Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 9
Amor perdido


Notas iniciais do capítulo

Gzuis, o que eu tenho que fazer para vocês comentarem mais, creaturas??? Colocar um rim no capítulo??? Se é assim, challenge accepted, espero ter feito isso com este Muahahahahaha Dedico esse capítulo à Lee Girlrock, pois essa pessoa é um amorzinho nos coments ♥



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A valsa perfazia todo o salão dourado de smokings e vestidos rodopiantes. Edward mostrava estar perfeitamente confortável entre eles, guiando Lina Corwell com segura elegância através da música – apenas quem o conhecesse muitíssimo bem encontraria o vestígio de tédio nos olhos verdes. Elizabeth, sentada à minha esquerda, via-se em estado semelhante. A diferença, porém, era a impaciência – e eu já imaginava por quem ela estava esperando.

Encolhi-me na cadeira, decidida a esconder os seios que saltavam dentro daquele ridículo vestido marfim – tão ataviado com pedrinhas prateadas que parecia um confeito de padaria –, mas as unhas de minha mãe se afundaram em meu pulso, me restringindo. Mesmo tendo a luva branca cobrindo todo o antebraço, eu sabia que deixaria hematomas.

— Nem pense nisso, Anneliese – sibilou, silenciosa e ameaçadora feito uma víbora. – E quando o Sr. Van der Haar vier cortejá-la, não ouse dispensá-lo.

Suspirei alto, ignorando a dor.

— Está certo, mãe. Farei o possível para agradá-lo. – Até porque era muito difícil agradar um velho nojento de meia-idade aflito pela carne fresca de uma garota de quinze anos.

Ela não se convenceu com a promessa – havia sarcasmo em demasia para ser autêntica.

— Se fizer qualquer coisa para afugentá-lo...

— Mãe – interrompi –, se está assim tão cobiçosa de se ver livre da minha detestável companhia, por que não me deixa ir embora de uma vez? Eu jamais voltaria a incomodá-la.

A acusação não a abalou. Ela poderia até enganar Edward e dissimular para meu pai, mas nós duas sabíamos que nada daquilo passava da verdade. Minha mãe me odiava.

— Pela milésima vez, Anneliese, você não vai para Washington.

Meus olhos se encheram de lágrimas amargas.

— Como pode ser tão cruel? – murmurei, a voz embargada. – Me obrigar a isto, a um noivado com um homem que tem idade para ser meu pai e que não pensa nada além de se enfiar entre minhas pernas como se eu fosse uma prostituta barata...

— Basta! – As unhas desta vez se enterraram na minha perna por debaixo da mesa, afinal, ela não podia simplesmente me esbofetear em público. – Você vai se casar com Niels Van der Haar se ele a quiser e ponto final. Agora seque essas lágrimas.

— Pergunto-me o que papai vai pensar disso quando retornar à Chicago – lancei mão de minha última cartada, porque era a única defesa que eu tinha. Não foi à toa que Elizabeth esperou ele viajar para começar a me oferecer aos solteiros da cidade; seria uma catástrofe no que meu pai voltasse e me encontrasse prometida a um senhor de bengala.

Meus temores foram acentuados logo que um homem passou pelas portas e teve a atenção de metade da festa. O cabelo claro começava a faltar no topo da cabeça, a estatura era média e a barriga protuberante saltava por cima da calça do smoking. Embora a aparência fosse bem comum, a ferocidade e a altivez nos olhos azuis deixava evidente tratar-se de alguém da classe alta. Vários cumprimentos o receberam, mas ele somente acenou de longe, caminhando direto até nós.

— Sr. Van der Haar, quanta honra – Elizabeth o saudou, bajuladora. – O seu convite foi muito bem recebido.

Ele depositou um beijo nas costas da mão dela, a boca se escondendo detrás do bigode louro. Senti um espasmo de horror.

— Eu é que me sinto agraciado pela presença dos Masen. Veja só, que adoráveis damas! Esta é sua estonteante filha, suponho. – E então me olhou, não vorazmente como os matusaléns que frequentavam à praça central, mas de forma muito paternalista.

