Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 7
Exposta




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Eu tinha certeza de que, naquele momento, seria capaz de matar alguém para conseguir um cigarro. Apesar de estar ciente de que a nicotina e restante dos compostos químicos não tinham qualquer interferência no meu corpinho imortal, era bom sentir o calor girar nos meus pulmões antes de ser cuspido ao sabor do vento – tinha a vaga impressão de conseguir fazer o mesmo com a minha raiva.

E, céus, como eu estava com raiva. De mim, por ser uma criatura abominável. E deles, por me obrigarem a expor isso da forma mais dolorosa.

Desprovida do maior alívio para meu aborrecimento antissocial, fechei os olhos para sentir o cair melancólico da chuva, apesar da água não estar me tocando – eu me encontrava encolhida em uma pedra à beira do rio Sol Duc, a telecinese formando um campo de força acima da cabeça, feito um guarda-chuva. Cantarolei baixinho uma música qualquer – Live and Let Die, do Guns N’Roses, percebi – e fui surpreendida por uma pequena cotovia que pousou no meu joelho, atraída pelo espaço seco e pela melodia. Sorri, mas não fiz qualquer movimento e nem parei de cantar; não queria assustar mais ninguém, nem mesmo um pássaro. Tentei me prender nas frases cadenciadas da letra conforme procurava ignorar a casa nas minhas costas – e todos que estavam dentro dela, incluindo o som do piano que ecoava para fora.

 Senti-me agradecida por nenhum deles ter me seguido, embora estivesse convencida de não o terem feito por temor a Aro. Se eu era um talento cujo Aro cobiçou, era de se esperar que todos possuíssem qualquer relação comigo morressem até que eu cedesse e me juntasse à sua pérfida Guarda – isso, partindo do princípio de que Aro não se borrasse de medo de mim. Aro não me caçara – e nem mandara aquele rastreador cretino, Demetri – em quinze anos porque tinha uma mente muito prática para deduções; ele sabia muito bem que, após o trucidamento bárbaro de Joseph, eu jamais seria um de seus tesouros e que também não o deixaria incólume se cruzasse meu caminho outra vez. Eu era poderosa demais. Era o que me fazia alvo, mas era o que me mantinha protegida.

Mas é claro, nenhum dos Cullen tinha qualquer consciência disso.

Admito que houveram situações nas quais considerei invadir Volterra e transformar todos em churrasco – seria um favor incomensurável prestado ao mundo. Mas ver a dor nos olhos dos Volturi não traria Joseph de volta – e nem era, em comparação, tão satisfatório quanto vê-los se acovardarem feito gazelas. Era por isso que tanto eles quanto eu ainda estávamos vivos – o orgulho servia de arrimo para ambos os lados.

Minhas conjecturas foram interrompidas por passos ritmados se aproximando pela retaguarda; não me virei para ver quem era, apenas filtrei sua mente. Logo que o fiz, enrijeci-me por completo – a cotovia, pobrezinha, entendeu a reação brusca como perigo e alçou voo pela chuva. Girei a cabeça com uma expressão de poucos amigos – o cheiro rústico de lobisomem me golpeou na cara.

— Você, mais do que ninguém, garoto, devia saber que eu quero ficar sozinha– murmurei.

Seth hesitou um passo, dividido. Vê-lo confuso me fez sentir envergonhada; o profundo elo de lobo que nos unia era tão novo para ele como era para mim, mas eu reagi de uma maneira bem mais suja. Enquanto eu narrava minha lamentável existência aos Cullen, parte de mim passara a última hora sondando, buscando um motivo para detestar Seth e só consegui concluir que ele era complacente demais, ingênuo demais. Seus pensamentos quase puros faziam com que eu me sentisse um súcubo— como se eu estivesse tentando seduzi-lo.

  — O que você quer e o que você precisa são coisas completamente diferentes, Anna – rebateu por fim, fazendo-me levantar uma sobrancelha. Era inteligente também. – Às vezes podem ser conciliadas, mas só quando é para o seu bem.

Não gostei da forma que ele me enxergava, comparando-me a uma rosa vermelha – pequena, delicada e cheia de espinhos afiados. Não ajudava muito que meus cachos ruivos suscitassem um contraste berrante com o verde da camiseta, e ajudava menos ainda a camiseta ser enorme, dando a impressão de eu ser menor do que realmente era. Tudo isso incitava nele um instinto protetor sem um pingo de malícia, o que por alguma razão tornava tudo pior.

