Obrigado e Volte Sempre escrita por Loly Vieira


Capítulo 24
Colecionadores de Erros.




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Eu sabia que aquilo era não verdadeiro.

Eu sabia.

Mas era quase impossível não sentir o sentimento familiar de desespero percorrer minhas veias toda vez que eu ouvia passos atrás de mim.

–Leve sua irmã, Alma. – Minha mãe tinha implorado, sua voz saindo tão arrastada como se usasse toda a força de seu corpo para fazê-lo. – Corra.

Corra, Alma.

Mas não era o suficiente. Ele estava muito perto agora, Agatha insistia em soluçar e nosso esconderijo seria facilmente descoberto.

Por favor, Deus, por favor, que ele não nos encontre.

Sua voz nos chamava num cantarolar aterrorizante. Um soluço abafado. Seus passos perto. Mais um soluço.

Por favor, Deus...

–Shh, Vida...

Nós não podemos nos esconder o tempo todo. Ele iria nos encontrar.

–É só um pesadelo...

Agatha apertou minha mão tão forte que meus dedos começaram a ficar dormentes, nossas respirações estavam cortadas, nossas costas contra a máquina de lavar que nos servia de esconderijo.

Então aconteceu. Ele surgiu antes pudéssemos reagir. Sua mão afundou em meus cabelos rapidamente, no segundo seguinte ele me erguia do chão gargalhando como se estivéssemos acabado de perder no esconde-esconde. Tufos dos meus cabelos sendo arrancados enquanto o familiar cheiro de álcool me enojava.

Eu gritei. Gritei para que parasse, gritei para que Agatha corresse, gritei tão alto que senti minha garganta doer. Com meus gritos roucos misturando-se com o choro preso na garganta.

–Acorde, Vida!

Abri os olhos, pisquei repetidas vezes até um par de olhos verdes acastanhados me encararem com preocupação.

–Era só um pesadelo. – Jeff murmurou, suas mãos trabalharam cuidadosamente em tirar os fios de meu rosto com uma delicadeza intrigante.

Peguei-o de surpresa quando envolvi meus braços ao redor do seu pescoço como uma criança corre para os braços de sua mãe depois de uma queda feia. Entretanto ele não se afastou, pelo contrário, acomodou-me em seu colo de uma maneira protetora e eu tratei de aproveitar o movimento constante de seu peito, de sua respiração quente e o calor corporal antes que ele me privasse daquilo.

Fazia algum tempo que eu não tinha um pesadelo como aquele. Algumas semanas, talvez. Mas continuava sendo assustador como o primeiro que tive, ele não mudava muito, costumava ser a mesma perseguição, com os mesmos personagens e ele ainda conseguia assustar o inferno fora de mim. Se eu estivesse em casa, eu teria seguido o ritual de ir até a cozinha, preparar um café preto para mim e me empoleirar no sofá junto ao Bento assistindo desenhos animados que passavam na madrugada. Porém Jeff parecia uma opção suficientemente boa como conforto nesse momento.

Ele estava sendo um tanto quanto imbecil nos últimos tempos e enquanto houvesse uma trégua nisso, eu iria aproveitar.

–Você quer falar sobre isso?

Agindo de modo sensato, o sim era a melhor opção.

–Não. – Aconcheguei a cabeça contra seu peito. Seu coração tinha um ritmo envolvente como uma boa música de Ed Sheeran.

–Tudo bem. – Jeff fixou seus lábios em minha testa por uma fração de segundos, esse gesto já se tornando um hábito entre nós.

Quase vi fogos de artifício quando ele não me afastou, seus braços rodearam meu corpo e me firmaram contra ele. Em pensar que inicialmente eu não queria que ele compartilhasse a cama comigo...

–Você fez um bom trabalho hoje. – Ele falou baixinho, cortando a escuridão do quarto. - Com meu tio e tudo mais.

–Fiz? – Eu sabia que tinha feito. Agi conforme ele tinha falado. Interagindo nos moldes que seu tio Oliver, um sujeito carracundo e de mal com a vida, achava perfeito. Tirando o fato que eu quase dormi na hora da missa, fui muito bem, obrigada.

–Com certeza, Vida. Você foi mais que perfeita.

Uma sensação gostosa se apoderou de meu estômago. Fechei os olhos, desfrutando daquilo.

–Obrigada.