O comentário – e o olhar – nos pegou de surpresa. Os cartões que advinham com os incontáveis buquês de rosas que recebi durante a semana eram sempre muito loquazes e pormenorizados quanto à minha beleza – indícios claros de que ele já havia me visto, ao menos à distância.

Elizabeth entendeu antes que eu:

— Quando mencionou uma proposta de matrimônio entre nossas famílias, eu...

Niels Van der Haar se sobressaltou e me encarou como se eu fosse uma criança que tivesse acabado de lhe chutar a canela.

— Acha que estava falando de mim? – A hipótese o escandalizou. – Por Deus, não! Já não estou mais em idade de casar, que dirá com moças. Quem expressou interesse pela jovem foi meu filho, Hans.

— Filho? – esganiçou Elizabeth, a voz três oitavas mais alta.

— Sim, veja. Ali está ele. – Apontou para um rapaz de smoking que se aproximava e senti meu queixo cair de incredulidade.

O rapaz devia ter pouco mais de vinte anos, era alto e de ombros largos. O cabelo dourado estava impecavelmente alinhado com gel, a barba feita e os olhos azuis eram divertidos e penetrantes. Enrubesci do pescoço até a raiz dos cabelos quando reconheci o rapaz do lago, o que peguei nos espionando minutos antes de Edward aparecer com seu fluxo interminável de repreensões.

Ele parou diante de nós e fez uma elegante mesura, mas piscou para mim ao levantar o olhar. Fiquei mais corada ao que retribuímos a mesura com igual maestria e me vi incapaz de desviar os olhos do chão.

— Queridas damas – anunciou Niels, orgulhoso –, este é meu filho mais novo e meu atual aprendiz no ramo de exportações, Hans Van der Haar.

— Encantada, meu jovem. – O tom de voz quase azedo dela indicava o contrário. – Chamo-me Elizabeth Masen e, como já sabe, esta é minha filha, Anneliese.

Respondi com um sorriso amarelo, a voz morta na garganta. Hans exibiu um meio sorriso que combinava muito bem com a covinha no queixo.

— A senhorita me concede esta dança? – pediu, estendendo-me a mão.

Respirei fundo e arqueei a postura, já recuperada do susto. Aquela era minha chance de ter uma conversa particular com o candidato a noivo.

— Seria um prazer, meu caro. – Apertei seus dedos nos meus e ele os recolheu com um beijo suave, os olhos azuis presos no meu rosto.

Deixei que ele me conduzisse até o meio do salão, entre os outros casais que nos observavam a cada brecha da valsa, sendo que um deles era Edward e Lina – vi meu irmão estreitar os olhos para Hans, questionando-me sem palavras, o que respondi com uma careta discreta. A mão de Hans escorregou devagar na linha de minhas costas, sentindo a envergadura do espartilho por detrás do tecido e parando na base da coluna, puxando-me com firmeza para mais perto. Endireitamo-nos uma vez e então começamos a girar tão graciosamente que era como se flutuássemos. Apertei os lábios, impressionada. Ele era ótimo.

— Roupas secas lhe caem com perfeição, senhorita Anneliese – sussurrou na minha orelha, a voz rouca e maliciosa. – Mas confesso que prefiro as molhadas.

Abri um sorriso cínico.

— Não sei do que está falando, Sr. Van der Haar.

— Ah, certo. – Ele riu. – É assim que quer agir. Se vamos começar do início, por favor, me chame de Hans.

Ergui a cabeça para fitá-lo profundamente dentro dos olhos. Em minha pouca experiência de vida, eu havia aprendido que isso normalmente intimidava as pessoas. Mas não Hans – ver-me tão próxima o atraiu feito uma mariposa enfeitiçada pela luz de uma lamparina. Reprimi um resmungo zangado.

— Algum problema com seu sobrenome? – questionei com voz sedosa, mas irônica, quando minha abordagem falhou.