Seth mostrou ler o meu olhar:

— Anna, sobre o lance do imprinting, ainda não tivemos a chance de conversar...

— Não há nada para conversar – cortei. – Já sei tudo o que se tem para saber.

Ele suspirou e somente então reparei o modo como ele estava vestido. Moletom sem mangas, bermuda e botas de caminhada, roupas frágeis que fariam qualquer pessoa normal sentir frio, mas a água soltava vapor quando tocava seu cabelo negro espetado e descia pela linha do pescoço e pelos braços nus. Caramba, ele deve ser mesmo bem quente, pensei.

— Sabe o que está na mente de Leah, e a visão de imprinting dela é a pior possível.

— A mente de um é a mente da matilha. – Dei de ombros. – E eu gosto da sua irmã. Ela é do tipo que não engole sapos.

Seth se sentou do meu lado e não pareceu se importar que o campo de força que afastava a chuva de mim estava criando uma cascata ininterrupta no alto da cabeça dele. Sabendo que ele não desistiria tão fácil do diálogo piegas, revirei os olhos e ampliei o guarda-chuva para acomodá-lo também.

— Anna, eu só quero ver você feliz— tentou resumir.

— Missão difícil, não? – ri, sarcástica. – Mas se pretende mesmo levar isso a sério, poderia começar me arranjando um cigarro.

— Cigarro? – ecoou, a palavra soando deslocada na sua boca. Sorri maldosamente. Eu sabia que ele não tinha, pois teria sentido de longe o cheiro do tabaco, mas era engraçado tripudiar o garotinho perfeito da mamãe Sue Clearwater, que, por sinal, não devia estar nem um pouco contente pelo objeto de imprinting do filho ser metade sanguessuga.

— É, isso me faria muito feliz. – Não era mentira, mas de repente fazer chantagem emocional parecia bem mais tranquilizante, e divertido, do que fumar.

— Eu não fumo. – Óbvio.

— Não? – fingi estar surpresa. – Você é imortal, não devia se prender aos avisos de câncer do rótulo.

— Eu não sou imortal. Posso envelhecer...

— ...desde que pare de se transformar, o que não vai acontecer, porque você vai ficar me vigiando pelo tempo em que eu estiver viva – completei. – Estou certa?

Ele apertou os lábios em um meio sorriso. Peguei-me sorrindo também; Seth tinha um sorriso difícil de ignorar.

— É, você tem um bom argumento aí – cedeu. – Mas por que raios você fuma?

— Velhos hábitos custam a morrer.

Isso o interessou:

— Você tem mesmo mais de cem anos?

Assenti, piscando.

— Tenho idade para ser sua bisavó.

— Você não se parece nem um pouco com uma bisavó – falou, olhando minhas pernas expostas. Corei violentamente. – Mas estou curioso. Na época da Primeira Guerra Mundial era comum garotas de dezesseis anos fumarem?

— Não. No entanto, eu nunca fui muito boa em seguir regras – confessei. Em geral, eu não tinha escrúpulos em fazer coisas consideradas erradas. Embora tivesse sido criada em uma tradicional família católica e possuísse um conceito de bem e mal definido, o certo e o errado eram termos inteiramente relativos para mim, e eu não me importava nem um pouco de ultrapassar essa barreira de vez em quando, em especial quando essas barreiras eram impostas por sociedades retrógradas.

Percebi que essa rebeldia o agradava; não havia qualquer nota de crítica ou condenação quanto à minha atitude pouco ortodoxa em seus pensamentos. Indo bem a fundo, pude compreender que Seth, com tudo o que soubera de minha vida, me via como uma garota gentil e encantadora que aprendeu com o sofrimento a ser independente – e isso porque ele nem conhecia a verdade por inteiro.

 Pobre garoto. Ele não via o quanto ele era gentil. Senti-me culpada por tê-lo tratado tão mal.

— Obrigada – sussurrei baixo e rápido, as bochechas assumindo um tom rubro.

Os olhos negros como obsidiana lampejaram pelo meu rosto, apreendendo o excesso de cor. Não gostei disso; ele achava que corada eu ficava particularmente bonita.

— Pelo quê?

— Por não me julgar.

Seth abriu um sorriso estrelado, aliviado por me ver largar o comportamento defensivo e hostil. Fiquei de pé imediatamente – eu tinha uma cota diária de vezes em que demonstrava ter um coração e já havia batido o limite fazia horas.

— Posso pedir-lhe algo, Seth?

Ele ficou surpreso por eu finalmente chamá-lo pelo nome.

