Give Me Love – Novatos escrita por Giulia Bap


Capítulo 4
Capítulo 3 – Anjos Humanos


Notas iniciais do capítulo

A partir desse capítulo, cada um vai começar a ter sua própria trilha sonora. Decidi que seria só a partir desse porque os outros eram apenas introdução. Vou postar os vídeos das músicas nas notas finais. Espero que gostem! *-*



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Estou deitada, sei que existem luzes acesas logo acima de mim apesar de não ter ainda aberto os olhos – bolinhas coloridas fazem malabares por baixo de minhas pálpebras cerradas. Aos poucos os sons ao meu redor começam a fazer sentido, as vozes agora parecem ter donos, eu sei que não estou sonhando. “Você disse que ela era tão esperta quanto a irmã.” Uma voz masculina meio falha, mas autoritária, grasna – a alguns metros de mim, pude supor. “Mas é!” Reconheço a voz como sendo da baixinha branca-de-neve de araque. “Ela não sabia de nada! Essa menina não compreendeu, se não compreendeu é porque sabe do que sabe e não raciocina.” A voz grosseira retruca. “Ela é mais forte!” A omissa anjo-da-guarda tem voz chorosa. “Por Deus, Gaia! Sabe bem que não estamos procurando anjos fortes!”

Abro os olhos finalmente e os cubro com as costas de minhas mãos. As luzes são tão fortes que tive medo de ficar cega. Gaia (esse é o nome dela, não?) afasta de mim as lâmpadas e eu posso saber onde estou. A sala é enorme e condecorada, cheia de lustres, uma mesa de jantar que poderia comportar quatro vezes a população do Céu. As paredes em um tom amanteigado de bege carregam várias ornamentações como silhuetas de árvores, flores e ondas, tudo em um tom mais escuro. Na parede ao norte, quadros que retratam a Santa Ceia – uma passagem bíblica criada pelos historiadores; a preferida de minha mãe –, todos possivelmente pintados por mãos humanas. Monumentos, esculturas, taças que são espalhadas pela mesa de mogno, taças do mais puro cristal. E sentado bem na ponta daquela mesa está um homem baixinho, forte e vestido com roupas humildes demais – contrastando com aquele lugar luxuoso. Ele sorri para mim e eu não me sinto à vontade em retribuir a gentileza. Ainda estou deitada e logo noto que é uma maca hospitalar – já vi carregarem anjos feridos para hospitais nessas coisas, servem para manter o corpo ereto até que se recupere. Se eu pensava que as roupas maltrapilhas daquele homem contrastavam com a sala, minha camisola quase transparente e aquele leito que nenhum decorador se atreveria em colocar no meio de um lugar tão bem adornado estão completamente fora do lugar. Sento-me, encolhida, braços cruzados na tentativa de recuperar um pouco de minha dignidade – boa parte dela se esvaiu quando pude notar que eu estou completamente nua por baixo da camisola de papel.

“Quer se trocar antes de conversarmos?” Ele pergunta, notando meu desconforto. Assinto com a cabeça. “Dê roupas novas a ela e a conduza até a varanda, penso que talvez não deva estar familiarizada com essa sala de jantar tão exagerada.” Ele dá ordens a Gaia e ela segura minha mão direita para guiar-me de volta ao corredor onde Laura estava. Uso tudo de mim para bloquear um iminente flashback e continuo andando. O corpo de minha irmã não está mais lá, estirado. Penso que devem tê-lo mandado para minha família. Eles sabiam que fazer o teste… isso pode matar. Mas é raro, e sempre há aquele errôneo pensamento de que “só acontece com os outros”. Não se deixe enganar, anjos passam longe da perfeição – tanto é que existem os demônios. Sentimos dor como humanos e nos enganamos como eles. A diferença é que controlamos nossos ímpetos – ao menos a maioria: Laura é impulsiva e emotiva. Ou melhor, era. Meus pais vão sentir sua falta mais que sentiriam a minha. Se fosse eu no lugar deles não seria diferente.

Entramos num banheiro, desses que a gente vê em locais públicos. Tudo muito mais limpo e arejado que no espaço humano. O Céu e a Terra, se não pelo estado de conservação muito maior aqui encima entre outros detalhes, são irmãos gêmeos. Gaia pede que eu espere lá. Encaro meu reflexo no espelho enorme que cobre toda a parede. Estou bem. Tiro a camisola de papel e vejo algumas manchas roxas no meu ombro, mas fora isso, perfeitamente normal. Só então vejo, encolhido acima de minha cintura, um par de asas. Imagino-as abrindo, nada acontece, como se fossem acessórios sobre os quais não tenho controle. Inclino-me sobre a pia de mármore e lavo o rosto, esfregando os olhos até que eles possam se abrir completamente. Gaia volta com uma blusa branca de algodão e um cardigan verde-oliva, ambos com um buraco nas costas, bem na altura das asas. Também traz calças jeans que me servem perfeitamente e sandálias de tiras. Visto-me em silêncio. Não me importo que aquela mulher me veja nua, ela parece indiferente, como trouxesse uma muda de roupas para trocentas garotas por dia.

