Oliver escrita por AHB


Capítulo 1
Capítulo Único




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Cambridge, 1892

 

A sala de aula estava cheia até a última fileira. Nenhum de nós, alunos de medicina psiquiátrica, perderíamos as aulas expositivas do professor Richards. Eu estava particularmente empolgado, não havia nada mais magnífico que ver a ciência moderna em ação. O professor mostrava a paciente, uma pobre moça loura, incapacitada pela histeria. Há poucos séculos, uma coitada como aquela seria considerada uma bruxa pelos religiosos, então donos de todo processo educativo. Mas agora, a Razão da modernidade jogava luz sobre o problema da loucura, a tratando e amansando, para que, em paz, pudesse ser retirada da vista dos cidadãos de bem. Vejo a louca se debater e gritar. O professor descreve que aquele era um caso extremamente perigoso e que outras terapias menos radicais não funcionariam. Eu estava muito curioso para conhecer essa nova técnica. Os ajudantes sedaram a paciente, então ela foi posta na mesa bem ao centro da sala. Que espetáculo! Assisto o mestre buscar os instrumentos em sua maleta preta, cujo fecho exibia o selo dos maçons. Ele pega um pequeno martelo e um instrumento metálico, fino e comprido, que é introduzido através das vias nasais da doente. Com pequenos toques em pontos diferentes da fronte branca da moça, está tudo feito, segundo as palavras do professor. Ela estaria calma e silenciosa, quando acordasse, na manhã seguinte. Havíamos encontrado a cura para os loucos terminais, aquilo era genial! Não pude deixar de levantar-me e aplaudir ao fim da aula. Alguns colegas estranharam minha atitude, mas nenhum deles realmente compartilhava minha paixão pela solução revolucionária para os conflitos mentais da humanidade. Se houvesse Deus, fizera os homens para se capacitarem em tais oficios perfeitos.

– Caro Oliver! – era o professor Richards, indo conversar comigo, depois de ter passado mais explicações sobre a ação da técnica no cérebro humano e dispensado os demais alunos – Gostaria de dizer que aprecio muito seu interesse. Você certamente é um dos melhores alunos que já tive, ouso dizer.

Agradeço. Então ele explica que um grupo de antigos alunos bem sucedidos iria chegar dali a pouco mais que uma semana, para conhecer o departamento de Estudos da Mente. E ele precisava de minha ajuda, para que monitorasse a visita ao setor de anatomia, afinal seria ótimo que os convidados, senhores beneficentes que doariam generosas quantias à universidade, vissem o talento dos estudantes em ação. Além disso, eu me saia particularmente bem nas aulas de anatomia, não que fosse desprezível meu esforço nas demais disciplinas. Fico muito contente em receber tal proposta e já antecipo ao professor que irei preparar por conta própria a exposição no salão de anatomia. Ele pareceu ficar contente, afinal devia ter muitas outras coisas a resolver.

Sentindo-me realmente satisfeito, como há muito não sentia, logo deixo o prédio do campus e caminho pelas ruas sob a luz dos lampiões a gás. É uma noite fria e uma rala chuva cai sobre a cidade, encharcando meu casaco e chapéu. Não me importo, apesar de conhecer inúmeras doenças que poderia pegar por tamanho descaso. Observo um grupo de prostitutas encostadas nas paredes sujas dos prédios de uma área pobre. Também vejo mendigos e um homem cambaleando, com uma garrafa na mão. Quando a ciência moderna poderia tratar dessas chagas imundas que empesteavam Cambridge e tantas outras cidades? Viro as costas para as criaturas desgraçadas, atravessando as ruas até a pensão de estudantes onde vivia. Lembro-me da louca na aula dessa noite. Ela tinha olhos oblíquos e azulados, fazia-me pensar em Sylvanna.

– Ei, olha se não é o senhor misantropo! – um rapaz alto e pálido, Peter, acenou quando me viu entrar pela portinhola da pensão.

– Deixe-o em paz! – ralhou a senhora Pidget, a governanta da pensão. Ela sabia que eu era um aluno dedicado e que não perdia meu tempo com festejos e namoros, coisas comuns do cotidiano estudantil, por isso, me defendia até além do necessário – Você deve estar cansado, Oliver.