— De forma alguma. Apenas não quero ser obrigado, devido a essas formalidades, a tratá-la por Srta. Masen. – Ele trouxe nossas mãos entrelaçadas para junto de minha bochecha, como se fosse ajeitar um fio solto que escapou do penteado, no entanto seu polegar desceu a linha de meu rosto e parou na boca, descrevendo o contorno de meu lábio inferior. Minha pele fervilhou com a eletricidade do seu toque. – Anneliese é um nome muito bonito e musical que merece ser usado.

— Jura? – retruquei em tom cético, não cedendo à tentativa fácil de sedução dele. – Neste caso, pode explicar porque ninguém em toda Chicago sabia que o viúvo Van der Haar tinha trazido um filho?

— Optei por ser reservado quanto à minha identidade porque não queria essas caça-dotes me rondando igual a moscas varejeiras. – Hans deu de ombros, analisando os convidados curiosos com olhos críticos. – E, ao que parece, Chicago está infestada delas.

Apeguei-me a essa oportunidade como um moribundo que se agarra à vida:

— Então deveria ficar longe de mim.

Hans franziu o cenho, agora me analisando.

— Por que eu faria tamanha estupidez? – Foi vez dele de demonstrar ceticismo. – A senhorita é uma caça-dotes?

— Não – admiti, sabendo que mentir não o convenceria. Caça-dotes não saem porta afora avisando que estão farejando herdeiros ricos. – Mas minha mãe é. Note como ficou desapontada por seu pai não ser o pretendente.

Hans abriu um sorriso bondoso tão largo que a covinha no queixo sumiu. Senti um impulso estranho e incontrolável de tocar seu rosto e procurar pela covinha com os dedos.

— Não estou cortejando a mão de sua mãe, então por que me importar?

Soltei o ar pela boca, ciente de que Hans não iria facilitar. Sem opções, resolvi dizer com todas as letras qual era a minha intenção com aquele diálogo:

— Eis o seguinte, Sr. Van der Haar. – Bati com meu indicador no peito dele. – Não tenho ideia do que dirá a seu pai, mas vai desistir deste pedido de casamento e, de preferência, me rechaçar publicamente como noiva.

Ele parou como se meu dedo fosse uma estaca que eu tivesse cravado sem dó nem piedade entre suas costelas.

— Não me quer por marido? Por quê? — As pupilas se ampliaram tanto que mal se enxergava o azul. – Está apaixonada por outro?

— Não – afirmei de imediato, mexida com a pontada de dor que entreouvi na sua voz. –Não ambiciono me casar. Com ninguém.

O alívio que preencheu sua expressão com a negativa foi quase tangível, sendo logo em seguida substituída por deboche. Retomamos com a dança e, enquanto me girava em seus braços, flagrei-o rindo.

— Só pode estar brincando... – E aparou o giro com a mão subindo e descendo minha cintura, o rosto tão perto do meu que seu hálito fez cócegas em meu nariz. – Toda moça deseja a graça do matrimônio.

— Nunca falei tão sério em toda a minha vida. – Ergui uma sobrancelha, para dar ênfase nas minhas palavras. – E, como já deve ter percebido, não sou como toda moça.

— E é isso que me agrada em sua pessoa. Entretanto, isso me deixa dúvidas. Qual o motivo que a faz repudiar tanto assim o casamento?

Contraí o maxilar, decidida.

— Tenho somente um único amor, e é a dança. Não vou parar de dançar apenas porque um rapazote viu em mim a moça ideal para ficar trancafiada dentro de casa cuidando dos filhos, esperando-o com uma sopinha de legumes no jantar.

Um sentimento que não consegui definir faiscou pelos olhos de Hans e ele me girou uma última vez, ficando nas minhas costas. Seus lábios roçaram na curva de minha orelha com o toque de uma pluma, os dedos correndo delicadamente pelos meus braços. Arrepiei-me inteira.

