Obrigado e Volte Sempre escrita por Loly Vieira


Capítulo 27
Anjo ferido.


Notas iniciais do capítulo

Olá meus amores :)
Eu estive esperando por esse momento há algum tempo.
Seria totalmente injusto comigo mesma não colocar o nome desse capítulo assim. Essa música resume uma boa parte da história da Alma.
"Oh, anjo ferido
Você está morrendo por dentro, porque você não pode acreditar
E agora que você cresceu
Com essa noção de que você foi culpada
E você parece tão forte as vezes
Mas eu sei que você ainda se sente a mesma
Como aquela menina que brilhava como um anjo
Mesmo depois do coração preguiçoso dele fazê-la passar pelo inferno"
Broken Angel - Boyce Avenue
Quem quiser botar para ouvir e se quiserem dar uma conferida na letra... Vale muito a pena ;)
https://www.youtube.com/watch?v=wLJSgTgAom8



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Uma vez ouvi uma história engraçada de uma das minhas antigas vizinhas.

Mamãe dizia para nunca levar a sério o que a velha senhora falava, mas como ela (a vizinha, não minha mãe) estava na reta final da sua vida, eu, ainda visualizando o ponto de partida da minha vida, acreditava que ela merecia algum mérito pela sua longa estadia aqui na terra. Eu costumava ouvir suas histórias na sala da sua casa comendo bolinho de chuva.

Teve essa, em particular, que ficou gravada em minha memória.

Pausadamente, até demais, ela me falava o dia mais cheio de ação da sua vida. O dia que ela e sua irmã tinham sido assaltadas.

–Seus olhos eram negros, Alma. Eu nunca tinha visto olhos negros tão assustados na vida. Eu e minha irmã éramos medrosas, mas ele... Ele estava tão apavorado também.

Ansiosa, perguntei pelo desfecho, e imaginem a reação de uma criança quando ouviu um simples “nós entregamos as pulseiras de ouro que havíamos ganhado no natal e ele correu”.

A partir daí, eu tomei a liberdade de imaginar que comigo seria possivelmente diferente. Eu teria uma reação explosiva no dia que algo assim ocorresse comigo. Criei diversas cenas gotejantes de ação. Sangue, lágrimas, sirenes de polícia e tudo que havia de direito em um romance de Agatha Christie.

Mas eu nunca me imaginei numa posição daquela. Eu, logo eu, tentando ser a mais equilibrada possível. Tentando encontrar um pouco do medo dos meus olhos, no olhar do cara armado. Seus olhos pareciam mais injetados de sangue, mas nada relacionado a ressentimento. Ele parecia mais grogue que penoso.

Eu tinha duas crianças do meu lado e ele tinha uma arma do dele.

E sem falar que a garotinha nos meus braços parecia começar a notar que algo estava muito errado nisso tudo, quase aos prantos. A droga do meu celular estava na mesinha do hall, onde deixei quando cheguei com minhas roupas encharcadas, temendo que o aparelho não funcionasse. Desarmada. Totalmente.

–Você deixa as crianças fora disso e nós discutimos.

–Mas já? – Sua risada era rouca e causou-me calafrios. – Nós ainda nem tivemos tempo de brincar.

Engoli uma dúzia de respostas que envolviam a senhora sua mãe num lugar muito charmoso e lancei-lhe o olhar mais gélido que eu tinha.

Medo corria tão rápido em minhas veias que a qualquer momento poderia me desestruturar, mas eu estava firme em não externar esse sentimento. Pelas crianças e bem... Por mim.

–Nós temos tantas coisas interessantes para fazer... – Seus olhos foram dos meus, para Sam, um ponto atrás de mim e finalmente caíram em Joana.

A loirinha soltou um silvo alarmado, choroso.

–Os deixe fora disso. – Alertei. Firmando a menina contra meu colo, protegendo-a de seu olhar imundo.

Senti uma mãozinha se apoiar na barra do meu short. Sam.

–Tia Al...

–Fica na tua, moleque. – Cortou-o.

Mais uma vez eu controlei meu pequeno diabinho dentro de mim para não respondê-lo.

–Nós falaremos em particular. – Tentei novamente.

Eles não precisavam presenciar isso. Nada que uma cena de alguns minutos para ficar presa em você por toda uma vida.

–Por favor. – Supliquei.

Aqueles olhos negros pareceram balancear por um momento os prós e contras.

–Mas você fica. – Ordenou.

Permiti-me respirar de alívio por um curto segundo.