Nós passamos um bom tempo assim, eu poderia jurar que ele estava dormindo se não fosse pelas pontas de seus dedos desenhando coisas imaginárias nas minhas costas, sobre o tecido fino da velha blusa de Mickey que eu usava como pijama.

–Eu sinto muito pelo o que aconteceu com sua família, Jeff. – Falei baixinho. Já estava esperando ficar sem resposta quando depois de minutos, ele finalmente respondeu:

Tomou uma longa respiração. – Quem te contou?

–Marco, mas não fique chateado com ele, ok? – O que eu queria mesmo falar era que Marco tinha sido o único a me contar alguma coisa, mas engoli minhas palavras rudes.

Seus dedos pararam de desenhar em minhas costas e eu me arrependi de ter entrado naquele assunto.

–Eu daria tudo e mais um pouco para mudar o que aconteceu. Mas parece que quanto mais você tenta concertar um erro, mais erros você comete.

Ergui minha cabeça, meus cotovelos apoiados na cama, até que meus olhos encontrassem o seus na escuridão do quarto.

–Nós dois somos perfeitos colecionadores de erros, sabia?

Mais uma vez sua mão retirou uma mecha da minha visão, um sorriso fantasma brincando em seus lábios.

–A sra. Perfeita não erra. – Provocou.

–Palavras suas, meu amor. Não acho que minha mãe concorda com essa sua linha de raciocínio.

Jeff gargalhou, sua risada preenchendo cada espaço do quarto. Soaria muito psicótico dizer que era um barulho agradável de ouvir? Seus braços me prenderam contra ele novamente. Bem, eu adoraria uma prisão perpétua daquela.

–E acho que eu gostaria de te ter como um irmão.

–Um irmão? – Duvidou. – Você me quer como um irmão?

–Você parece ser mais legal como irmão do que como noivo de mentira.

–Acho que nossa relação seria um tanto quanto incestuosa, Vida.

Sorri de seu tom malicioso.

–Nada aconteceu que eu saiba. – Minha voz soou mais provocadora do que esperava. Beirando quase a um perigoso acusamento.

Prendi minha respiração quando seus lábios chegaram a minha orelha, sua respiração batendo contra meu rosto mais perto.

–Acredite em mim quando digo que não é por falta de querer. - Deslizou seu corpo por cima do meu, até mesmo no escuro seu sorriso era visível, seus membros rodearam meu corpo, suas mãos prenderam as minhas acima da minha cabeça. - Você é malditamente especial, Vida, e eu não quero estragar isso. Não quero te arrastar para meus problemas.

E depois de tudo ele ainda tinha coragem de me provocar assim, de mexer com cada célula traidora do meu corpo e ele conseguia, malditamente conseguia me ter na palma da mão se quisesse. Como um brinquedo disposto a participar da brincadeira a qualquer hora.

–Você vai me contar quais são seus problemas?

Mas eu soube no momento que seus lábios deslizaram de um beijo carinhoso no topo da cabeça até o canto dos meus lábios, que ele desviaria do assunto até o último segundo.

–Você sabia que fala enquanto dorme? - E então ele decidiu dedicar um maior tempo ao meu pescoço. Soltei um suspiro entre dentes.

–É...? - Eu poderia sentir meu corpo ficando cada vez mais quente. Minhas mãos teimando em afundar nos cabelos bagunçados a Jeff Buckley. Eu adorava-os. Dane-se se eu estava ficando descontrolada com esse homem a minha frente, eu não tinha colocado as desconfortáveis lingeries para nada e eu poderia jurar que ele estava ficando também um tanto quanto... Animado. Se é que você me entende, leitor.

–Você estava implorando para alguém correr. Quem quer que tenha sido, deve ter se tornado o Usain Bolt depois dos seus berros.

E foi assim que eu voltei à vida, como alguém volta a superfície depois de um longo mergulho. Os gritos, a voz da minha mãe bem clara, o medo transbordante de Agatha...

E meu desejo desmoronou.

Afastei os ombros de Jeff com dificuldade, mas ele tratou de recuar assim que notou minha reação. Sentei-me encolhida como uma bola o mais distante dele possível.

–Droga, falei algo errado, não falei?

Balancei a cabeça de negação rápido demais. Uma pequena quantidade, suficiente para encher o saco do Papai Noel, esse era o tamanho dos meus problemas. E lá estava eu de novo, como a antiga Alma, como alguém que jurei que nunca seria novamente.