Ela acabou prometendo levar a sopa até meu quarto, já que me atrasei para a janta. Passo sem dizer nada pelos risonhos colegas de Peter. Subo as escadas lentamente e deixo meu casaco pendurado em um conjunto de ganchos para roupa que havia no corredor. Ao contrário das casas da época, não havia muita decoração, apenas os ganchos e uma imagem religiosa. Imagino que talvez Pidget não quisesse arriscar que estudantes apressados e agitados pudessem quebrar uma decoração mais adequada. Sem preocupar-me mais com isso, entro em meu quarto e logo caio sobre minha cama simples e um pouco desconfortável. Não queria pensar em Sylvanna. Ela era minha prima, quase minha irmã, por ser filha da irmã de minha mãe. Mas agora Sylvanna era uma menina morta... Ouço a governanta dar leves batidas na porta, trazendo meu jantar.

Naquela noite não consegui dormir. Era horrível, um pesadelo. Podia rever minha jovem e bela prima caída ao chão, gritando palavras obscenas e agitando as pernas e braços, tal qual a paciente com olhos semelhantes aos dela. Histeria. Ela gritava o nome de "Jamie". Não demorou que minha família concluísse que tratava-se de possessão pelo demônio. Certamente que meu falecido pai não concordava, dizia que estava mais do que claro que a menina precisava de um médico, e não de um "mágico charlatão que piorasse seus sintomas", mas logo já haviam encontrado um padre católico, um tanto quanto adepto de procedimentos mais arcaicos, proposto a realizar os rituais de exorcismo. Não conseguia impedir minha mente de formar a imagem de Sylvanna amarrada aos ferros da cama, parecia que a haviam crucificado. Ela era tão bonita, eu lembro que os seios virginais dela estavam expostos, pois ela havia gasto todas as forças, lutando pela liberdade, até as roupas folgarem em seu corpo esguio. Ao mesmo tempo que estava aterrorizado pela lembrança da figura dela, que de repente viera me assombrar, não podia, não conseguia evitar de tocar meu corpo de maneira libidinosa. Pensava nela e em Jamie. Fora tudo minha culpa.

Passei dois dias ardendo em febre, sem poder deixar o leito. Aquilo era terrível, pois iria atrasar minha preparação para os seminários. Tinha vergonha de mim mesmo por ter-me deixado abalar pela lembrança de algo que acontecera quando era apenas um garoto jovem e tolo. Há muito já havia destruído qualquer lembrança desse passado: fotos, cartas, anotações... Jogara tudo na lareira, para que queimasse como a antiga casa de nossa família, pois Sylvanna, enlouquecida pela dor de ter perdido Jamie e convicta de que estava possuída por um espírito maligno, ateou fogo a casa enquanto todos dormiam.

A família e os criados escaparam ilesos, exceto minha jovem prima, que ficou presa entre as chamas. Foi terrível, chegaram a escrever notas jornalísticas sobre o assunto. Então tudo silenciou, nós reconstruímos nossas vidas em paz e, em paz, deixaríamos o passado. Isso que era certo. Pensar no futuro, nas maravilhas do mundo moderno, na cidade! Principalmente eu, que tinha que me concentrar em realizar a apresentação perfeita, a chave para ser bem sucedido como médico da aristocracia.

Convalescente, recebi uma folga da universidade. Fiquei surpreso em receber uma visita do professor Richards. Ele parecia preocupado, tanto comigo, quando com meu seminário. Tranquilizei o bom mestre, mostrando anotações exemplares de tudo que deveria ser feito. Com apenas um dia de antecedência, prepararia tudo conforme estava planejado. Tudo ocorreria bem, apesar do incidente.

Estava tranquilo, certo do sucesso de meus esforços. Caminhava decidido pelos corredores da faculdade, tendo as chaves do laboratório de anatomia em meu poder. Um grande privilégio para um estudante, mesmo que em vias de concluir o curso como eu. Mostraria ao professor Richards que ele não fizera uma escolha incorreta. Sorri para mim mesmo e estava prestes a cantar uma vitória prematura quando a vi. Os cabelos muito curtos e os olhos azuis oblíquos muito abertos, lá estava a pequena moça que fora submetida a lobotomia quase uma semana atrás. Que faria ela parada no meio do corredor do colégio, vestindo nada mais que uma bata de paciente? Fiquei irritado, isso era uma falha grave, ela já deveria ter sido removida para o asilo, lugar mais seguro para si mesma e para os outros. Caminhei até ela e a segurei pelos pulsos.