— Em primeiro lugar, rapazote, uma ova – redarguiu, intenso. – Em segundo... se esse é o seu medo, linda Anneliese, garanto que não há com que se preocupar, pois não existe qualquer desejo seu que eu não satisfaria na esperança de tê-la por esposa.

 

— Algo errado, Anna? – a voz de Esme chegou junto com o afago nas costas.

Vinquei a testa, parando de cutucar as panquecas com o garfo e tentando me livrar do torpor enfadonho ao levantar os olhos para ela, confusa:

— Perdão, como disse?

— Não está comendo. – Ela indicou a mesa farta e o prato intocado defronte a mim.

Olhei para aquelas framboesas em calda como se fossem uma porção sangrenta de corações de galinha e senti a tequila no meu estômago revirando. Ao que parecia, eu não ia conseguir despachar nada pela garganta além de mais álcool.

— Desculpe, Esme. – Remexi-me na cadeira. – Estou sem fome.

Basicamente, eu dizer que estava sem fome era um dos sinais do apocalipse – tipo o Inferno congelando, o Sol nascendo no oeste –, porque de repente eu estava cercada de vampiros preocupados. Emmett se sentou na cadeira à direita, Edward e Bella nas duas à esquerda e senti Carlisle de pé atrás de mim, junto à Esme. Revirei os olhos e cravei a faca nas panquecas, vendo outro interrogatório à espreita no horizonte.

— Tudo bem, pode ir abrindo o bico – exigiu Emmett. – O que aconteceu nesse casamento?

Brinquei com o garfo, distraída.

— Não aconteceu nada em La Push. Fui uma perfeita dama, eu já disse. – Ou quase. – Se estiverem duvidando, esperem os lobisomens aparecerem. Os pensamentos deles podem confirmar para Eddie. – Claro que eu iria bloquear uma parte.

— Estamos contando com isso – zombou Emmett.

Edward o ignorou:

— Tem certeza, Anna? – Sua mão livre deslizou para a minha. – Você chegou furiosa ontem, se trancou no quarto e bebeu três garrafas de tequila de uma vez.

Dei de ombros.

— É o que costumeiramente faço para evitar calamidades enquanto durmo. – Não exatamente. Meio litro já bastaria.

Algo no que falei os deixou desconfortáveis – a névoa de emoções pela cozinha assumiu um tom horrível de amarelo-esverdeado. Investiguei a fundo o que eles estavam tentando me esconder e baixei a cabeça de tanta vergonha, pronta para esconder a cara nas panquecas. Embora não tivesse quebrado nada durante a noite, eu transmiti o que sonhei para eles, inclusive as emoções que senti. Não era de se admirar que estivessem tão cautelosos naquela manhã.

Levantei da cadeira com um silvo, caminhando rumo ao meu quarto, mas Edward me deteve na escada, segurando-me pelo braço:

— Anna... – começou.

— Agora não, Eddie. Eu imploro.

— Temos que conversar sobre isso.

Isso rompeu com a barragem:

— E o que temos para conversar? – Virei-me para ele, irada. – Mamãe me abominava, tentou me vender a um casamento por conveniência, e então? Se ela gostava mais de você, paciência. E se você não lembra o monstro que ela era comigo, sorte sua.

Desta vez, ele não tentou me impedir de fugir. Tranquei a porta do quarto e corri para o closet, trocando o pijama de seda por jeans rasgado, coturnos, camiseta comprida e jaqueta de couro. Avaliei o quarto à medida em que penteava o cabelo em uma trança, vendo a ordem imaculada dos objetos que se encaixavam na parede no formato de um grande Tetris — o quadro à tinta a óleo ao alto, as portas do closet e do banheiro uma de cada lado da cama no centro, os livros e CD’s e o aparelho de som preenchendo o espaço vago. Na parede junto à porta de saída estavam pendurados o violão e a guitarra, um pufe vermelho se esparramando embaixo, acima do tapete negro. Vi toda aquela arrumação como uma traição desleal; como a telecinese se manteve no controle e a telepatia teve corda solta, levando a privacidade de minhas lembranças para a mente alheias? Ainda mais considerando a tequila – tanto álcool deveria ter deixado meus poderes dormentes por, pelo menos, dezoito horas.