–Eu só preciso... - Eu não consegui completar e Jeff não insistiu.

–Desculpe, Vida. Foi idiotice minha, você já deve estar acostumada. – Seus dedos tatearam hesitantes até encontrar os meus, espalmou minha mão assim que a achou no meio dos lençóis amassados.

Era a primeira vez que não recuava quando alguém tentava me reconfortar, eu deixei que ele apartasse minha mão como se esse simples toque fosse o suficiente para resolver um par de danos. Como se eu precisasse de conforto por ser fraca. Porque talvez eu fosse.

–Está tudo bem. – Repetiu seu mantra para mim.

–Você teve a sorte de ter uma boa família, Jeff. Não deixe que coisas ruins acabem com ela. - Como acabaram com a minha, quis acrescentar.

–Não vou deixar.

Deslizei novamente até o seu lado, menos intimamente dessa vez.

–Você pode falar aquilo de novo, por favor?

–O quê?

–Que está tudo bem.

Pisquei os olhos sonolentamente na direção dos seus. Eles sorriram para mim.

–Está tudo bem, Vida. - Colou sua testa na minha, pude enxergar as imperfeições de seu rosto, as rugas de expressão e eu adorei cada pedacinho. - Eu estou aqui.

E se eu tivesse muita sorte, ele ainda estaria ali amanhã e talvez depois. E com mais sorte ainda, eu não terei que fugir quando as coisas se tornassem difíceis.

Porque elas se tornariam.

***

Quando eu acordei na manhã seguinte Jeff já não estava mais lá, mas o seu cheiro ainda estava nos lençóis e nos travesseiros. Rolei algumas vezes na cama gigante até estar abraçada ao seu travesseiro, inebriada a sua quase presença.

Estava numa relação séria com o objeto fofo quando um som estridente me fez levantar da cama aos pulos. Meu celular apitava escandaloso do outro lado do quarto.

Com as mãos trêmulas de mais uma possível notícia ruim, peguei o aparelho. Era Agatha. Esfreguei as costas das mãos nos olhos. Mas que diabos...?

Que esteja tudo bem dessa vez. Que esteja tudo...

Alô? Tia Al? – Uma vozinha fina e estridente sussurrou do outro lado da linha. – Tia Al você já atendeu?

–Mel?

É.

–Mas o que...?

Tia, não tenho muito tempo. – E então ela tomou fôlego. – Presta atenção: mamãe e papai me colocaram em carreira vaso.

–O quê?

Carreira vaso sanitário, tia. Aquilo... Quando alguém prende a outra em casa.

–O quê? Cárcere privado?

Shh, mamãe disse que falar privada é feio. – Cochichou – Você tem que me salvar, a polícia não acredita em mim!

Santo Pai, era demais para uma pessoa só.

–Por favor, me diga que você não ligou para a polícia.

Liguei, só são três números, mas eles não são como os caras grandões do shopping, tia. A polícia do telefone é má.

–E o que você aprontou para seus pais, Mel?

Eu? Não aprontei nada, tia.

–Mel...

Nada.

–Melaine... – A linha ficou muda de repente, para logo em seguida a frase seguinte ser despejada num segundo só:

Eu joguei coca cola na cabeça da filha da amiga do papai numa festa.

–Mel!

–Ai tia, você só sabe falar meu nome, é? E a menina era muito chata mesmo. Você mesma disse que a gente não tem que aguentar gente chata na vida.

Massageei as têmporas, fechando os olhos.

Já decidi: vou fugir, tia.

–Mas...

– Vou pra Disney! Já quebrei meu porquinho de moedas.

Eu reprimi um riso nervoso daquilo tudo.

Depois eu tenho certeza que o Gru vai me adotar também. E então eu vou viver com os Minions. Você vai me visitar na casa do Gru, tia?

–Nós vamos sentir sua falta, Mel, você não pode fugir.

Não vão nada. – E então sua voz se tornou chorosa. – Você não viu como o papai gritou comigo.

–Ele só estava chateado.

Ele ficou mais que chateado.

–Ele ainda te ama.

Ama nada. – Gritou, seguido por uma fungada. – Ele me odeia e a mamãe também. Mas já decidi que vou viver com os Minions. Só preciso de ajuda para prender mamãe e papai.

–Você não quer prender seus pais.

Quero sim. Eles vão ficar no cantinho pra pensar pelo que fizeram comigo!