– Você vem comigo.

– Dançar... – ela murmurou, bobamente. A bata caiu um pouco pelos seus ombros, parecia muito com Sylvanna prestes a enlouquecer. Tentei equilibrá-la, mas até seus movimentos pareciam amolecidos. Ela caiu, tentando fazer um movimento de dança e levou-me junto. Ela ria e me abraçava.

– Dançar! - repetiu novamente. Muito nervoso, eu levantei e a puxei com força. Ela percebeu que não era um bom momento e parou de rir. Me encarou, séria.

– Tente ficar quieta, moça. - continuei a falar, mais comigo mesmo do que com ela, esquecido de que isso era um indicador de insanidade - Não tem ninguém aqui. O que eu faço com você?

Então notei que ela estava sentada no chão, brincando com os próprios dedos. Inofensiva depois do tratamento, afinal. Suspirei. A decisão mais racional era mantê-la junto comigo até aparecer a enfermeira tola que deixou uma paciente escapar. Eu tinha mais com o que me ocupar. Fiz com que ela me seguisse até a sala de estudos anatômicos.

Para a maioria das pessoas aquele salão seria um lugar impressionante, com vários frascos cheios de pedaços de corpos humanos, aquele odor de formol, instrumentos de trabalho médico, sinais de sangue sobre as bancadas e um clima pesado e solene de lugares onde habita a morte. Acendi a luz elétrica que naquela época começava a ser utilizada largamente. Um tanto arrependido de ter trazido a moça para um lugar onde havia tantas coisas de vidro e objetos metálicos, a fiz sentar perto da entrada e lhe dei algumas folhas do meu caderno e um lápis, mostrando que deveria desenhar. Ao menos ela conseguia rabiscar a esmo os pedaços de papel.

O som de pancadas pesadas na superfície da porta metálica do laboratório de anatomia me sobressaltou. Fazia bem mais de duas horas que eu estava entretido organizando as coisas para o seminário. Trabalhava em uma bela peça: um cérebro que outrora pertencera a um indigente. Um pouco frustrado, passei pela mocinha entretida em contornar várias vezes a própria mão e atendi a porta.

Era um sujeitinho bem desagradável, um ladrão de corpos. Era o responsável por conseguir cadáveres para a faculdade. Isso era um tremendo atraso, mas as pessoas eram muito supersticiosas ao se tratar dos mortos e, principalmente membros de grupos religiosos, faziam tudo que podiam para atrapalhar o desenvolvimento da Ciência, então ficávamos obrigados a lidar com tipos criminais como esse.

– O que quer, Francis?

Ele arqueou as sobrancelhas grossas. Era um homem baixo e ruivo. Ele mostrou uma maca móvel sobre a qual um pano branco cobria um corpo cujas formas por baixo do lençol se mostravam masculinas, provavelmente de um jovem. Obviamente Francis trouxera minha encomenda, havia pedido um objeto de estudo completo, para demonstrar aos visitantes e bem-feitores dessa universidade, que além da competência, tratávamos de forma respeitosa essas peças que um dia foram humanas.

– Foi-se hoje de madrugada, tomou um tiro em um duelo e sangrou até a morte. Os legistas já limparam tudo, iam mandar para o cemitério dos indigentes, já que ninguém sabia quem era.

Agradeci o homem e lhe dei duas libras como gorjeta. Muito satisfeito, tratou de sumir de vista o mais rápido possível. Certamente ele não era um tipo bem vindo em nosso campus.

Puxei a maca sem muito esforço, trazendo-a para o meio da sala, onde havia uma lâmpada mais baixa e grande, especialmente para dissecações. Pretendia banhar o corpo com resinas e materiais que causassem coagulação para que a demonstração fosse o mais limpa o possível. Certamente nossos visitantes eram doutores e estavam acostumados com os procedimentos cirúrgicos, mas queria mostrar competência.