Decidida a não ficar enclausurada o dia todo naquele quarto, peguei meu celular e fones de ouvido e pulei a janela, levitando no ar floresta adentro. Era uma boa técnica – fechar a gravidade em torno de mim – para não deixar rastros e evitar ser seguida. Voei sem pressa entre as árvores, abrindo caminho na neve que caía, e fui parar em um lugar que conhecia muito bem, embora nunca tivesse visitado por mim mesma – a campina perfeitamente circular de Edward e Bella.

Ela não estava como nas recordações de Edward. As flores não passavam de pequenos botões retraídos e curvados sob o peso de uma fina camada de gelo e não havia qualquer raio de Sol; as nuvens pesavam no céu em uma tonalidade acinzentada. Brandi as mãos no alto da cabeça e girei o corpo; o gelo se ergueu no ar e espiralou nas árvores que ladeavam a campina. Depois acomodei-me nas flores, as mãos apoiadas na nuca e os fones já ligados em volume máximo, os olhos decifrando o padrão dos flocos de neve que caíam sem jamais tocar o solo – resultado de outro dos meus guarda-chuvas.

Fiquei por horas tão imersa nas letras das músicas e em devaneios longínquos – especialmente na incógnita que era eu ter tido uma memória completa como sonho no lugar de um pesadelo demente, e para ser sincera, eu não sabia o que me perturbava mais – que não me dei pela aproximação do lobo cinzento, não até que ele já estivesse na campina, trotando na minha direção. À primeira vista, pensei que fosse Paul, devido a cor. No entanto, esse lobo era pequeno e esbelto demais.

Desliguei a música e sentei-me, escorada nos braços:

— Leah? – perguntei, apesar de ser óbvio. – Como me encontrou?

Não encontrei, pensou ela, sarcástica. Estava fazendo minha ronda e escutei de longe o Bon Jovi. Mas quando passou para Celine Dion, fiquei alarmada e achei que devia checar.

— Me morda – murmurei com um sorriso involuntário. Leah era agradável de uma maneira estranha, algo que percebi que os outros lobisomens não tinham se permitido ver.

Ela me mostrou os dentes de adaga, pretensamente considerando a sugestão, mas se sentou nas patas traseiras, observando o tapete de neve que se formou acima de meu escudo. Devia conversar com meu irmão. O idiota passou a noite em claro se martirizando com uma porcaria de dilema interior. Queria vir se desculpar e, sabia que se viesse, iria irritá-la mais.

Não pude responder. A acusação que vinha com seus pensamentos era inteiramente justificada. Aos olhos de Leah, Seth era um tolo escravo do imprinting e eu era um demoniozinho em pele de anjo – e fui obrigada a concordar com ela.

Essa maldição não é culpa dele, continuou quando fiquei quieta, o rabo se retorcendo na vegetação silvestre feito um chicote.

— Eu sei. – Suspirei. – Eu é que devo desculpas a ele. Não precisa jogar na minha cara.

Preciso sim, contestou com um senso de proteção maternal. Você o está maltratando, magoando sem considerar as consequências, tudo porque tem medo de amá-lo também.

Fingi não escutar o também e neguei com a cabeça, ainda que ela não estivesse de todo errada. Amar assusta, amar dói, e não era de se admirar que eu estivesse tão esquiva.

— Você não compreende, Leah. Não é a possibilidade de nutrir qualquer sentimento romântico por seu irmão que me desagrada. Seth é... muito mais do que mereço. Eu sei disso. É estar unidos à força pelas circunstâncias o que me incomoda, pois isso já aconteceu antes.

O que quer dizer?, questionou, o focinho tombando para o lado.

— Neste caso, é pelo imprinting. No caso de Hans, foi por um espectro da natureza muito mais irrefreável. – Deitei-me de novo na relva úmida, sentindo as feições endurecerem em linhas de mármore. – Minha mãe. E nenhum desses catalisadores é muito benevolente. Na verdade, é só o que cria dúvidas, feridas... vítimas.