A porta rangeu do quarto e um Jeff gotejante surgiu, vestido uma calça de moletom folgada e retirando uma camisa qualquer. Perfeitamente recém saído de uma caminhada matutina.

Entrei em estado de hiperventilação enquanto Mel fungava do outro lado da linha. Quando meus olhos focaram em seu rosto, notei que uma das suas sobrancelhas estava erguida. Droga. Limpei a garganta, pressionando ainda mais o telefone contra a orelha.

Você me odeia também?

–Claro que eu não te odeio. Você sabe disso.

Jeff me lançou um olhar um tanto quanto engraçado enquanto fingia procurar alguma coisa na mala errada, a minha.

Tapei o telefone com a palma da mão, erguendo uma sobrancelha em sua direção.

–O que você está procurando nas minhas coisas, Jeff?

Ergueu as duas mãos para o alto. Revirei os olhos e voltei a falar com Mel, caminhando em círculos enquanto usava meu mantra para crianças que tinha aprendido num desenho animado: roube alguns doces da dispensa e tudo ficará bem.

Tinha se passado tanto tempo depois que consegui desligar que Jeff já estava de volta ao quarto, trazendo o cheiro de loção pós barba com ele.

Maldito seja os fabricantes daquilo.

–Problemas com a garotinha?

–Diagnóstico familiar de fuga para Disney.

Ele sorri, talvez pelo o que eu disse, talvez porque saiba que estou secando cada gota de água que escorre pelo seu corpo.

–Gosta do que vê, Vida? – Ele se aproxima alguns perigosos passos.

–Não imagina o quanto. – Sussurro, esperando que ele não ouvisse de verdade.

–Poderíamos...

Mas o barulho na porta faz com que ambos se sobressaltem.

–Jerry, saia de cima da Alma que estou entrando. – Essa foi sua chamada antes de Bárbara entrar no quarto fazendo o máximo de barulho possível. Uma de suas mãos cobria seus olhos, entrou no quarto e então seus dedos fizeram uma pequena fresta para que analisasse o quarto. – Oh droga, as coisas estavam começando a ficar quentes.

Corei violentamente.

–Não é...

–Poupe-me os detalhes, querida. – Acenou sua mão para mim para que eu me cala-se. – Eu já sei o que esse pequeno... Espera, não, não pequeno, esse grande garoto é capaz.

Eu quase vomitei. Lancei um olhar incrédulo para Jeff.

–Você já transou com sua prima?

–Eu estava completamente bêbado. – Deu de ombros, como quem não se importa. – Ela se aproveitou de mim.

Foi a minha vez de fazer um aceno com a mão. A vida sexual de Jeff não parecia tão atrativa se eu não estava nela.

–Eu vou tomar um banho. – E marchei com meu pijama de carneirinhos até o banheiro. – Só não usem a cama, por favor. Eu ainda durmo nela.

–Não se preocupe, Vida. Eu só tenho o intuito de usá-la com uma pessoa. – Sorriu meia boca para mim enquanto deslizava pela sua boxer com agilidade.

Tive que procurar normalizar minha respiração quando tranquei a porta do banheiro. Aquele homem... Aquela família... Simplesmente eu teria que ser hospedada num manicômio assim que saísse dali.

–Não entre mais assim no quarto, Bárbara. – Sua voz não soou brincalhona ao dizer isso.

–Posso corromper minha inocência se o fizer? – Zombou a mulher.

–Ela já está corrompida, puritana.

Bárbara riu.

–Ainda não acredito que meu priminho finalmente sossegou com uma mulher só.

–É uma pena, mas isso não acrescenta em minha vida.

Fez-se um curto silêncio no quarto. Tempo o suficiente para que nota-se que eles já tinham ido. E um sentimento de descontentamento borbulhou em mim. Eu não queria que Bárbara tocasse Jeff, não queria que seu corpo se embrulhasse com mais ninguém pela manhã que não fosse o meu.

E eu soube assim que o sentimento surgiu, que eu estava completamente ferrada. Só um pouco mais do que eu já estava.


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Notas finais do capítulo

E feliz carnaval para quem é de carnaval.
E feliz feriado para quem não é. Como eu :)
Nada muito importante para dizer hoje. Só que eu adoraria um prato de brigadeiro bem nesse momento.
Só isso, nada mais.
Ok, talvez John Mayer como brinde.