Subimos uma escada completamente oculta pela penumbra do fim do corredor. Sem iluminação alguma, tropeço nos degraus várias vezes; e não é porque sou desastrada ou descoordenada. Na verdade, tenho mais controle sobre meu corpo que sobre minha própria mente. Acontece que cada degrau era maior que o outro, tanto em largura quanto em comprimento. Uma armadilha, penso, para que os intrusos fizessem bastante barulho ao tentar subir e despertassem quem quer que esteja montando guarda. Uma armadilha nada convencional (e admito, difícil de burlar, se não fosse pela branca-de-neve eu teria levado tantos tombos que chegaria ao topo numa cadeira de rodas). Lá encima há uma espécie de plataforma. Não é um segundo andar – isso não existe no Céu. É uma varanda, como o homem havia dito para Gaia alguns minutos atrás. Uma estufa é a única área coberta do lugar. O vidro embaçado transforma a paisagem dentro dela em um borrão colorido.

“Olá Harriet.” O homem maltrapilho diz. Veste uma blusa encardida de algodão e calças jeans cujo tecido, de tão sujo e surrado, já desbotou e amarelou. “Olá.” Sendo ele um homem de evidente superioridade – vejo isso pelas ordens que deu à minha acompanhante pouco agradável – não achei estranho que soubesse meu nome. Mas eu queria saber o dele. “Está indignada e confusa, certo?” “Está tão evidente assim?” Por alguns instantes deixo-me levar pelo ímpeto, exatamente como Laura teria feito. Ele ri, satisfeito. “Desculpe-me Gaia, vou começar a dar mais créditos a você. Essa garota é espertinha.” Apesar de se dirigir à baixinha ao meu lado, continua me encarando. “Por onde posso começar?” Dessa vez pergunta para mim. Nem preciso pensar antes de falar. “Quem é você?” O homem parece contrariado. “Esperava uma pergunta do tipo… Minha irmã está morta?” Imita minha voz. Não acho graça. Ele prossegue. “Sou o Conselheiro.”

Lembro-me vagamente de aprender sobre os Conselheiros. Existe meio que uma fila. Cada vez que um deles morre, outro se prontifica para assumir o lugar. É um dom adormecido em cada um e que desperta num efeito dominó. Não sei se existe um número certo, um limite, mas sempre foi assim. Os Conselheiros são extremamente sábios, como olheiros, descobridores de legados. Os cupidos são escolhidos por eles. Laura queria ser um cupido. O flashback que eu bloqueava com tanto esforço vem como uma corrente elétrica. “Acho que foi bastante sábia ao escolher sua primeira pergunta, Harriet, teve uma resposta esclarecedora. Mas ainda não chegamos ao tópico principal de nossa conversa.” Ele está sorrindo. Não falo nada porque não tenho ideia do que ele quis dizer e nem do que eu quero saber.

“Laura tinha mais sentimentos humanos que qualquer um de nós, querida. Ela era leal demais aos próprios sentimentos, impulsiva, ela era esperta.” Fala como se estivesse compondo um elogio fúnebre. “Você sabe que para cada geração há um cupido, e ela era o nosso. Acabamos de saber que Jerry, o anjo enviado por meu antecessor, acaba de morrer. Não temos absolutamente ninguém que possa substituí-lo e, sem um anjo por lá, nenhum humano nos EUA irá se apaixonar.” Acho estranho. Um cupido, um único cupido sair por todo os Estados Unidos atirando flechas? Até agora eu vinha pensando que isso era dever para um time deles. “Humanos também podem se tornar cupidos. Assim como nós, anjos, temos uma parte humana, eles têm uma parte divina. Basta saber qual deles tem o suficiente. Quando um novo guardião do amor cruza a Linha, todos os outros despertam.” Estou ouvindo cada palavra e tentando digerir a ideia, mas não me desce pela garganta uma única curiosidade: por que ele está contando isso pra mim? Ele fica em silêncio por minutos e minutos, como quem encerra uma conversa, mas eu tinha certeza de que havia algo mais. Quero cutucar seu ombro e perguntar, lacônica, a minha relação com essa história. Mas tenho medo de saber. Meu medo se concretiza quando Gaia faz o que eu deveria ter feito e o homem continua falando. É como se ele fosse um boneco de corda que para quando o tempo chega ao fim. Estranho. “Harriet, sabe que nosso dever é proteger os mortais e estamos aqui para isso. Talvez de uns tempos pra cá… Talvez não tenha funcionado, podemos estar falhando. Mas não haveria falha maior que deixar humanos sem amor.” “Sim.” Concordo, minha voz rouca, amedrontada. “Então você aceita substituir sua irmã?”

Lembro-me da coceira, da dor, da angústia que vivi dentro daquela sala escura, sendo testada. Quando eu estava sendo tão atormentada, torturada e acuada que gritei para quem quisesse ouvir que aceitava sem nem mesmo saber com o que estava concordando. Agora, de frente ao Conselheiro maltrapilho, me sinto também atormentada, torturada e acuada, sem saber o que me espera. Mas ao mesmo tempo que não sei do futuro, posso ver que o presente continuará escuro se eu não assumir meu papel. O único que me fora dado. O que já havia sido estabelecido para mim antes mesmo de eu ter ciência dele. “Aceito.”


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Notas finais do capítulo

FLY ON THE WALL - THOUSAND FOOT KRUTCH
http://www.youtube.com/watch?v=PD2Td_fpCCo