Obrigado e Volte Sempre escrita por Loly Vieira


Capítulo 31
Morango com nutella.


Notas iniciais do capítulo

"Bem que eu queria te ver
Mas não posso
Porque meus olhos estão encharcados
Eu não consigo te ver
Por enquanto

Eu não queria partir
Mas você me convenceu"
Selvagens à procura da lei - Despedida
(adoro essa música, não-adoro os nomes dos meus capítulos U.U)



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–Eu terei que ir embora mais cedo.

–Eu sei. Meu pai me contou.

Samuel estava com esse olhar tristonho que partia meu coração em pelo menos cinco pedaços diferentes. Tão fácil como cortar um queijo suíço (e eu nunca cortei um queijo suíço).

Beijei o topo da sua cabeça com ternura, mas ele se encolheu, não aprovando esse contato. Disfarcei minha decepção com um sorriso completamente torto de conhecimento de causa. Muito contato nunca tinha sido seu forte.

Seus olhos não encontraram os meus nem por um momento.

–Você e o papai não estão mais juntos?

Dá para terminar algo que nunca começou?

Limpei a garganta. Agachei-me até sua altura, agradecendo a Marta mentalmente por ter nos deixados sozinhos antes de eu ir embora e aos inúmeros analgésicos que faziam seu efeito pelo meu corpo, deixando-me quase dormente. Arrumei os fios bagunçados de seu cabelo cacheado, deixando-os fora da sua linha de visão. Sempre com os cabelos precisando de um corte.

–Juntos ou não, isso não afeta nós dois.

Balbuciou algo baixinho, para si mesmo. Recuou alguns passos de meus braços fervorosos. Suas mãos passaram pelos cabelos desajeitadamente. Um movimento tão igual ao pai que fez meu coração perder uma batida.

–Mas... – Pausa. – O pai gosta tanto de você...

Balançou a cabeça. Calou-se.

–Eu também gosto do seu pai, Pequeno Newton.

–Gosta?

–Claro. – Mais que o devido. – Mas gostar nem sempre é suficiente.

Mais uma longa pausa.

–Quer saber de uma coisa? – Levantei dos meus joelhos, quase perdendo o tropeçando em meus pés, e procurei com os olhos uma caneta e um pedaço de papel. Rabisquei em uma caderneta perdida no fundo da gaveta e rasguei a folha.

–Esse é o número do meu celular e o de baixo o de lá de casa. Você pode me ligar sempre que quiser.

Pegou o papel meio desconfiado.

–Eu sei que você é bom em decorar números. - Puxei papo.

Balançou a cabeça, não engolindo a isca, ou talvez simplesmente não querendo pegá-la.

–Ligue sempre que quiser. Precisando ou não.

Balançou a cabeça novamente.

–Nós ainda somos amigos, certo? - Conferi.

Por um momento temi sua resposta. Eu não estava pronta para duas grandes perdas na minha vida assim. E o Sam... Eu não sei, havia esse laço que havia sido construído com ele. Um laço cego, difícil de ser desatado.

Só balançou a cabeça mais uma vez.

–Estou falando sério, Sam. Por favor ligue.

–Tudo bem.

–Eu... – Respirei fundo. Não queria partir tão cedo. – Eu tenho que ir. Ligarei mais tarde, de qualquer jeito, para saber como está.

Descartei o desejo de mais uma vez beijá-lo na cabeça, sabendo que iria se afastar assim que o fizesse, e caminhei em direção a porta como se estivesse pronta para a execução na guilhotina.

–Tia Al? – Chamou-me baixinho, hesitante.

–Hm? – Girei nos calcanhares, olhos atentos.

–Minha fotografia ainda vai estar em seu corredor? – Perguntou-me timidamente.

Um meio sorriso bobo escapou dos meus lábios. Meus olhos lacrimejaram e eu nem tentei conter a onda de lágrimas.

–É claro, querido.

Pensou por um momento.

–Você sempre será bem vido para as panquecas também.

Um passo e então outro. Seus braços rodearam meu quadril em um abraço apertado.

–Eu disse para o papai não fazer nada inescrupuloso com você. Ele não tinha a intenção de te machucar.