Agachei-me lentamente até a altura de Sam, só notando que minhas mãos tremiam quando eu entreguei Joana a um Pequeno Newton atrapalhado.

–Entre no seu quarto, tranque a porta e não saia. – Sussurrei rápido.

Seus olhos mel focaram nos meus com uma intensidade que eles nunca tinham feito antes.

–Tia Al...

–Por nada, Pequeno Newton. – Eu sabia que ele não descumpria ordens. Não era de seu feitio. – Cuida da Joana, tudo bem?

–Eu... Eu não sei cuidar de bebês.

Minhas mãos, tremulas, afastaram seus cabelos da frente dos olhos.

–Vai ficar tudo bem. Eu só preciso conversar com esse homem.

–Ele não parece que quer manter um diálogo apropriado.

Joana emitiu um grunhido infeliz. Seus bracinhos esticados, as mãozinhas abrindo e fechando na minha direção.

–Por favor, Sam. – Beijei o topo da sua cabeça e me ergui. – Faça o que eu pedi.

Eu nunca me perdoaria se alguma coisa acontecesse a ele.

Observei o garotinho subir as escadas, cambaleante. Seus olhos novamente cruzaram com os meus antes de partir para o corredor. Muito provavelmente ele não notou, mas eu murmurei baixinho que o amava.

–O que você quer? – Perguntei, assim que ouvi o barulho da trinca na porta. Sam e Joana estavam a salvos, repeti esse mantra diversas vezes.

–O que eu quero, coisinha bonita? – Esforcei-me ao máximo para não tremer quando seu corpo se aproximou do meu. O cheiro de álcool e droga barata me enojaram. – Eu só estou fazendo o combinado. Cumprindo algo que alguém já deveria ter feito.

Recuei alguns passos quando sua mão tentou tocar meu rosto. Só de pensar aquela mão nojenta tocando em mim, causava-me tremedeiras.

–Ah, vamos lá. Eu não sou tão ruim assim. – Sorriu-me um sorriso desdentado, amarelo, podre. – Eu deixei até as crianças fora disso. Você não acha que eu mereço um desconto?

–Você quer um Nobel por acaso?

O sorriso sumiu de seus lábios mais rápido do que eu esperava, ele se aproximou de mim novamente e mais uma vez eu me afastei. Ele estava começando a ficar chateado.

–Você pode pegar qualquer coisa. – Tratei de falar. – Eu... Eu soube que os pratos de louça são uma pequena fortuna. Você vende fácil na internet. – Franziu o cenho na minha direção. – E há uma coleção de xícaras do século XIX.

–Eu não quero essas coisas.

Jesus, ele era um ladrão exigente.

–O faqueiro é de prata legítimo. – Eu nem sabia se existia um faqueiro assim aqui, mas eu precisava de tempo. Eu só precisava que ele não estivesse me encarando para chegar ao extremo da sala, próximo a cozinha, justamente na mesinha, onde meu celular estava.

Telefonaria para Jeff. Ele não devia estar muito longe ainda.

–Eu posso arranjar até uma bolsa se você quiser. Eu posso ir busca-la lá em cima...

Não consegui nem dar dois passos antes de sentir suas mãos imundas puxando-me pelo cotovelo com mais força do que o necessário.

–Você ainda não me entendeu, coisinha bonitinha. – Qualquer diversão havia evaporado de seu tom. – Eu não me interesso por roubar isso.

–Pensei que era isso que ladrões faziam.

Eu paguei pela minha resposta irônica quando o aperto do seu braço aumentou ligeiramente. Mesmo latejando de dor, eu não deixei que o gemido saísse dos meus lábios.

–Você se acha muito engraçadinha, mas você é só mais uma foda do Rischio.

Sua última palavra saiu com uma acentuação diferente, quase estrangeira.

–Eu sinto muito, mas não sei do que você está falando.

A risada que saiu de seus lábios foi um dos sons mais assustadores que eu já ouvi. Sua arma estava ao lado do corpo, esquecida, mas ainda firme em suas mãos.

–Eu acho que você o conhece muito bem. – Soando divertido, forçou uma aproximação até minha orelha. – E eu sinto muito ser eu a te contar, mas você é apenas mais uma na rede, Alma.

–Como você sabe meu nome? – Rangi os dentes. Empurrei-o para longe de mim. Abraçando meu tronco, assustada.