— Qualquer coisa – sussurrou com voz rouca. E eu entendi que qualquer coisa era qualquer coisa mesmo, até a alma.

Engoli em seco, intimidada com a profundidade de seus olhos.

— Consegue fazer de conta de que... o imprinting não existe? De que sou apenas Anna e você apenas Seth? De que...somos dois adolescentes que podem se tornar amigos porque gostam da companhia um do outro, e não por que a genética os obriga?

— Não sei se posso... – Ele se levantou e me estendeu a mão. Impressionei-me ao perceber o quanto ele era mais alto que eu. – Mas posso tentar.

Apertei seus dedos e vi que tinha razão acerca da temperatura de sua pele – Seth era febril, talvez dois ou três graus mais quente. Larguei sua mão logo que vi os outros quatro lobisomens saindo da casa; enfim eu teria a oportunidade de ter uma conversa mais privativa com meu irmão. Inclinei para frente e a gravidade me levou no ar como se eu fosse uma folha ao vento – meus pés pairavam a centímetros da grama molhada sem jamais tocá-la.

— Não acredito – sibilou Embry. – A Jean Grey sabe mesmo voar.

— Está mais para Carrie, a Estranha – cochichou Quil.

Revirei os olhos, suspirando.

— Quil, você não está um pouco atrasado para o emprego de babá? – provoquei e Leah deu uma risadinha debochada.

— Estou. Só estava esperando você e Seth terminarem de discutir a relação.

Sorri largo, parando perto deles ao que Seth permaneceu um tanto atrás, alertando Quil com o olhar. À nossa volta, a chuva cessou de modo inesperado – o campo de força se dilatou por um raio de dez metros.

— Certo, em qual das faces você quer levar a bofetada? – perguntei. – Esquerda ou direita?

Ele fingiu pensar, achando que eu estava brincando.

— Direita.

Minha mão voou na cara dele, estalando com o tabefe.

— Então leva na esquerda, para saber quem é que manda. – E planei para o interior da casa. O tapa em si não foi forte, mas já serviu para o propósito que eu desejava; Leah e Embry gargalharam tanto que precisaram se apoiar em Jacob. Eles ainda riam quando sumiram entre os cedros.

 Encontrei os vampiros junto ao piano de cauda, onde Edward e Renesmee tocavam ChopinNoturnos, Op. 9— em perfeita sincronia. Apertei os lábios, esperando que Edward visse a censura no meu rosto – usar o piano como chamariz para me atrair era um golpe baixíssimo. Renesmee sorriu ao me ver na porta e saltou da banqueta, os olhos cor de chocolate indicando para que eu me sentasse no lugar vago. Suspirei tristemente e me rendi, fuzilando Edward com o olhar antes de me reclinar ao seu lado sem dizer uma única palavra – não quis interferir na música que ainda soava e ressoava.

Na última vez que eu me sentara diante de um piano, a pessoa do meu lado era Hans, meus pais ainda estavam vivos e eu ainda tinha esperanças de que o mundo poderia ser um lugar bom e feliz. Aquilo fazia décadas e, no entanto, nada disso importou quando meus dedos pairaram acima do marfim das teclas antes de deslizarem sobre elas – a música saiu calma e natural de mim feito o cair da chuva na copa das árvores, feito o canto dos pássaros pela manhã ou feito o bater de um coração. De repente eu era somente mais uma manifestação da natureza, um pedaço da música suave que preenchia o ar.

Foi como se eu nunca tivesse parado de tocar.

Os pensamentos entorno fluíam emparelhados com o som do piano – e foi quando cheguei à pesarosa conclusão de que eu escutava muito mais do que devia escutar. O dom de Edward funcionava tal qual um amplificador para o dom de Aro e a consequência era eu já não precisava tocar mais ninguém para saber qualquer segredo escondido na sua mente – o que também explicava como agora eu conseguia projetar imagens e pensamentos à distância.

A essência dos Cullen foi sintetizada por meu cérebro veloz e, na metade da composição, eu tinha uma opinião concreta a respeito de cada um deles. Carlisle se tornou, sem sombra de dúvida, o meu favorito. Eu não conseguia me lembrar da última vez que estivera na cabeça de uma pessoa tão genuinamente justa, compassiva e paciente – características que de imediato me fizeram entender como Joseph adotou sua filosofia de vida sem qualquer incerteza. Esme empatou com Carlisle no pódio; nada mais que o merecido para alguém que tinha aquela capacidade de amar de forma tão límpida e intrínseca. Por um instante, tive inveja de Edward por ter pais feito eles.  

