássemos mais rápido, que queria voltar para casa, mas não. Ele estava bem confortável ainda brincando no joguinho Einstein.

Suspirei.

–Pensei que todas as mulheres gostassem de algo mais... Requintado. – Ele ainda tagarelava sobre como mulheres normais gostariam daquele restaurante quando eu o vi.

Vestindo o terno que seu pai tinha o dado para o primeiro emprego. Com os cabelos castanhos claros penteados para o lado e o sapato social que eu o havia dado no último aniversário. De mãos dadas com uma mulher de vestido de alcinhas esvoaçantes.

Eu nem tinha falado a famosa frase ‘nem dava para piorar’, mas vejam bem: tinha piorado.

Brian, meu ex-namorado, estava caminhando pela calçada, na nossa direção, com uma mulher de cabelos curtos, com mega cara de culta e... Como é que Jeff tinha acabado de falar, mesmo? Requintada! É, mó cara de requintada.

Arregalei os olhos.

A cena seguinte foi quase como câmera lenta.

Por cima dos ombros de Jeff, com minhas pontas de pé, eu pude ver que ele estava prestes a olhar pra mim. Prendi a respiração.

Em que número eu estava dos algodões doces?

Eu não devo ter pensado no ato seguinte, provavelmente, foi um ato reflexo, daqueles que os nervos não têm nem tempo de transmitir os impulsos até o encéfalo, foi com a medula espinal mesmo.

Com o último resquício de dignidade que cabia neste corpo, eu ordenei ao homem a dois passos de distância:

–Jeff, me beija.

–O quê? – Ele tentou recuar, mas eu apoiei as mãos nos seus ombros. Brian tinha diminuído o passo a poucos metros de nós.

–Anda logo! Me beija!

Puxei sua nuca, estava na ponta dos pés e ele ainda teve que se inclinar até me alcançar, e dei graças a Deus a três coisas:

1-Sam estava concentrado demais brincando no celular. 2-Mel já estava no décimo quarto cochilo. 3-Jeff correspondeu ao meu beijo.


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Notas finais do capítulo

E olha só no que deu. E imagina só no que pode dá. Estou fazendo meu cachorro me olhar com aquela cara de abandonado na mudança, esperando que eu finalmente saia da poltrona e vá pegar sua coleira, para postar esse capítulo.