–Seu nome é Alma Manfredini, 24 anos, têm uma irmã caçula que é casada com um dos homens mais influentes na advocacia do país e uma sobrinha pequena. Trabalha em um estúpido café de esquina, tem apenas uma loira gostosa como amiga. Mas o mais interessante de tudo na sua vida é seu pai. – Lançou um sorriso doentio para mim. – Ele é o maior filho da puta que eu já conheci. Ele acabou com a sua vida, Alma. Você sabe disso.

–Oh Deus...

–E é isso que a torna interessante, coisinha bonita. – Continuou – Você está aqui, na minha frente, como se nada pudesse te destruir, como se já não tivesse sido destruída antes. Nem parecendo que você foi quase morta pelo seu próprio pai.

–CALA A BOCA! – Berrei tão alto que minha garganta protestou pelo esforço. – CALA A BOCA. CALA A BOCA.

–Como foi, Alma? Como foi ser queimada viva pelo seu pai? Você chorava, gritava, implorava para parar? Como é ver a morte de tão perto e notar que ela tem a cara do seu pai? - O tom de curiosidade mesclava ao de divertimento doentio.

–Ele não sabia o que estava fazendo.

–Você não lembra que ele te encharcou de gasolina? Ele estava olhando para você, ele sabia o que estava fazendo quando acendeu o isqueiro, Alma. O filho da puta sabia exatamente o que estava fazendo. Ele começou com seus cabelos, não foi?

Tinha que parar. Isso tinha que parar.

Eu poderia sentir aquela sensação de novo. O fogo estava chegando à minha cabeça. Minhas costas queimavam. Meu cabelo estava em chamas, mamãe tinha passado ao menos meia hora o penteando antes de sair com Agatha, porque Agatha queria um novo vestido, ela tinha gritado a manhã inteira por isso.

Eu chorava.

Papai. Não. Por favor. Por favor, não.

Tudo era um clarão doentio. A chama percorria meu corpo molhado, preso a cadeira de madeira da sala. Minhas mãos estavam presas atrás das costas da cadeira. Meus gritos eram roucos. O fogo lambia cada pedaço de mim.

Por favor. Isso tinha que parar. Não de novo.

–Sua mãe sabia que seu pai era um homem doente também, Alma. Mas era muito mais fácil não ver isso.

Fechei os olhos com força. Evitando ao máximo que as lágrimas fugissem. Eu não era fraca. Não de novo. Eu não era fraca.

–E veja bem, você ainda trancou a faculdade, para juntar o dinheiro necessário quando, anos depois, ele ter procurou pedindo ajuda porque estava morrendo. – Gargalhou, sem humor algum. – Você se mudou para um apartamento caindo aos pedaços para que pudesse pagar uma clínica particular para o desgraçado morrer bem. Quando, veja só, até sua mãe e irmã recusaram a ajudar.

–O que você quer? – Gritei em sua direção. – Como você sabe dessas coisas?

Seus olhos frios me fitaram, para o estado agonizante que estava. – Eu não sou o único que sabe disso, Alma. Na verdade, aposto que Rischio sabe em detalhes assustadores.

–Eu não sei quem é esse Rischio. Eu juro que não sei. - Supliquei, engolindo o bolo em minha garganta.

–Você sabe, Alma. – Perto, novamente, seus olhos negros e vermelhos fuzilaram os meus. – Você está na casa dele. Você está cuidando do filho dele. Você recebeu um patético beijo na cabeça há alguns instantes. Você está na palma da mão dele. E acredite em mim, não é um bom lugar para estar.

O choque passou pelo meu corpo não poderia ser explicado pela física. Nem uma fórmula, ou qualquer tipo de palavra, poderia definir o que quase me levou ao chão.

Jeremy sabia.

Ele sabia esse tempo todo. Ele sabia quem estava nos meus pesadelos. Ele sabia disso enquanto me abraçava, enquanto me beijava, enquanto me olhava nos olhos.

Eu poderia vomitar a qualquer instante.

–Jeremy... Ele... Não...

–Vejo que me equivoquei com o Rischio. Ele não foi tão burro.

–Do que você está falando?

–Da parte que você é um plano, talvez? Ok, não totalmente. Você é a edição de um plano, coisinha bonita. – Brincando com a arma em mãos como se fosse um brinquedo, concentrou sua atenção nela quando pronunciava as palavras que me acabavam por completo. – O alvo do Rischio é, e sempre foi, sua irmã. A linda Agatha Manfredini que tinha uma filha da mesma idade que o seu moleque. Veja só! Que coincidência do destino ter que transferir seu filho para a mesma escola que a filha do maior gênio em tecnologia do país estuda. – Revirou os olhos. – Era uma questão de tempo até que os dois garotinhos se aproximassem.