Disfarcei um soluço, mas não consegui com romper com o fluxo de lágrimas que escorria pelo meu rosto. Passando as pontas dos dedos pelos fios emaranhados da sua cabeça, desejando que aquele momento durasse só mais um pouquinho, que ele não precisasse me soltar tão cedo. Eu tinha essa vontade louca, quase beirando a insana, de defende-lo de Deus e o mundo e debaixo dos meus braços eu teria a certeza que ele estaria bem.

–Está tudo bem, Pequeno Newton.

Abraçou-me mais apertado.

–Você poderia ficar para sempre com a gente.

–Para sempre é muito tempo.

–Eu sei disso. - Aos poucos seus braços foram perdendo força.

Quando as coisas tinham se tornado tão difíceis? Suspirei ao menos uma dezena de vezes até conseguir me recuperar.

–Nós todos ainda somos amigos, Sam. Não faça essa cara de cientista fracassado para mim. - Fiz uma careta triste em resposta. - Por favor. - Seus olhos espicharam timidamente na minha direção. Deixei escapar um sorriso vitorioso, curvando-me até ele, as pontas dos meus dedos escorregaram pelo seu abdômen. Eu sempre brincava assim com a Mel quando ela estava toda tristonha, porque ela morria de cócegas e soltavam gritinhos todas às vezes. Eu não esperava que Sam desse uma gargalhada também.

–Nãão! - Jogou os braços na minha direção, tentando parar-me.

–Isso é uma risada?!

Sua gargalhada encheu o quarto e transbordou pelas brechas da porta. Exatamente como um lampião em um quarto escuro.

–Não, tia Al! Sááái!

Em um último fôlego, sua mão firme puxou a maçaneta e habilmente ele fugiu do quarto, ainda aos risos.

Fiquei para trás observando a porta entreaberta como quem olha para um guarda-roupa e vê Narnia do outro lado. Agachei-me bem ali, pernas esticadas e mãos sem saberem para onde ir.

Imaginei o que minha mãe teria me dito se eu tivesse contado minha pequena aventura a ela. Ficaria surpresa, certamente. Eu costuma sempre jogar no que era certo. Media cada passo de minha vida com uma cautela fria e às vezes, somente e poucas vezes, deixava que minha impulsividade aparecesse sem medida alguma. Ela teria aceitado Jeff ao decorrer do tempo, permiti-me imaginar, caído de amores por Sam e finalmente teria me olhado com aqueles olhos que só minha mãe tinha. "É sua família, Alma, cuide bem dela".

Foi isso que ela disse para Agatha, acariciando sua barriga já relevante, no dia do seu casamento enquanto eu bebia um copo de vodca.

Eu e esse meu dedo podre. Muito provavelmente eu acabaria sozinha em meu apartamento velho com meu cachorro, assistindo a séries de baixa audiência.

–Ele irá sentir saudades. O Sam. - Até mesmo a suavidade da voz não conseguiu evitar meu susto. - Desculpe, não queria te assustar.

–Tudo bem. - Balancei a cabeça e estiquei um meio sorriso. - Muito provavelmente ele não sentirá tanta saudades quanto eu.

Apoiada no parapeito da porta, Maia enrolou no dedo uma mecha do longo cabelo castanho, pensativa.

–Posso me sentar ao seu lado?

Sorri e dei leves batidinhas ao meu lado.

–Sinta-se a vontade. Não parece, mas é confortável.

Maia acomodou-se ao meu lado, com uma graciosidade felina semelhante ao seu primo, Marco. Deus, como a vida poderia ser desproporcional às vezes, eu tinha a graciosidade de um rinoceronte.

–Seu rosto está bem melhor. - Falou baixinho.- Ainda dói?

Neguei com a cabeça, havia consumindo ao menos três comprimidos para as dores no maxilar e costas. Não doeria por algum tempo.

Ficamos assim por algum tempo, ela abraçando com força as pernas flexionadas, os nós dos seus dedos ficando brancos.

–Maia... - Seus olhos viraram na minha direção. - Espero que não se incomode se eu perguntar...

Seus ombros ficaram tensos imediatamente.

–Só queria saber que outro bicho gostaria de ser.

E então seu pequeno corpo sacudiu em uma risadinha.

–Eu acho que eu seria um pássaro.

–Que tipo de pássaro?

–Não sei.

–Você me lembra um beija-flor. - Sorriu-me. - Mas acho que você seria uma águia.