Jasper e Alice eram criaturas inteiramente complementares; Alice era tão expressiva e esfuziante quanto Jasper era reservado e misterioso. Gostei muito dos dois – ambos a seu modo tinham personalidades muito fortes e distintas, além de inúmeras memórias interessantes para referências futuras. O mesmo não aconteceu com Emmett e Rosalie. Emmett era muito pragmático e brincalhão, a mente translúcida feito a água do rio Sol Duc atrás da casa, o que no ato conquistou minha simpatia, mas Rosalie era tão fútil e egoísta que me retraí rapidamente para me desligar dela, com medo de me deixar envenenar pela mentalidade superficial.

Edward e Bella...bem, feitos um para o outro, eu tinha que admitir. Não consegui invadir os pensamentos dela devido ao escudo, porém vi o suficiente nas lembranças de Edward para inferir que eu realmente não gostava de Bella, pois até mesmo com o brilho dos olhos de um idiota apaixonado ela me parecia insossa. E quanto ao meu irmão, os adjetivos idiota e apaixonado o determinavam com excelência; afinal, que tipo de pessoa em sã consciência assiste a namorada beijar outro cara e dormir abraçada com ele sem fazer nada?

A música terminou e, sem pedir licença a Edward, comecei sozinha uma outra composição – a Sinfonia nº 6, de Beethoven—, me perdendo na natureza bucólica das sensações que ela proporcionava. Mas não me perdi o bastante. Ainda queria ter aquela conversa privativa, a que eu sabia que não seria das mais simples.

Ei, Eddie, chamei, sem ousar falar em voz alta. Vim me despedir.

Sua musculatura ficou toda rígida.

Despedir? Do que está falando, Anna?

Hesitei nos pensamentos, mas as notas no piano continuavam a ir e vir, impecáveis. Vou voltar para casa, revelei. Para Bergen. Planejava ficar aqui por um tempo, talvez uma temporada, mas percebi que é não é o mais adequado.

O quê? – Ele ficou de pé tão depressa que deveria ter se tornado um borrão. Parei de tocar ao que os Cullen recuaram. – Está maluca, Anneliese? O que pretende fazer na Noruega sozinha?

Suspirei, enfadada, passeando com os dedos pelo couro da banqueta. Pelo rabo do olho, vi Carlisle e Esme se entreolharem.

— Ed, seja razoável, eu não posso ficar – argumentei. – Você é um homem casado agora, é pai e tudo mais. Não pode viver com a irmã menor como sombra. E eu posso muito bem cuidar de mim.

— Não estou questionando isso, Anna. O que estou dizendo é que não quero e nem vou permitir que você se vá. Você é sangue do meu sangue e seu lugar é aqui comigo.

— Fique conosco, querida – pediu Esme, suplicante. – O quarto de Edward ficou desocupado desde que ele e Bella se mudaram para o chalé.

— Adoraríamos ter mais uma filha – completou Carlisle.

Fiz uma careta involuntária.

— Não, vocês não me querem aqui. Têm medo de que os Volturi venham atrás de mim. Além do mais, o clã Cullen já está consideravelmente numeroso para chamar atenção desnecessária.

Esme olhou feio para a família, caçando quem se atrevera a pensar algo tão rude – Rosalie, no caso. Já Edward abanou a mão como se esse fato fosse uma questão menor:

— Isso é irrelevante. As pessoas já falam, de qualquer forma. E os Volturi não virão atrás de você. Se não o fizeram até agora, é porque não têm motivo. – Ele fez uma pausa, estudando meu rosto. – Isso sem mencionar que eu sei que você poderia detê-los, se quisesse.

— Você me superestima demais, Eddie – reclamei, vencida.

— Eu duvido muito. – Ele bagunçou meu cabelo, como fazia antigamente. – Então, está decidido. Você agora mora em Forks.

— Isso até mesmo facilita nossa história pública – inteirou Jasper. –  Podemos dizer que você e Nessie vieram para Forks juntas, após a morte de seu outro irmão. A semelhança entre vocês sustenta mais esse álibi.

Franzi o cenho, cética.

— As pessoas caem mesmo nisso?

Jasper deu de ombros.

— Humanos veem aquilo que seus cérebros lhes dizem para ver.

Ergui um sorriso torto. Aquilo era bem verdade.