Eu poderia sentir o embrulho em meu estômago se intensificar.

–Então aconteceu. As crianças tinham se aproximado. Mas imagine a surpresa e decepção quando aparece no lugar da mãe milionária, a irmã sem ter onde cair dura? – Um tse com a boca. – Aparentemente, o plano tinha fracassado para nós. Eu e Marcela não concordamos, de maneira nenhuma, quando Rischio decidiu manter o contato com a garçonete de um café. O alvo era a Agatha, ele tinha que seduzir Agatha. Mas o Rischio estava convicto que nós conseguiríamos desfalcar a empresa de Brenon Hill e, ainda por cima, tentar alguma coisa com um filhinho de papai, um tal Brian Cadori. Seu namorado.

Por um momento o ar fugiu dos meus pulmões.

Eu nunca tinha me sentido tão suja, tão usada na vida.

–Nota-se, Alma, que retirando seu querido paizinho, você anda ao redor de gente importante. Gente com grana. Você só não faz uso disso como... Bem, como nós usaríamos. Como nós vamos usar.

–Você disse que não queria nada. – Argumentei, a voz rouca.

–Nada daqui, coisinha bonita. – Sua arma estava novamente na minha direção, o cano preto apontando entre meus olhos. – Eu só vim adiantar o plano. Nada do que não seria feito. Nós estamos precisando dessa grana agora.

–Quem é Marcela?

–Isso não te interessa.

–É a mãe do Sam? – Eu estava ferida, magoada, quebrada. Mas, acima de tudo, eu estava furiosa. Como nunca estive em minha vida. E eu queria saber tudo o que estava sendo escondido de mim.

Ele soltou novamente a gargalhada estridente, mas nem um pouco contagiante.

–Não me surpreende saber que você não sabe nada sobre Rischio. – Como se estivesse tratando de uma criança pequena, ele explicou. – A mãe do moleque é apenas mais uma, assim como você, Alma. Dona de uma empresa que fornece campanhas publicitárias. Ele teve até que pousar para uma das suas campanhas de roupa. Ridículo. Rischio só foi burro ao engravidá-la e mais burro ainda ao preferir ficar com a criança ao invés de deixá-la para trás. Uma garota inteligente, que trocou algumas possíveis fotos comprometedoras por uma boa quantia de dinheiro.

Pequeno Newton. Funguei. Deus, ele estava no meio de toda essa sujeira. E foi a mãe de Sam que tinha sido responsável pelas fotos de Jeremy que circulavam a internet. Isso era doentio.

Eu nunca tinha sentido tanto ódio por alguém na vida como estava sentindo por Jeremy agora. Poderia inflar a qualquer momento.

–Você ainda não me respondeu quem é Marcela.

–Isso é algum tipo de concorrência feminina? - A ideia o deixou em êxtase. Entre gargalhadas confessou: - Sinto muito em lhe informar... - Ele não sentia, eu sabia. - Você deve ter visto a tatuagem dele. Carpe Diem? Ela tem uma igual. Eles são algo como almas gêmeas e tudo aquilo.

Eu quebrei mais um pouco. Só mais um pouco e eu estaria perdida, talvez diagnosticada como um dano permanente.

–Minha paciência está acabando, Alma. A família urso pode voltar a qualquer instante.

–Jeremy não sabe que você está aqui? – Franzi o cenho. Eles não eram comparsas no final das contas?

–É lógico que não. – Respondeu, impaciente. – Rischio está querendo cair fora do plano. Aparentemente, você tem uma bela bunda encantadora e ele te quer longe disso. – O cano gelado da sua arma roçou contra minha bochecha, seus lábios próximos ao meu ouvido. – Mas você já está nisso mais do que deveria. Não dá para cair fora. Não mais.

–Eu não tenho acesso a nada nem do Brenon e nem do meu ex-namorado. O Jeremy estava errado quando pensou que eu seria uma boa substituta. – Cuspi como se minha confissão fosse minha carta de alforria.

–Você está mentindo. – Rangeu os dentes.

–E você tem alguma máquina da mentira debaixo do braço para comprovar isso, idiota?

Eu não vi quando a mão dele se aproximou. Mas ela estalou de uma maneira dolorosa ao lado do meu rosto. Ardeu. Seus dedos bem marcados na minha bochecha.

Minha resposta foi instantânea. Afastei-me um passo, assustada o inferno fora de mim.