Não respondeu de imediato.

–E porque você está me dizendo isso?

–Porque eu acho que você deve saber o quão forte você é. - Seu olhar vacilou. - Quão bonita, inteligente e forte.

Passaram-se dois minutos, talvez cinco.

–E que bicho você seria?

–Acho que um Coala... Vi em um documentário com o Sam que eles podem dormir 18 horas por dia.

Braços finos rodearam-me em seguida. Firme, forte.

–Eu posso entender porque você está indo, mas não consigo encontrar um motivo para meu irmão não estar te acompanhando.

–Nós... - Respirei fundo. Eu podia fazer isso. - Achamos que será melhor assim, ele é mais útil aqui do que comigo.

– Jerry parece, mas não é idiota. Não tanto assim. Eu sei que vocês vão se resolver.

Forcei um sorriso em sua direção e dediquei minha autenticidade nele.

–Alma? - Toques crus na porta de madeira. Os olhos maternos de Marta nos fitou ali por um curto momento. - Chegou a hora.

Chegou a hora.

Assenti preguiçosamente e me levantei com uma coragem precária.

Desci as escadas tentando decorar cada pedacinho daquela casa na memória. Decorar cada boa recordação que aqueles tempos me trouxeram. Minhas malas já estavam alinhadas próximas à porta e minha amiga loira já estava posicionada ali devorando um prato de biscoitos salgado.

–Vamos logo embora antes que eu engorde mais cinco quilos. - Resmungou ela entre uma mastigada e outra.

Engoli em seco. Tudo bem. Não era como se meu coração tivesse pronto para pedir independência do meu corpo e sair para não mais voltar. Não era esse o caso. Era talvez pior.

–Joaquim levará vocês até a rodoviária. - Marta solenemente comunicou.

–Eu posso levá-las. - Engoli um grito de susto quando Jeff apareceu na sala de supetão.

"Independência ou falência do órgão", gritava meu pobre coração.

–Não precisa. - Ellie tratou de dizer.

–Eu levarei. - Repetiu ele.

–Não acho que...

–Levarei. - Rosnou.

Jesus Cristo tenha piedade da minha pobre alma. Ok, sem trocadilhos.

Os olhos castanhos da loira arregalaram-se e prontamente ela se calou. Mas não eu. Não fazia parte do meu perfil calar-me assim.

–Não será preciso incomodá-lo, Jerry, nós iremos... - Não havia táxis, ônibus ou sequer cavalos para irmos. Maldito momento que decidi falar. - A pé.

Bárbara não escondeu muito bem (ou simplesmente não quis) uma gargalhada do outro canto da sala.

–Querida... - As mãos calejadas de Marta apertaram-se nervosas. - A rodoviária fica a quilômetros de distância.

–Eu e Ells estamos nos preparando para uma maratona do final do ano. - Alma, cale-se, por favor. Mas agora já tinha ido. Foi uma, poderiam ir mais duas ou três terríveis desculpas. - Isso será ótimo para resultados positivos. Não precisamos de carona alguma. - Meus olhos encontraram os verdes acastanhados.

Furioso, Jeremy agarrou uma das minhas malas no chão e a jogou contra as costas largas. É, eu sei, foi algo bem aqueles cowboys texanos, exalando testosterona e tudo mais.

–Bobagens.

Ah não... Meu sangue fervente não deixaria que ele desse um de bom moço a essa altura da história.

–Eu não quero incomodar, Jerry, querido. - Poupei o máximo do sarcasmo.

–Não será incomodo algum, Vida. - Odiei a forma como sua declaração pareceu sincera e quase... Magoada.

–Caminhar faz bem. - Rebati.

–Ok. - Ellie se meteu no meio de nós dois. - Nós aceitamos a carona, Jeremy.

Lancei um olhar raivoso em sua direção, mas ela me devolveu com um "não gastarei meus pés delicados de porcelana com quilômetros no barro".

Revirei os olhos e mais uma vez forcei um sorriso em meus lábios para me despedir de todos. Dei um aperto de mão em Joaquim e na Murta-que-geme, muito mais afetivos do que na hora da minha chegada. Acenei para tia Lucy e Bárbara (muito feliz de não ter mais aquela olhando pra mim) e abracei firme Maia.