— Está bem, mas de uma maneira ou de outra, ainda preciso voltar à Bergen. Há algumas coisas pessoais que estão guardadas lá. Meus... tesouros particulares.

Edward se sentou ao meu lado novamente, olhando-me fundo nos olhos com aquela velha autoridade de irmão mais velho que não me permitia contestar.

— Sendo assim, vou junto – resolveu Edward. – Não quero dar a você a oportunidade de mudar de ideia.

 

Edward não estava brincando quando falou em não me dar oportunidade para mudar de ideia. Ele ficou na minha cola, vigiando meus passos feito um agente penitenciário pelos dois dias que se seguiram. Ao menos, ele estava sendo generoso. Não perguntou por que motivo em nenhum dos meus documentos falsos – que recuperei com os lobisomens, junto com a bolsa – estava o sobrenome Dalaker. Não retrucou quando bebi uma garrafa inteira de vodka russa antes de embarcarmos no avião. Nem mesmo abriu a boca ao ver a destruição do meu quarto logo que chegamos na mansão em Bergen, apenas me ajudou a empacotar tudo o que eu queria levar conosco e a telefonar para a transportadora.

A única vez que não tivemos uma conversa rasa foi no voo de volta. Meio relutante, pedi para que fôssemos à Chicago juntos visitar o túmulo de nossos pais e ele mostrou entender o pedido melhor do que eu imaginava.

Era noite limpa e estrelada quando nos esgueiramos pelo cemitério, iluminados pela luz da Lua quase cheia. Fazia frio e o vento soprava furioso; tive que puxar a boina mais para baixo para ela não ser levada. Os saltos das botas que Alice me obrigara a calçar afundavam na grama fofa, fazendo eu derrubar terra do vaso de orquídeas no meu casaco de tweed – no fim das contas, acabei me irritando e comecei a andar pelo ar até os túmulos dos Masen, Edward me seguindo em silêncio.

As lápides de Edward Senior e Elizabeth Masen não tinham nada de especial; eram apenas blocos simples de alvenaria cinzenta com frases genéricas como epitáfio. Curvei-me sobre eles e deixei as orquídeas próximas ao nome de meu pai – lembrando o quanto ele amava a cor e o cheiro delas. Edward não reagiu com a mesma nostalgia; havia lhe sobrado algumas recordações de nossos pais e de nossa vida em Chicago, mas para ele aquilo tudo parecia insignificante se comparado ao que possuía agora.

Mas, de repente, escutei um esgar estranho vindo dele.

— Edward? – perguntei sem me virar.

Ele não respondeu. Quando vi pelos seus olhos o que ele estava vendo, endireite-me, ofegando alto.

Na lateral da modesta lápide memorial de Edward Anthony Masen – que só foi posta ali para fingir que tínhamos algum resto para visitar –, um túmulo de mármore ricamente ornamentado com letras cursivas se destacava feito uma coruja entre corvos.

 

                                  Anneliese Emmeline Masen

                                   31/10/1902 — 31/10/1918

     “Amada filha e venerada noiva. Que os anjos a acolham com carinho.”

 

Toquei devagar a palavra noiva. Aquilo certamente era obra de Hans, me amando até mesmo na morte. Senti meu coração falhar uma batida e as lágrimas se acumularem nos olhos, mas praticamente no mesmo instante as sequei com a manga do casaco. Estava decidida a não chorar mais.

Saquei o celular do bolso e o estendi a Edward.

— Vamos, tire um foto.

Ele me olhou como se eu fosse demente:

Como é? – grasnou.

— Tire uma foto – repeti, balançando o celular para ele. – Não é todo dia que se vê o próprio túmulo.

Edward tentou ler minha expressão, no entanto acabou desistindo, submisso à minha aparente insanidade. Pegou o celular quando me escorei no mármore, exibindo um sinal de positivo com a mão. Tentei fazer alguma careta engraçada ou um sorriso bobo, mas eu tinha certeza de que o flash captou alguma coisa do tipo “O que diabos eu estou fazendo?”.

Não dissemos mais nada e, enquanto andávamos para a saída, virei-me duas vezes para olhar sobre o ombro, subitamente desconfortável.

Tinha a vaga sensação de estar sendo espionada.


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Notas finais do capítulo

Ei, pessoas, obrigada por estarem lendo! Sim, é, a relação confusa entre a Anna e o Seth começa a ser trabalhada daqui pra frente, então não parem de acompanhar. E por falar em confusa, espero que a Anna agora pareça menos doida pra vocês ( ou não, né kakakakaka)



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