A Flauta-Vértebra escrita por themuggleriddle


Capítulo 1
a flauta-vértebra


Notas iniciais do capítulo

Fic completamente inspirada pela "Quente e confortável, como a morte" da Thams/Brassclaw, que vocês deviam ir ler porque é linda. Então, apesar de serem épocas completamente diferentes, é uma fic complementar, eu acho.



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"Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História. 
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras."

- Vladimir V. Maiakovsky

****

Era incrivelmente estranho não ouvir o próprio coração batendo. Claro que, na maioria das vezes, uma pessoa nem sequer presta atenção nos próprios batimentos, mas ele já estava acostumado a ouvi-los e senti-los em situações como aquelas. E Tom, realmente, conseguia sentir seu coração batendo contra a parede de seu peito, assim como conseguia ouvi-lo dentro de sua cabeça. Conseguia sentir isso há um segundo atrás e, de repente, só ouvia silêncio. Bom, não, não completo silêncio, pois ainda ouvia a respiração acelerada de seu filho, as maldições que o rapaz murmurava e os passos apressados deste.

Não tinha idéia de quanto tempo ficou no chão. Não que sentisse o chão – na verdade, sentia, mas muito pouco -, mas conseguia ver o teto. Ou um borrão do teto. Um borrão que parecia focar-se mais e mais lentamente. E parecia quase impossível se mexer, como se seus músculos estivessem completamente frouxos, até que conseguiu. Sentiu o próprio peito expandir no que seria uma respiração profunda caso algum ar tivesse entrado em seus pulmões. Sentar-se foi automático. Olhar em volta também. Sentir algo em seu peito apertar ao ver os corpos de seus pais fora inesperado. Primeiro porque aquele pequeno momento de paz – ou silêncio total – quase o fizera esquecer-se do que havia acontecido... Ou talvez tivesse sido apenas um sonho ruim. Segundo porque se seu coração parara de bater, ele não devia sentir aquele aperto ali. Se seu coração parara de bater, ele estava morto assim como seus pais, mas ainda estava ali... Por quê?

“Parece fácil, não?” Tom ergueu os olhos, vendo um homem parado logo ao lado da lareira, de costas para si. Parecia entretido em olhar os retratos que ali haviam. “Nessa vida, morrer não é difícil...”

“O difícil é a vida e o seu ofício,” completou Riddle, automaticamente, enquanto forçava a si mesmo a se levantar do chão. Quando olhou para trás, o seu cadáver estava ali. Mais pálido do que o normal, os olhos já ficando foscos e os lábios já começando a ficar de uma cor meio arroxeada. “Quem...?” Olhou rapidamente para os pais. Sua voz parecia sair quase que apertada. “Eles...?”

“Já foram. Já estão juntos e te esperando,” disse o homem, finalmente virando-se. Tom franziu o cenho. Ele conhecia aquele rosto de algum lugar. “Vamos, sobe entremeado às estrelas-”

“Você...” Riddle piscou uma, duas vezes, já não sabendo se sentia-se perdido ou curioso. “Isso é Maiakovsky. Você-”

“Isso.” Ele não chegou a sorrir. Tudo o que apareceu no rosto do homem foi um curvar de canto de lábio muito sutil, algo que quase se perdia por sob as sobrancelhas pesadas que deixavam o rosto dele sério.

“Você é a Morte,” disse quase sem pensar. “E você é Maiakovsky.”

O homem suspirou pesadamente, encolhendo os ombros.

“Por que Maiakovsky?” perguntou Riddle, antes que o outro tivesse chance de falar algo.

“Qual a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando eu falo morte?” perguntou Maiakovsky – se é que poderia chamá-lo assim – e, antes que Tom pudesse falar qualquer coisa, já respondeu: “Hoje executarei meus versos na flauta de minhas próprias vértebras?”

Riddle ficou encarando-o por um longo momento. Aquela não era a única coisa que lhe vinha à mente, mas com certeza eram os versos que sempre ecoavam no fundo de sua cabeça quando se falava de morte. Lembrava-se de seu pai uma vez lendo aquele poema em russo e as palavras sempre vinham misturadas: o som do russo, forte, sempre abafando o inglês, inofensivo ao lado da língua eslava.

“Por isso.”

“Mas você não é Maiakovsky...”

“Ou sou? A morte pega todos uma vez na vida e, cada vez que os pego, descubro um pouco – ou muito – sobre tal pessoa... E, quando descobrimos sobre as pessoas, quando as conhecemos, nos tornamos um pouco elas, não acha?”

“Pensei que a morte fosse simples,” murmurou Tom.

“Eu sou,” disse Maiakovsky. “Mas você deveria saber que é na simplicidade que se encontra a complexidade.” Ele ergueu uma mão, mexendo os dedos. “Algo extremamente simples. Quantos músculos eu mexo para fazer isso?”

“Muitos.”