–Vocês vão se acertar. Dê tempo ao tempo. - Sussurrou no pé do meu ouvido e então se afastou.

Isso nunca iria acontecer, querida, quis dizer, mas apenas acenei. A próxima na fila foi Marta. Seu olhar fez meu coração encolher para o tamanho de uma azeitona. Senti-me suja e errada.

Estendi minha mão, para que nós trocássemos um aperto gentil, mas ela me puxou para seus braços sem grandes cerimônias. Não me disse nada, mas tampouco achava que algo deveria ser dito.

Marta transmitiu em seu abraço e olhar o mais próximo da mescla entre decepção, esperança e compaixão. Foi o suficiente para que meus olhos ardessem. Sempre achei que de Marta, nós nunca havíamos conseguido mentir nada. Talvez eu estivesse certa, talvez não.

–Eu sinto muito ter que partir cedo. - Sussurrei para ela. Seus dedos calejados apertaram meus ombros.

–Não sinta.

E se afastou.

Ok. Depois dessa... Que venha o próximo da fila! E esse era o Sam. Prontamente ele estendeu a mão, todo cortês.

–Até breve, tia Al.

Droga, agora meu coração havia se convertido em uma mísera ervilha. Aceitei sua mão estendida, segurei firme antes de soltá-la e lhe mostrar um sorriso forçado.

–Eu acho que esse garoto tem meu coração. - Ellie resmungou suspirando, observando toda a cena.

Sam franziu o cenho para a loira ao notar que ela falava dele.

–Mas é claro que não. Seu coração pertence só a você. - Rebateu, confuso.

–Ah bebê... Diga isso a ele.

–Mas... - Sam olhou atordoado de mim para a avó. - Deixa para lá.

–Lembre de decorar meu número. - Murmurei para ele. Seus olhos castanhos desviaram-se dos meus. - Ok, hmmm... Até breve, pequeno Newton.

Balançou a cabeça novamente e mais por força de hábito eu retirei as grossas mechas encaracoladas da sua visão. Beijei o topo da sua testa e me afastei com os olhos cruelmente marejados.

Acenei uma última vez para todo mundo.

–Façam uma boa viagem! - Marta despediu-se, segurando tão firme o prato que antes jaziam biscoitos, que por um momento eu pensei que ele ia partir em suas mãos.

Ellie saltitou até o carro cheia de biscoitos nas mãos. Fui deixada para trás com um não tão animado assim, Jeremy. Não falamos nada. Nenhum dos dois querendo forçar a barra. Não era um silêncio confortável, mas era bem melhor que algum falatório sem sentido.

A viagem foi tranquila, o máximo que o momento permitia, Ellie fez o favor de tagarelar por nós dois. A loira tentava, com muito esforço, nos incluir em seu falatório, mas não surtia efeito. Então ela teve que persuadir com biscoitos, para que ao menos eu falasse uma dúzia de palavras até que chegássemos.

–Graças a Deus nós não viemos caminhando, Alminha, iria demorar dias até chegarmos. - Pulou do carro. - E já que você tocou no assunto, bem que nós poderíamos realmente participar de alguma competição de corrida, né?

Bufei.

–Nem pensar, Ellen, eu não troco meu sofá por tênis e voltas pela cidade nunca! - Resmunguei, saltando do carro também, espalhando areia por todos os lados com meus tênis.

Meu objetivo era pegar as malas e sair correndo, se possível, em tempo recorde. O plano foi por água a baixo quando eu notei que Jeff já jogava sob os ombros uma das minhas mochilas.

–Você não precisa fazer isso.

–Nem você. - Rebateu. Ficamos nos encarando por algum tempo, ok, foram poucos segundos, mas faz de conta que estávamos em Matrix e os segundos são dolorosamente longos.

Um gostinho de djavú me inundou ali. Aquela conversa soando um tanto quanto familiar. Balancei a cabeça e puxei as outras mochilas que conseguia antes de Jeff colocar as mãos.

–É uma cidadezinha bem pacata essa. - Nós tínhamos que dar um desconto a loira, ela estava se esforçando para soar agradável, mas eu sabia que Ells odiava qualquer coisa não devidamente asfaltada.

–Ainda dá tempo de vocês visitarem alguns pontos.

–Tipo o shopping? - Animou-se Ellie.