Raivoso, o homem de olhos negros como uma noite macabra, grunhiu palavras sem nexo. Olhei dele para sua mão. Ele estava em um momento de descuido, a arma quase escorregava pelos seus dedos. Tão focado em sua ira que nem notou quando eu, uma jovem garçonete, decidi que aquele era o momento para agir.

Por favor, Deus, rezei, que minhas aulas de autodefesa sejam úteis. As idiotas aulas de defesa que Brian havia pagado para mim na faculdade. Eu consigo ouvir a voz do meu professor gritando no meu ouvido: as pernas, aí está a maior força de uma mulher.

Com um rápido movimento (e incluindo toda minha força nele), meu pé atingia a sua mão. A arma voou até um canto da sala.

Uma fração de segundos passou. Nenhum dos dois respirou.

Foi uma rápida olhadela nele, antes que eu corresse até ela. O objeto estava a passos de distância, quando seu cotovelo atingiu minhas costas. Eu caí, mas levei o desgraçado junto.

Foi uma sequência de socos e chutes à cegas. Em algum momento a toca que cobria seu rosto por completo saiu de sua cabeça. Seus cabelos negros encaracolados e sujos sendo libertados. Uma ou duas cicatrizes nas bochechas e era isso. Tudo o que eu me permiti ver.

Consegui cravar minhas unhas em seu rosto. Entretanto, ele revidou com um doloroso golpe certeiro em meu maxilar. Tentei evitar o gemido de dor e agonia que vibrava em minha garganta.

Jogou meu corpo para o lado, arrastando-se até onde a arma se encontrava.

–Não fuja querido. – Rosnei.

Drenada em adrenalina, meu corpo rangeu, mas consegui que meu pé acertasse suas costelas. E então ele gritou. Mais de raiva do que de dor, esse era meu palpite.

Eu tinha atiçado o bicho.

Correr. Eu precisava correr.

Eu necessitava, obviamente, me levantar. No chão a luta era injusta. Apoiei-me na mesinha do telefone, mas não cheguei a sequer me erguer.

Uma pancada forte me atingiu no meio das costas. Gritei.

Desabei nos meus joelhos. Incapaz de engolir ar o suficiente para alimentar meus pulmões.

Aquele homem asqueroso estava em cima de mim no segundo seguinte.

–É uma pena estragar esse seu rostinho, Alma. – Riu uma risada sem humor. – Só que você não me deixou outra opção.– Rangeu os dentes. – Um trabalho verdadeiramente fácil. Devo dizer.

Caro Leitor, não me importa, agora, quanto as pessoas tenham falado. Nenhuma delas tinha saído de casa tão cedo com uma irmã mais nova nos calcanhares, porque era perigoso o bastante ficar em casa. Ninguém tinha ligado para o lugar que antes era chamado de “lar”, toda a semana, com medo de ninguém atender do outro lado da linha, porque seu próprio pai poderia ter feito algo ruim o bastante com sua mãe.

Meu pai era doente. E não importava o quanto exames tivessem sido feitos para comprovar esse fato. Ele não aceitava isso.

Nós o afastávamos pela primeira vez quando o acidente ocorreu. Minha mãe, apesar de ser uma grande mulher, temia pela sua própria vida e por suas duas filhas. Acabou sendo uma decisão minha não denunciá-lo e relutantemente ela acabou aceitando. Eu convenci a todos que meu corpo queimado foi fruto de um acidente doméstico. Aqueles de olhares mais astuto mantiveram-se calados.

E então ele voltou. Nós o afastamos mais uma vez. E novamente ele voltava.

Ele sempre voltava. Inicialmente arrependido e então sua máscara caía, facilmente caía. Nós o assistimos destruir nossa família aos poucos, como um desmoronamento de um prédio tijolo por tijolo, até que nossa mãe teve uma boa quantidade de dinheiro para que nos mandasse para longe daquilo tudo. Esse foi meu maravilhoso presente de aniversário naquele ano.

Semana após semana nossa mãe atendia os telefonemas com um suspiro aliviado. Papai não tinha aparecido há um longo tempo.

Enquanto isso, do lado de cá, eu e Agatha nos virávamos como podíamos e contrariamente a mim, minha irmã cultivava raiva, dor e mágoa pelo meu pai. Isso a quase consumia por completo.

Ano após ano nós compartilhávamos de uma linha tênue, tão fina que, muito provavelmente, sem os laços de sangue seria facilmente rompida.