“Vê? Você entende isso, Tom. E entende muito bem.” O homem se aproximou dele. Ele era maior do que Riddle, mais encorpado, e passava a sensação que as suas palavras lhe passavam quando ele as lia em livros: algo rude, sem lapidação alguma, mas incrivelmente interessante e bonito. “Agora, acho que está na hora de ir.”

“Por que não veio da outra vez?” perguntou Tom, virando-se para olhar o próprio cadáver.

“Em vinte e dois? Porque ainda era cedo demais,” disse Maiakovsky, encolhendo os ombros. “Você ainda tinha que viver mais.”

“Eu não-“

“Você viveu. Você viveu para pintar mais, para escrever mais, para desenhar mais, para tocar mais. Você viveu para ler A Flauta-Vértebra mais vezes e decorar Lílitchka. Você viveu para ver o sol nascendo mais vezes e sentir o vento do mar. Você viveu para aprender a conjugar o verbo ‘amar’ em russo outra vez e para ouvir sua mãe cantando mais vezes. Você viveu para conhecer o seu filho, apesar de que não foi na melhor das situações,” disse o homem, apoiando uma mão no ombro do outro. “E eu sei que você sabe o valor dessas coisas, Tom. De qualquer forma, eu vim agora, quando pediu, apesar de ainda ser cedo. Mas você ficaria insistindo caso não viesse e, eventualmente, iríamos nos encontrar, ainda cedo demais... Já que vim para os seus pais, já o levei. Então, atendi o seu pedido.” Ele sorriu, outra vez aquele sorriso minúsculo.

“Você sempre aparece...?”

“Não. E nem sempre me reconhecem.” Ele riu baixo. “Na maioria das vezes, continuam acreditando que sou outra pessoa. Como você descobriu?”

“Está falando inglês,” disse Riddle prontamente. “E não tem sotaque algum.”

“Ora...” O homem franziu o cenho. “Me desculpe por isso.” Agora a voz dele saíra mais carregada, com os erres mais fortes. “Ou talvez eu tenha feito de propósito, já que sabia que você não espernearia e insistiria em ficar ao me ver.”

“Como...?”

“Porque você pediu por mim. Você sabe que não estava implorando para continuar vivo ali.” Maiakovsky apontou para o ponto onde seu corpo estava. “Você estava implorando para morrer, por mais que agora esteja mentindo para si mesmo e dizendo que não sabia do que falava. Querer morrer não é um pecado, ainda mais na situação na qual estava.” O homem empurrou-o de leve na direção da porta que levava ao escritório de seu pai. “Seus pais foram tranqüilos também. Foram de encontro um do outro muito rápido depois que disse que logo você estaria lá.”

Já estavam quase na porta quando Riddle parou e virou-se para observar a sala de visitar. Ele estava morto e, seja lá para onde a Morte o levasse, ele não veria mais a sua casa, certo? Seria bom lembrar-se dela...

“E meu filho...?”

“Tudo em seu tempo, mas poderá falar com ele ainda, um dia.” A mão do homem em seu ombro o forçou a olhar para a frente de novo. Maiakovsky empurrou a porta aberta e Tom não pôde deixar de arquear uma sobrancelha ao ver que ali, do outro lado, só havia o escritório de seu pai. “Pode ir.”

“Vou passar a eternidade aqui?” perguntou, sentindo o desespero crescer dentro de si. Ele queria morrer. Ele morrera... E agora teria que ficar para sempre sozinho naquela casa? “Eu não deveria ir... Para algum... Algum lugar...?”

“Aqui é o seu lugar, Tom,” disse a Morte. “E o lugar dos seus pais. E, um dia, do seu filho.”

Riddle encarou o homem por um momento, antes de voltar a olhar o escritório de seu pai.

“Até logo, até logo, companheiro,” disse a Morte, aquele sorriso outra vez em seu rosto, enquanto ele lhe dava as costas.

“Guardo-te no meu peito, e te asseguro: o nosso afastamento é passageiro,” murmurou Tom, sem nem olhar para trás enquanto continuava a andar. “É sinal de um encontro no futuro.”


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Notas finais do capítulo

1) "Nessa vida, morrer não é difícil/ o difícil é a vida e o seu ofício": parte do poema A Serguei Iessiênin, do Maiakovsky.

2) "Você sobe, entremeado às estrelas": A Serguei Iessiênin.

3) "Hoje executarei meus versos/ na flauta de minhas próprias vértebras": parte do poema A Flauta-Vértebra, do Maiakovsky.

4) "Até logo, até logo, companheiro / Guardo-te no meu peito, e te asseguro:/ o nosso afastamento é passageiro": parte do último poema escrito por Serguei Iessiênin, o qual ele escreveu com o próprio sangue depois de cortar os pulsos, e antes de se enforcar. Escrito para Maiakovsky, que abominava a idéia do suicídio e, no fim, se suicidou com um tiro também.