Leah cavou sulcos na terra. Ela entendia aquela parte melhor do que ninguém. Então é a semelhança o que aborrece você?

Bufei, ainda que sem humor algum.

— Não usaria a palavra semelhança. Convenhamos, Hans e Seth não são nada parecidos e não têm absolutamente nada em comum, a não ser a boa índole. É mais como... uma repetição. Lugar diferente, pessoas diferentes, mesma história.

Fitei o alto, para a neve que agora até fazia sombra acima de nós. Estalei os dedos e neve girou em um redemoinho antes de se atirar para os lados da campina. Percebi que Leah estava muito pensativa e curiosa, ruminando se minha história era assim tão ruim.

— Tem certeza de que quer escutar? – perguntei, um pouco incrédula. – Às vezes penso que o período humano foi a pior parte da minha vida.

Depende, pensou, deitando ao meu lado, as patas dianteiras cruzadas sob o focinho. Vai me fazer dormir?

— Não, até que é interessante. Quer dizer, para quem está de fora. Apenas não tem um final feliz. Parafraseando algo que Rosalie disse um dia, se fosse feliz, eu estaria criando raízes debaixo de uma lápide. – Sorri ao lembrar que até já tinha uma me esperando.

Vá em frente então, incentivou. Fale. Faça-me ver de sua perspectiva.

Fiz uma careta para o tom de desafio zombeteiro de seus pensamentos.

— Sabe, Carlisle tem uma teoria bastante pertinente para explicar os poderes vampíricos nesta nova vida. Ele acredita que trazemos as características mais marcantes de nossa personalidade, só que muito mais desenvolvidas. Concordo com essa teoria. Eu sou a prova viva dela, pois passei a vida procurando ser uma cópia perfeita.

Leah esperou, pacientemente, enquanto eu tomava fôlego. Não foi fácil. Já era horrível pensar, que dirá falar tudo para alguém de fora. Algo fundo em mim, porém, me impeliu a continuar. Algo acorrentado no meu peito que fazia anos que aguardava o momento de se libertar das correntes.

— Minha infância não foi nada alegre, se me permite de usar eufemismos absurdos. Pode não parecer, mas as crianças são criaturas perceptivas, principalmente influenciadas pelo sofrimento. Desde muito nova eu vi que minha mãe, Elizabeth, tinha uma predileção maior por Edward. Ela passava muito mais tempo com ele, era mais gentil e amorosa, exibia-o para as amigas, presenteava-o com mais regalias. A princípio, interpretei esse favoritismo como admiração pelos talentos de Edward, afinal, ele aprendeu a tocar piano aos seis anos. – Respirei fundo, pigarreando. Parecia que eu estava me afogando à medida em que falava. – Tentando provar que eu era tão talentosa quanto, dominei piano aos quatro e não satisfeita, aprendi também violino e harpa, e ao completar cinco anos, já considerada um prodígio. – Engoli em seco, odiando o cérebro vampírico por tamanha nitidez. – Nada mudou. Ela continuou a me tratar com o mesmo ressentimento, com a mesma indiferença de sempre. Demorou para eu entender que o problema não era algo que me faltava, o problema era eu. Meu pai, pobre coitado, sabia das agressões psicológicas que eu sofria, mas por mais que me amasse não podia fazer muito por mim, uma vez que as viagens a trabalho dele eram sempre longas... Acabei sendo criada pelos empregados, por Molly, em especial. Penso que foi o que me salvou de ser uma pessoa ressentida, o que me ensinou a amar, a ver o mundo de uma maneira mais aberta... Foi quando comecei a me interessar pela dança, minha maior paixão. Elizabeth tentou impedir, mas meu pai apoiou, animado por me ver criar asas próprias... E eu me tornei muito boa. Aos dez anos, já era melhor que muita bailarina experiente e aos doze, era a primeira-bailarina da companhia de ballet de Chicago.