–Estava pensando no parque municipal ou o cebo dos Oliveira, é uma das casas mais antigas daqui.

Enquanto minha amiga tentava esconder a decepção, eu me esforçava para não parecer atenta à conversa. Estava tentada a ceder minha parede orgulhosa e saciar minha vontade. Qual é... Um parque? Um cebo histórico? Ele estava fazendo isso para provocar?

–Ah bem... Esse é mais a programação da Alminha.

Ele olhou para mim com expectativa. Jeff sabia que eu seria a primeira a topar uma visita a algo assim, algo que a maioria das garotas sairia correndo. Se ele queria mesmo me agradar, ele estava indo por um bom caminho, uma pena que tarde demais.

–Nós temos passagens para comprar. - Cortei, seca.

Desviei de seu olhar magoado, porque ele me atingia de um modo indevido.

–Tudo bem, você tem razão.

Cada vez que ele era doce desse jeito, me lançando aquele olhar arrependido, eu me derretia um pouco mais sob o sol a pino. Resista, Alma, pelo amor de Deus resista.

–Nós podemos entrar naquela lojinha antes de irmos? - Ellie cutucou-me no ombro, olhinhos brilhando, o dedo apontando para um canto da rodoviária. Eram vestidos, shorts, batas e sandálias artesanais estendidos de maneira que atiçava a loira até o último fio de cabelo.

Revirei os olhos, porque era bem a cara dela querer se enfiar em qualquer loja antes de irmos embora.

–Eu fico com as malas. Vocês podem ir tranquilas. - Jeff nem terminou de falar e minha amiga já tinha jogado a malinha que segurava aos pés do homem e saiu caminhando.

–Eu posso muito bem levar a minha. - Empinei o nariz. Mentira, eu odiava receber olhares examinadores das vendedoras ao entrar com uma bolsa grande, mas Jeff não tinha como saber disso. Ou espera... Talvez ele tenha comprado alguém para saber disso também?

–Você está bem para isso? - Quando eu franzi o cenho, ele tratou de explicar. - Não está sentindo dor alguma? Eu posso ficar com as malas.

Estreitei os olhos em sua direção. Eu não queria confiar nele, eu não poderia confiar nele, mas por algum motivo idiota eu malditamente confiava. Larguei a bagagem de qualquer jeito aos seus pés e caminhei até a lojinha sentindo o olhar dele em minhas costas (talvez mais em baixo).

Só saímos de lá quando Ellie tinha comprado dois vestidos, uma bata e um sapato de couro para seu namorido que por mim não teria saído da carcaça do animal. Com ao menos uma de nós mais feliz, voltamos ao local onde havíamos deixado Jeff.

–Ele não estava aqui? - Ellie girou nos calcanhares, mas nem sombra do Buckley e das nossas malas.

Foi aí que eu fiquei fula. Não, melhor ainda... Fiquei possessa. POSSESSA!

–Mas onde diabos aquele homem se meteu? - Rugi, girando mais que pomba gira em terreiro.

–Calma, Alminha, vai ver ele foi no banheiro.

Não tinha explicação que sossegasse minha pressão naquele momento. Rangi os dentes e larguei a mala no chão com uma força tão grande que todos os potinhos de vidro de perfume devem ter quebrado em sincronia.

–Eu castro esse homem! - Gritei, nem ligando para a meia dúzia de olhares arregalados que eu recebia.

–Oh Pai...

–Não, Ellie! Não me lance esse olhar que a comunidade feminina vai perder uma grande contribuição!

Ela mordeu os lábios e sorriu totalmente sem graça para uma velhinha que passava ao nosso lado. Assim que a velha rapou do lugar as pressas, as mãos da minha amiga firmaram em meus ombros.

–Alminha, eu sei que tá sendo uma barra pra você. Mas você tem que se controlar, mulher! Não faz sentido ele ter roubado nossas malas e ter nos deixado para trás. O que ele ganharia?

Ela tinha razão. Meu Deus, Ellie tinha razão. Eu estava ficando totalmente descontrolada, fora dos meus all stars. Balancei a cabeça, clareando a mente. Se ele quisesse ter feito alguma coisa, ele já teria feito antes. Não teria? E ainda mais ele não faria mais nada comigo, não depois das coisas que ele havia me confessado no hospital, parecia totalmente sincero lá.

