Give Me Love – Novatos escrita por Giulia Bap


Capítulo 2
Capítulo 2 – Mártir




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Meus braços estão envolvendo minhas pernas dobradas contra o peito, o queixo pressionado na fenda entre os joelhos. Sinto uma coceira nas costas. “Aconteça o que acontecer, não saia dessa posição.” Diz uma mulher branca como neve, os óculos pendurados na ponta do nariz fino. “Ok.” Respondo. Ela sai da sala flutuando. Quando se vira posso ver minúsculas asas já depenadas pendendo de suas costas. Um anjo da primeira província. A coceira se intensifica quando ela fecha a porta. A sala é toda preta, de modo que quando fecho os olhos não há muita diferença. Eu esperava uma série de perguntas ou um simples toque de uma Potestade e bum! minha província já estaria definida. O que acontece? Um anjo pálido me tranca numa sala escura em posição fetal enquanto uma coceira alucinante toma conta do meu corpo. Movo meus ombros loucamente, me esfrego na parede e coço meus joelhos com os dentes. Obediente, não solto meus braços que agora envolvem as canelas. Tudo parece formigar, mas nas costas… Coça, arde, queima e corta de dentro para fora, tudo ao mesmo tempo. Guincho, um barulho fino e que me custa a imunidade da garganta: agora ela também coça. Sei que estou sangrando quando um líquido quente abre caminho em minhas costas. Quando consigo me acomodar à dor, atento-me ao contorno dela. Pode dizer que sou louca, mas tenho a sensação horrível de que o que está consumindo meu corpo também quer dizer algo. Dois riscos perpendiculares, sim. E um outro que atravessa os outros dois. Um “A” está dilacerando minha pele. Uma circunferência incompleta. Uma reta vertical e três outras horizontais. “ACE”. Reta vertical. Reta vertical, reta horizontal. Reta vertical e três outras horizontais. “ACEITE”. Não sei o que quer dizer, não sei o que dizer, mas sinto que seja lá o que eu precisar aceitar, é isso ou ser dilacerada para sempre ali, naquele canto escuro onde eu mal posso distinguir o que eu vejo do que eu penso. “Aceito! Aceito! Por favor, deixe-me sair!” Choro, grito, berro, até um feixe de luz encontrar meu rosto, se expandir e iluminar meu corpo por inteiro. Procuro por vestígios de sangue. Nada. Nenhum ferimento. Não há nem a vermelhidão usual da urticária que eu esperava encontrar. “Muito bem, Harriet! Não saiu da posição!” A mulher cor-de-neve sorri satisfeita. Depois de toda aquela droga que ela me fez passar ainda tinha a coragem de me parabenizar por não ter cavado um buraco nas minhas costas usando as unhas? Seguro a vontade de esbofeteá-la e a reprimo cerrando meus punhos. A dor lancinante agora é uma leve insensibilidade que começa na nuca e vai até minha cintura. E então a senhora me encara de novo e ergue as sobrancelhas. “O que está fazendo aqui ainda, menina?” Antes que eu pudesse enfiar minha mão no rosto flácido daquela criatura, me retiro da sala pisando duro.

Levo um tempo para me acostumar com a constante dormência em meu corpo enquanto espero Laura, sentada numa cadeira de plástico cinzento na sala de espera. É, basicamente, um escritório. Aqui no Céu tudo é térreo – sem apartamentos e prédios descomunais –, portanto o lugar ocupa a rua inteira e mais um pouquinho. São cento e cinco cubículos escuros e algumas salinhas para consulta médica (pelo visto nem tudo sai como o previsto nesses testes). Estou quase cochilando quando uma Laura de olhar embargado aparece no corredor, apoiando cabeça e ombro na parede. Flutuo em sua direção e seguro seus braços, assustada por vê-la assim, tão desestabilizada e perdida. Chacoalho seu corpo fraco e procuro vida nos olhos que parecem apenas vagar nas órbitas. Nada. Deixo meu corpo tombar no chão e minha réplica, delicada como uma boneca de pano, cai em meu colo. Ninguém está lá para ajudar. Grito até minha voz se tornar um frágil fio de nylon que percorre os corredores, sem eco. Sem resposta. Acaricio os cabelos de minha irmã freneticamente, desembaraçando os nós louros. Fico ali por quanto tempo mesmo? Não sei dizer. Os olhos acinzentados, tão parecidos mas tão mais gentis que os que vejo no espelho, continuam abertos. Ela não pisca. Não respira. A pele gelada. Não é assim que acontece, penso. Mesmo confusa, já me acostumava com a ideia de sua morte. Mas eu vira meu avô morrer, não é desse jeito que os anjos morrem! Primeiro seus olhos somem das órbitas e luzes douradas assumem os espaços deixados. Enquanto ela está acesa, devemos fazer uma oração para que Deus perdoe todos os possíveis pecados do anjo morto e não faça sua família pagar por eles. Depois ele se desfaz em um brilho intenso e fúnebre. Anjos não têm restos mortais. Minha irmã, por sua vez, não dava sinais de estar viva. Sem pulso, sem respiração, sem reações. Entretanto, também não dava sinais de estar morta. Pergunto a mim mesma se ela está em algum lugar entre a vida e a morte, um lugar agonizante, presa no próprio corpo. Guiada por essa ideia, sussurro várias vezes em seu ouvido. “Vai ficar tudo bem, eu te amo, te amo. Estou aqui.” Choramingo, seco minhas lágrimas com as mangas do suéter de lã.

Estou ainda repetindo o mantra para Laura, envolvendo seu corpo com o meu, como se minha vida fosse um escudo para a dela. A pele dela volta a ficar quente, mas não porque está se recuperando. Noto que, atordoada pelo momento, não havia percebido uma grossa camada de penas que nos cobre, roça em meus braços e protege o corpo indefeso de minha irmã. A dormência em minhas costas torna-se um peso. Ligo os pontos. Descuidada, dou um pulo para trás. A camada de penas se revela um elegante par de asas e ergue meu corpo. Estou voando descontroladamente pela sala, querendo parar, pousar, abraçar Laura novamente. Então a branca-de-neve com óculos na ponta do nariz adentra a sala com uma expressão satisfeita. Não sei se devo ficar curiosa ou irritada, então fico apenas furiosa. Forço as asas a me guiarem na direção da mulher. Não funciona bem como eu queria, mas a asa esquerda atinge em cheio o rosto pálido.

Estou chorando e gritando, reações involuntárias do meu corpo à situação. Vendo minha irmã estendida, morta, talvez pior: agonizando, no chão, jogada. Dois corvos, digo, arcanjos, entram na sala e me puxam para o chão, agarrando meus pés e depois meus ombros. Reluto, tento escapar, mas o desequilíbrio inutiliza minha força; da agilidade então, nem se fala. Sou levada para o fim do corredor de onde Laura saíra. E então a visão borra.


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