Nem me dei conta de que estava transmitindo minhas lembranças para a mente de Leah, mas lá estava ela, desconcertada pela vida na primeira década do século XX, onde tudo era mais simples, mais cru. Xinguei mentalmente, aporrinhada por estar usando os poderes sem perceber outra vez, pois estava aos poucos perdendo o controle.

— Quando eu tinha quinze anos – prossegui, nostálgica –, estreei uma apresentação do ballet Coppélia no maior teatro da cidade, a última vez que meu pai me viu dançar antes de partir para a Espanha. Eu estava tão nervosa por causa dos olheiros da Kirov Academy of Ballet na plateia... Recebi o convite para fazer parte do corpo principal de bailarinos deles em Washington três semanas depois, mais ou menos na época em que os primeiros buquês de flores chegaram.

 Minha expressão ficou nublada como aquele céu de inverno:

— Desconfiei que havia algo errado quando Elizabeth começou a ser inexplicavelmente gentil comigo, no entanto acabei atribuindo essa gentileza como orgulho pelo meu sucesso. E então os pedidos para me fazer a corte passaram a vir com os buquês. Nunca antes eu tinha reparado em como os homens me olhavam, mas isso se tornou perigosamente evidente. O primeiro pedido foi de um comerciante do bairro nobre. Esse, eu espantei fácil. Bastou encenar uma gripe no jantar e insinuar que eu ficava doente com frequência para ele sumir tão rápido que era como se tivesse um motor no rabo. – Ri e Leah me acompanhou, ladrando. – Elizabeth ficou possessa comigo, por ter jogado fora a oportunidade ideal de se livrar de mim. A raiva não durou muito tempo, porém. Uma oportunidade melhor e mais vantajosa surgiu logo em seguida, quando uma oferta de noivado chegou em nome do magnata das exportações Niels Van der Haar.

Leah apertou os olhos. Não era Hans?

— Elizabeth ficou em êxtase. Desprender-se de mim com um casamento que beneficiaria todo o sobrenome Masen? Ah, era tudo o que ela sonhava. Pouco lhe importava que Niels Van der Haar fosse um viúvo às portas da terceira idade. Sendo sincera, muitas vezes tive a sólida impressão de que ela se deleitava com minha tristeza, porque ela não ficou nada feliz ao descobrir que o Van der Haar que desejava minha mão era um rapaz de vinte e um.

Reprimi um muxoxo de reprovação – eu era muito distraída. Se eu tivesse sido mais observadora, teria percebido Hans na plateia naquela noite enquanto coreografava Coppélia. Ele fora me felicitar nos bastidores no fim do espetáculo, mas eu estava tão eufórica com os elogios dos olheiros que acabei não dando atenção. Hans me cumprimentou inúmeras vezes na praça até a indecorosa noite no lago – recordação que eu preferi não repassar para Leah.

— Para mim, não fazia diferença se era velho ou jovem. Era um noivo e por mais que eu me sentisse atraída por Hans, ele era um empecilho para os meus sonhos de encantar e emocionar multidões e de me imortalizar no ballet. Comecei a criar obstáculos para não ter que casar, para afastá-lo também. Dizer que Elizabeth não ficou contente com minhas tentativas de despachar Hans é outro eufemismo absurdo. Sabe, Leah, eu jamais culpei Edward por tudo o que me acometeu, mas acho que foi nessa época que ele passou a perceber como ela era perversa. Na noite anterior ao baile de noivado, onde o compromisso seria anunciado publicamente, Elizabeth e eu tivemos mais uma briga. Ela cogitou cortar a sola dos meus pés para que eu não pudesse dançar, mas sabia que eu não conseguiria andar até o baile. Então tomou um rebente e me bateu nas costas nuas até que Edward a segurasse e Apolo lhe mordesse a perna, sendo que à essa altura eu já estava sangrando quase a ponto de desmaiar. – Cocei as costas por reflexo ao que Leah rosnou baixinho, o pelo eriçado. A descrição da truculência de minha mãe a enojava. – Molly passou a noite trocando os curativos ensanguentados e tentando baixar minha febre. Tenho certeza de que nem o meu melhor vestido de festa encobriu o quanto eu estava pálida ao entrar no salão da mansão Van der Haar, tão cheia de esparadrapos por debaixo do espartilho que parecia até uma múmia.