–Você tem razão, Ells, desculpe. - Afastei-me de seu aperto suave. - Eu só...

–Eu me afasto por um segundo e você já desmorona, Vida?

Um calafrio inevitável atravessou meu corpo, sacudindo meus ombros e arrepiando os pelos da nuca. Engoli em seco.

–Será que você pode me culpar por desconfiar de você, Jeremy? - Alfinetei.

Minha resposta ácida teve imediata consequência. Seu olhar risonho perdeu a graça. Notei, com a curiosidade de um biólogo descobrindo uma nova espécie, que suas mãos foram enfiadas nos bolsos da calça jeans, parecendo desconfortável.

–Fui comprar o bilhete de vocês enquanto estavam na loja. - E do bolso retirou sua carteira, puxando de lá duas passagens.

Quando eu quero que ele seja ruim, para que eu possa odiá-lo sem ressentimento depois, Jeff torna-se a mescla perfeita de nutella e morango (totalmente comestível... Digo, doce) e um quê da Marry Popins.

–Obrigada. - Falo sem jeito. - Mas você sabe que eu poderia...

–Só... Aceite, tudo bem? Por favor. - Pego ambos os bilhetes. Um trato mudo foi selado entre nós dois ali. - Ainda faltam uma hora e meia. Vocês podem comer algo, se quiserem.

–Tem comida natural?

–Depende do que você considera comida natural.

–Nada de uma saladinha caprichada? Tomate, alface, azeite extra virgem...?

Jeff me lançou um olhar acuado, pedindo minha intervenção no caso, manter esse contato com ele era demais para mim e rapidamente desviei para Ellie. Ou ela não tinha notado o quanto acanhada eu estava junto ao homem, ou minha melhor amiga (título a ser repensado) ignorava toda a situação.

–Uma lanchonete com um x-salada seria ótimo. - Resmunguei para ninguém em especial.

Ellie tinha essa pose de madame, mas nós duas cansamos de dividir banquinho de praça para aliviar as dores na pipoca com leite condensado. Sabia que o papo da salada era só para afugentar a dor na consciência que sentia após três dias das comidas da Marta.

Jeff nos guiou para a lanchonete, também conhecida como uma kombi improvisada em estabelecimento no meio da calçada.

Comemos o sanduíche que mais tinha folha do cardápio, mas não consegui controlar minhas mãos para roubar as batatas fritas do Jeff. Eu não tinha o perdoado. De jeito nenhum. Só... Não conseguia exibir uma carranca para ele agora. Não quando ele estava carregando todas nossas malas, pagando nossas passagens, nossos sanduíches e ainda por cima mergulhando sua batata frita no ketchup e então me entregando.

Droga. Ele sabia como conquistar uma mulher em cheio.

–Alminha, chega de comer essas porcarias! - Ralhou Ellie. - Você acabou de sair do hospital.

–Quando você se tornou a responsável na nossa relação? - Arregalei os olhos e mastiguei com louvor a última batata frita do Jeff.

–Desde que você não cumpre mais essa função.

Estreitei os olhos em sua direção. Não fora a melhor coisa para se dizer naquele momento, ela sabia disso, mas não estava arrependida. Deu de ombros e escorregou para fora da seu banquinho.

–Eu espero que aqui tenha um banheiro...? - Perguntou, esperançosa, para Jeff.

Ele acenou e indicou as instruções com a mão.

–Ótimo. - E então ela já havia sumido com um requebrar audacioso nos quadris.

Engoli em seco, me esforçando para não praguejar alto pela corda bamba que minha melhor amiga havia me deixado. Um silêncio desconfortável assumiu o ambiente, tirando o cantarolar alegre do atendente da lanchonete, me remexi no meu lugar. Percorri o caminho até seu olhar sem pressa, mordendo o lábio sem nem notar.

–Você não está tornando isso mais fácil. - Resmungou ele.

Não respondi.

–Olha, Vida... - Espalhou as mãos pela mesa de mármore, parecendo hesitante. - Eu tinha decorado um texto realmente bom hoje de manhã. Porra, eu gostaria de lembrar dele agora.

Vendo-o assim nervoso, eu me sentia quase na obrigação de tentar acalmá-lo.