Meu coração quase não foi capaz de completar a diástole no momento em que puxei o pano. Senti um aperto forte na altura do estômago. Aquela figura morta era a imagem perfeita de Jamie. "Não, não... Jamie morreu a anos" eu procurava ter isso em mente. Aquele belo rapaz de cabelos castanhos e crespos tinha um buraco de bala na região do fígado, semelhante ao que eu fizera em Jamie. Sim, eu matei meu melhor amigo, Jamie. As feições dele eram suaves e delicadas e se esse rapaz não estivesse morto, teria os mesmo lábios bem vermelhos e as faces afogueadas. Ele devia ter sido bom em sela e caçadas, igual a Jamie, pois tinha o mesmo físico de quem ama o ar livre. Era trágico estar morto. Assim como Jamie, assim como Sylvanna que o amou tanto. Repentinamente preocupado, procurei a moça que sofrera lobotomia, onde ela estava mesmo?

Dei com os olhos azuis dela. Me encarava impiedosamente, como Sylvanna costumava fazer. Ela era a mulher mais bela que já havia visto. Eu a amava e amava Jamie, não podia suportar vê-los juntos, me pedindo para ser padrinho de seu casamento. Eu... Eu era um monstro, um assassino e... Chocado, olhei do cadáver para a moça.

– Desculpe, por favor. Deixem-me em paz! – eu jamais acreditei em fantasmas, mas não podia deixar de pensar que eram os espíritos deles me punindo por ter sido tão egoísta, por ter lhes destruído a felicidade simplesmente por não poder realizar minhas fantasias mesquinhas. Comecei a chorar e a tremer, em toda a minha volta havia uma orgia infernal de corpos nus dos homens e mulheres condenados. Eu ouvia sussurros lânguidos, gemidos de prazer e ouvia também os berros de Sylvanna sendo queimada viva e Jamie dizendo, pouco antes de morrer, que eu jamais seria feliz. As chamas dançavam na frente de meus olhos, estava suando frio. Jamie! Sylvanna! Por favor...

Sylvanna tocou meu rosto, suas feições rosadas e angelicais pareciam remoer-se de pena. Murmurou que tudo estava bem. Atrás dela, estava Jamie, calado e sereno. Notei que ele e Sylvanna estavam nus. Suspirei. Eu os amava, os adorava, eram minha religião. Sofria uma eternidade pelo que tinha causado a eles.

– Por favor, me perdoem.

Ambos me abraçaram e cada um deles tocou meus lábios com os próprios lábios. Queria que ali fosse meu fim, queria morrer fazendo amor com os santos. Recebendo o perdão deles através de carícias que quase me faziam desmaiar de tão intensas e perfeitas.

– Jamais vos abandonarei novamente. Eu vos amo.

Eu ria, ria e ria.

 

– Por aqui, senhores – disse o professor Richards, empurrando a pesada porta metálica do salão de anatomia.

O horror foi geral. A esposa do Dr. Fletcher desmaiou. Dr. Carrow, o diretor do curso, precisou sair às pressas, para vomitar. Outros fizeram ruídos de indignação, enquanto um senhor bem idoso perguntava a Richards porque resolvera ser tão ofensivo. Richards abanou a cabeça e correu com dois ajudantes que o acompanhavam para conter Oliver, que nu e coberto do sangue de uma pobre louca, agarrava-se aos cadáveres da menina e de um desconhecido, rindo como se não fosse haver amanhã.

Quando se acalmou, depois de doses altas de tranquilizantes, ainda tentou explicar que estava apenas fazendo amor com seus noivos. Mas já era tarde para tentar salvar-se, pois naquela semana ele seria a figura a mostra na aula expositiva. Seria testemunha e cobaia na nova e revolucionária maneira de tratar a insanidade. Tremia horrores ao saber que esse seria seu destino, mas qualquer coisa era melhor que alucinar com Sylvanna e Jamie rindo-se e perguntando a Oliver porque não se juntava logo a eles.

– Eles estão bem aí! – o rapaz gritou para o enfermeiro, quando a porta de sua cela no asilo de loucos fechou com um estalo.

 

FIM


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