CAPÍTULO 4 - AGORA

Eu estou numa discussão acirrada comigo mesma. A razão e a emoção se debatem dentro de mim, cada uma tentando ocupar mais espaço, ambas colecionando vitórias e fracassos de segundo em segundo. Mas isso não é o pior. Na verdade minha mente e meu coração – em sentido conotativo, obviamente – querem a mesma coisa. Eles me empurram para um penhasco desconhecido que fica na margem da Linha de Caça. O motivo, porém, é o que diverge. A razão espera que eu desça à Terra; é missão minha salvar os americanos de uma iminente ruína. A emoção espera que eu tome o lugar que devia ser da minha irmã; quer que eu aja como ela teria agido.

Atravesso a Linha num avião (especial, é claro. Os comuns nem sonhariam em encontrar algo no céu além de… céu! Sem letra maiúscula). Irônico, né? Mas se os humanos vissem um anjo batendo asas acima de suas cabeças… Chego ao aeroporto John F. Kennedy, em NY, completamente perdida. Uriel, um arcanjo de cara fechada, veio comigo. Vamos até um terminal de desembarque e eu retiro minhas malas. Harriet Page Surise – não há sobrenomes no Céu, inventaram esses para mim –, nascida em véspera de natal – mais uma invenção dos historiadores; minha favorita –, Oklahoma – ser do interior é uma boa desculpa para que eu fique perdida –, com um monte de documentos falsos e um cartão de crédito ilimitado. A “nova eu” se encaminha, arrastada por Uriel, para um flat no coração da cidade. É bastante parecido com o lugar onde morava no céu, tirando o fato de ficar no décimo-terceiro andar de um prédio com vinte deles.

A vista que eu tenho da janela é linda, mas não me deixo enganar; a que eu tinha olhando de cima da Linha era surpreendentemente melhor. Arrumo minhas roupas novas dentro de um guarda-roupa. Estou usando botas de salto, sobretudo vinho e uma calça tão apertada – chamam-na de legging – que me faz sentir saudades dos jeans grandes demais que eu usava quando pequena só pra parecer mais velha.

Uriel para ao meu lado e espera até que eu dissipe meus devaneios. Ele tem algo nas mãos e me entrega. É um arco de madeira simples, iniciante para qualquer um, mas “em minha mão vira uma arma letal”, lembro-me das palavras do Conselheiro. Suas flechas não têm nada de especial. São feitas também de madeira, as pontas nem são assim tão afiadas. Atiradas por mim, porém, “podem tanto ferir quanto salvar uma alma”. Esse jogo parece perigoso demais para mim. Aceito a arma sem falar nada e bato continência para o arcanjo. Ele tem a pele quase tão escura quanto suas asas, nunca sorri, mas é um fiel seguidor de Deus. Retribui minha reverência e sai do apartamento. É minha deixa para começar o que eu vim fazer…