–Eu sou fodido com as palavras. - Confessou.

–Você não precisa falar nada.

–Eu preciso. - Rebateu de maneira tão cortante que eu me encolhi no meu lugar. - Ah, não. Não me lance esse olhar, Vida, por favor.

–Eu não estou...

–Você está. E eu sei que você tem razão para me olhar assim, com seus olhos marrons tristes.

–Amêndoas.

–O quê? - Franziu o cenho.

–Meus olhos são amêndoas.

–Qual a diferença disso para marrom?

–Eu... Não sei. Acho que soa melhor.

–Tudo bem. - Respirou fundo mais uma vez, sacudindo os cabelos de modo que em um segundo parecia que sob sua cabeça havia um ninho de mafagafos. - Ao menos agora seus olhos amêndoas já não parecem tristonhos, como um gato caído na mudança.

–É um cachorro, Jeff. - Revirei os olhos.

–O quê?

–A frase é cachorro caído da mudança, não gato. Até porque os gatos adoram suas casas, eles não iriam se sentir tão tristes assim por... - Parei de falar aos poucos, desconcertada com o olhar marcante que o homem me lançava. - Eu estou tagarelando de novo, não é?

–É. - Ele sorriu. - Mas eu gosto disso em você. É... Fofo. - Suas bochechas ficaram repentinamente vermelhas.

Eu congelei. Oh Deus... Aquele homem estava... Ele... Não posso acreditar. Gargalhei.

–Diga isso de novo. - Limpei as lágrimas debaixo dos olhos. - Ai meu Deus. Eu não sabia que iria viver para ouvir você dizendo fofo e ficar todo corado.

Uma carranca se formou no rosto de Jeff.

–Eu estou tentando falar algo realmente importante aqui, Alma. Você poderia manter sua boca fechada? Caralho.

Eu me calei só depois de soltar um muxoxo zangado.

–Eu nem sei porque eu estou aqui ouvindo você.

–Porque eu sou um idiota e eu sei disso e você sabe disso. E eu não sei porque, não sei como, mas ainda assim você gosta.

Abri a boca para protestar da sua cara de pau, mas ele cobriu minha boca. Rapidamente me enlaçou pela cintura, aproximando seu corpo do meu em um baque surdo e de modo desajeitado. Tanto eu quanto ele agora estávamos na beira do banco, meio em pé, meio sentados. O atendente ainda cantarolava uma música antiga, alheio a nós dois.

–Não desiste da gente, Alma, eu não vou. Eu sei que você está remoendo cada frase aí dentro da sua cabeça, porque é isso que você faz. E então você estará fugindo, porque é a sua forma de lidar com as coisas quando está com medo. - Seu aperto ficou mais forte e depois abrandou. - Não está errada, Vida, mas também não está certa. Esse não é o melhor jeito de solucionar um problema.

Se não fosse pela sua maldita mão (e grande e viril e calejada e se eu desse uma lambida agora eu saberia qual... deixa pra lá) eu já teria o interrompido a muito tempo. Tudo isso era ridículo.

–Eu disse tudo que deveria dizer, eu fui sincero o máximo que eu consegui, eu estou pedindo e então eu estou te dando um maldito tempo. Porque é isso que você quer e então é isso que você terá. Seu tempo.

Estreitei meu olhar, tentando acumular o máximo de minha desaprovação nele.

–Se você pensa que eu sou idiota como seu ex, para deixá-la escapar assim tão fácil, está muito enganada. Eu errei com você, mas não vou errar duas vezes. Estou resolvendo as coisas, e quando estiver tudo bem, eu estarei acabando com o seu tempo.

Quando sua mão em meu rosto afrouxou e eu pude bufar em descontentamento, resmunguei:

–Já acabou com sua cena de macho alfa ou você quer que eu peça alguém para filmar e colocar no youtube?

Um sorriso preguiço espichou em seus lábios.

–Só mais uma coisa. - Então ele aproximou o rosto do meu. Muito perigosamente. Pegando fogo de perigoso (talvez esse termo nem exista, mas enfim). Para finalmente comprimir seus lábios na minha... Testa. Ok, eu poderia superar essa. Logo depois de acalmar o enlouquecido do meu coração. - Me mande uma mensagem quando chegar em casa. Prometo que não vou incomodá-la mais em seu tempo.