Nós éramos irmãs, porém, só tínhamos a nós duas e seguimos esse pensamento até que seu atual marido apareceu em sua vida.

Leitor, não pense errado, por favor.

Eu quero ver minha irmã feliz. Sempre quis. Mas é dolorosa a forma como nossa felicidade é sacrificada, muitas vezes, para que o outro sinta esse gostinho. E eu gostava de minha irmã comigo, pois assim eu tinha certeza que ela estaria segura. A partir do momento que ela estivesse segura, tudo estaria bem.

É por isso, Leitor, que eu não voltaria no tempo.

Mesmo que isso ocasionasse em um espaço pequeno, quase invisível, em um pedacinho 10x15 em um jornal de má qualidade, noticiando a morte de alguém com a foto desse tal alguém; E esse alguém fosse eu.

Isso me fez pensar como as coisas seriam se tivesse sido Agatha naquele dia.

O dia em que conheci Jeff.

Não era para ter sido você. A voz me lembrava. Eu fui um erro no percurso.

Agatha teria buscado Mel naquele dia na enfermaria. Minha irmã teria conhecido Jeff e Sam. Os fervorosos olhos verdes acastanhados e um garoto incrível. Eu teria sido uma personagem secundária ou apenas uma figurante.

Eu não teria conhecido Maia, Marta, Arquimedes ou qualquer outro.

Não teria tido uma possível chance de estudar novamente.

Eu não estaria aqui. Agora.

Se Agatha tivesse ido naquele dia, eu, muito provavelmente, não estaria prestes a morrer.

E mais estupidamente que isso soe, com olhos marejados e estômago revirado, eu não me arrependo. Nem por um segundo. Eu não me arrependo.

–Você está me ouvindo? – O rosto do sujeito estava muito próximo agora. Eu poderia ver com detalhes o estrago que minhas unhas haviam feito. Líquido vermelho escuro escorria pelas suas bochechas. Sua mão espalmou meu rosto sem cerimônia. Seus dedos cravando na minha, já dolorosa, mandíbula.

Ofeguei em falso. Inferno, aquilo doía.

–Você vai me ajudar, coisinha. Sabe por quê? Porque eu conheço cada pedaço da sua vida, Alma. Eu conheço todas as pessoas com quem você se preocupa e nós não queremos que nada de ruim aconteça com elas, queremos?

Minha garganta coçou, desejando gritar em sua cara para que os deixassem em paz. Um grunhido saiu, ao invés disso.

–Você será uma boa garota, não é? Pelo bem da sua irmãzinha, da sua amiguinha e principalmente, Alma, da sua linda sobrinha.

Sim, quis responder. Porque eu nunca colocaria nada em cima das pessoas que eu amava. Nada. Eu faria qualquer coisa.

Fechei os olhos por um segundo, as lágrimas vergonhosas escorreram pelas minhas bochechas numa resposta clara para aquele sujeito que de uma hora para outra tinha virado minha vida de cabeça para baixo.

–Que bom que...

Abri os olhos e foi quando notei.

Sam.

Ele estava atrás do cara que estava em cima de mim, ainda apertando minha mandíbula dolorosamente.

Assustado, ele se aproximou cada vez mais.

Pânico ferveu em minhas veias.

Não. Não. NÃO!

O que Sam estava fazendo aqui? Eu tinha o mandado ficar lá em cima!

O homem estava tão ocupado em me falar algo que nem notou os passinhos tímidos do garoto na direção da gente. Carregando com firmeza uma frigideira vermelha nas mãozinhas.

Deus, eu acho que nunca rezei tanto na vida. Com meus olhos marejados mirei os olhos negros e vermelhos, nebulosos.

Então aconteceu. O som oco e alto. E o homem desabou em cima de mim com um gemido doloroso.

–Eu... Eu sei que você me mandou ficar no quarto. Entretanto aquilo, tia Al, definitivamente, não era um diálogo apropriado.


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Notas finais do capítulo

Fiquei tão triste com a manutenção do nyah... Meu objetivo era dar um presente para vocês no meu aniversário (mentira, era só um pretexto para que me desejassem parabéns), mas rolou todo aquele processo que vocês sabem.
Então... Foi assim. Espero que vocês tenham gostado deste.
Como minhas férias estão chegando e eu vou pegar alguns dias para mim, eu vou tentar acabar a fic, mas nada prometido, já que minhas férias serão bem curtinhas.
Ok, estaria sendo muito mentirosa se não afirmasse que estou roendo todas as minhas unhas para saber a reação de vocês.
Beijo, queijo!



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