Mordi o lábio e quando falei, minha voz saiu mais macia, mais adocicada:

— Hans era persistente. Irritante e descarado, com certeza, mas tão dedicado, tão generoso, tão apaixonado. Desejava meu amor acima de qualquer coisa, e tudo abaixo disso era irrelevante para ele, até as condições que eu impus. Por ele, se eu quisesse dançar, que dançasse. Diante de todos os convidados ele me ofereceu um anel e jurou de joelhos que nunca me faria desistir dos meus sonhos, pois era isso que me fazia ser a pessoa que ele amava... Santo Deus, como chorei de felicidade naquela noite. Mal senti a dor dos machucados nas costas quando ele me abraçou forte e me beijou.

Limpei os olhos das lágrimas que se acumulavam nos cantos. Leah não queria dar o braço a torcer, mas estava tão comovida quanto eu – os quileutes tendiam a se esquecer de que, aquém da imortalidade, todos nós já fomos humanos um dia.

— Eu o amei tanto, Leah, tanto. Aqueles meses de noivado foram os mais afortunados, os mais abençoados e mais completos de toda a minha existência. Tínhamos acabado de escolher uma propriedade para morar em Washington quando meu pai voltou de viagem, já contaminado com o vírus da gripe... – Fiz uma pausa. Não precisei mencionar o restante, ela se lembrava bem dessa parte. – Depois que fui transformada e parti de Chicago, não pude resistir ao impulso de ver Hans quando retornei e soube dos rumores. Havia uma forte nevasca, por isso foi tão fácil esconder meu rosto com camadas e mais camadas de agasalhos. Não ousei respirar perto dos humanos, com medo de não me conter, e esperei o pai dele e todos os empregados saírem do quarto para me esgueirar pela janela. Hans estava tão fraco e magro, tão sem vida naquela cama... Era evidente que não passaria daquela noite. Mas seus olhos recuperaram o brilho quando me viu. Pensou se tratar de um anjo, do meu espírito que fora busca-lo para viver juntos no Paraíso. Ele morreu em meus braços, dizendo que finalmente veria a sua Anneliese realizando seus sonhos. – Sentei e abracei as pernas, no ímpeto indomável de me encolher em posição fetal. – Não é o que se põe no obituário, mas morte de amor existe, Leah. Meu Hans morreu assim. E o resto, bem...você já sabe.

Ela gemeu antes de tocar o focinho no meu ombro. Aparentemente, eu não fedia feito outros vampiros – meu cheiro para os lobos era doce de forma muito suave, sem queimar. Ficamos tanto tempo paradas que começou a chover – a água batia e escorria pelas curvas do escudo.

Quer comer alguma coisa?, indagou ela, de súbito. Eu pago.

Franzi o cenho, lendo na sua mente a imagem do bar que ela pretendia me levar. Parecia bem campestre – do tipo com lareira, animais empalhados nas paredes e muita, muita testosterona.

— Na reserva?! – exclamei, perplexa. Ela era louca? – Sem a permissão do Conselho? Leah, não é só porque o clã Cullen foi convidado para um casamento, que podemos ir sempre à La Push a passeio.

E por que não?, ela bufou com um revirar de olhos.

Fiquei de pé e dei um meio sorriso irônico, já imaginando os quileutes engatilhando as espingardas.

— Ah, sim. Por que não?

Enquanto corríamos de volta para a floresta em direção à La Push, agradeci mentalmente. Agradeci a Seth por ter escutado a conversa inteira em silêncio, sem interferir.


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Notas finais do capítulo

... não sei o que dizer aqui, então deixo nas mãos de vocês. PELAMOR DE DEUS, COMENTEM, NUNCA TE PEDI NADA. ♥



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