Meu tempo.

Ele seriamente achava que eu queria somente um tempo? Deus, aquele homem deveria ser internado.

–Você fica totalmente linda corada desse jeito. - Sorriu brincalhão.

O que me fez corar ainda mais.

–Só há uma coisa que eu concordei em tudo isso que você falou, Jeremy: você é um idiota. Tão estupidamente idiota que se houvesse um prêmio, você ganharia o pódio só para si.

Ele soltou uma gargalhada gostosa de se ouvir e se afastou de mim.

–Essa sua garota tem uma língua afiada, não é, Jerry? - O cara da lanchonete soltou um sorrisinho malicioso.

–Você não sabe o quanto, Alex.

Idiota. Imbecil. Estúpido.

–Já estamos prontas para ir? - Ellie aproximou-se sorrateiramente, como se estivesse com medo de... Estar interrompendo algo. Foi só ao ver pelo canto do olho,e notar que Jeff lançava um piscar de olho na direção da loira, que notei: tudo aquilo tinha sido planejado.

Cretina. Ordinária. Corna manca.

–Estou indo para casa, por mim isso tudo... Já deu.

Equilibrei as malas o máximo que podia. O resto deixei para que Ellie pegasse a deixa e se virasse por si só, mas isso não aconteceu, em um ritmo acelerado eu fui na frente e os dois atrás.

Meu sangue borbulhava de raiva.

Porque Ellie tinha sido sensata, Jeff estava certo quando dizia que eu fugia dos problemas, porque o carinha-da-lanchonete fez uma piadinha e disse que eu era a garota de Jeremy, sendo que eu nunca fui. Estava tão possessa comigo mesma naquele momento...

Eu só precisava ir para casa, recuperar meu cachorro e então encher o pobrezinho de mimos.

Fingi que não ouvi a despedida aos sussurros da loira e do moreno enquanto examinava o homem da empresa de ônibus colocando nossas malas no bagageiro sem cuidado algum.

–Não deveria, mas estou torcendo por vocês dois. Vê se não vai me decepcionar, Jeff Buckley!

–Eu não vou, Ellie.

Ela soltou a risadinha de flerte dela e eu odiei a forma como meu estômago embrulhou e meu sistema nervoso apitou em alerta:

"Ele não é seu, Alma. Mas tampouco pode chegar a ser da Ellie. De jeito nenhum!"

–Vamos logo, Ells!

A loira adiantou-se até o ônibus e acenou. Limitei-me a um olhar azedo que em questão de segundos se dissolveu em um de melancolia e logo já estava marejando. Jeff estava ficando para trás pelo alvoroço dos passageiros, mas não longe o suficiente para que eu não notasse a fisionomia em seu rosto. Era uma mistura enorme de emoções ali, em seu rosto franzino que na maioria do tempo não deixava transparecer nada, eu poderia ver um pingo de arrependimento, mágoa e uma tristeza tão sólida que fez meu coração perder uma batida.

–Eu vou esperar. - Li no movimento de seus lábios.

–Jesus. - Minha amiga deixou escapar em um grunhido. Revirei os olhos e a empurrei para que nos acomodássemos nas cadeiras, rezando para que ninguém visse as lágrimas que caiam vergonhosamente pelo meu rosto.

Eu não era fraca, repetia para mim.

–Graças a Deus que nesse país não é permitido bigamia, Ellie, você seria a primeira sutã de todas.


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Notas finais do capítulo

Estou de volta, bitches!
Já comecei a responder os reviews do capítulo anterior! Baramm, estou melhorando! Vou responder a todos o menos tardar.
Ainda não completamente de férias, mas quase lá! Terça faço o último vestibular e *cruza os dedos* adeuss escola!
Prometo me esforçar um bocado para voltar a postar um capítulo antes do natal. Se não, antes do ano novo de certeza!
Estou! Colocando! Muitas exclamações!!
Correndo aqui para postar esse capítulo, não vou sumir novamente, minhas amoras. Não quero.
Muito obrigada por esperarem com tanta paciência (talvez nem tanta). Vocês são incríveis!
p.s.: conferi o capítulo na pressa, qualquer coisa me falem, por favor ;)
p.s.²: ME FALEM O QUE ACHARAM DO CAPÍTULO