Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 40
Epílogo (Seth)


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente!
Demorei tanto que devem ter achado que eu morri, né? Rá, só que não!

Eu relutei bastante para sentar e escrever esse epílogo. No começo, eu não entendi muito bem o porquê. Parte de mim pensou que era preguiça, bloqueio criativo, talvez essa pressão esquisita da quarentena (quem sabe), mas só quando dei aquele ponto final que eu tive aquele "pah".

Caramba, chegamos no fim de uma era.

Eu só tenho a agradecer a vocês, leitores. Vocês não imaginam como foi gratificante abrir a página e ver esse tanto de notificações (isabella_maries, eu AMEI a sua recomendação. Obrigada, de verdade!).

Esse epílogo bônus é para vocês saberem o que aconteceu na vida do nosso casalzinho em um espaço beeem grande de tempo, então apesar de ser enorme, vocês vão notar que a escrita é bem mais corrida e menos detalhada do que os demais.

Espero mesmo que tenha ficado à altura.

Aproveitem!



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Eu nem havia sacado o molho de chaves do bolso ainda quando escutei os arranhões ruidosos começando no outro lado da porta. Mal pisei no interior do apartamento e meus pés foram atacados por uma massa nervosa de pelos castanho-avermelhados, que só se aquietou ao me ver dobrar o joelho para cumprimentá-la com uma coçadinha nas orelhas amplas e caídas. Estava exausto, é verdade, mas teria que estar morto e enterrado para ser capaz de negar um afago à nossa mimada Cocker Spaniel.

— Bom dia, Ártemis. – Fiquei de pé e me espreguicei largamente, já acostumado ao som aflitivo de estralo que as costas faziam com o movimento. – Onde está a minha outra ruivinha? – indaguei, ciente de que ela me entenderia.

Precisamente como eu esperava, Ártemis disparou pelo corredor em direção a um dos quartos, de onde soava uma melodia tão conhecida para mim que chegava a ser enjoativa. Larguei minha mochila e a maleta de trabalho no sofá ao atravessar a sala e não fiquei nada surpreso por encontrar Anna incorporando a Variação de Odete pelo que estimei ser a milésima vez. Enquanto que Ártemis se deitou sobre as patas na lateral do rádio portátil, programado no volume mais reduzido para não incomodar os vizinhos, eu me recostei no batente cruzando os braços e esperei que a sequência terminasse com uma expressão de enfado.

Sendo exatamente a petulância em pessoa que era, Anna percebeu que eu a censurava, contudo ignorou de forma proposital ao ficar na ponta das sapatilhas para me beijar, os braços procurando meu pescoço com tamanha posse que não tive escolha senão responder de acordo. Estando tanto tempo juntos em um relacionamento, eu sabia que ela pretendia me amaciar, mas eu tinha aprendido com o passar dos anos a me aproveitar bem da situação e ainda assim descarregar a bronca quando necessário.

Ela se afastou de mim rindo baixinho:   

— Você nunca reclamou de me ver tentar – rebateu, o nariz correndo pelo meu maxilar. – Bom dia, amor. Bem-vindo de volta.

— Querida – inclinei-me de modo a olhá-la nos olhos –, não acha que está exagerando, não?

Anna suspirou. Claro que sabia. Era inegável sua exigência excessiva consigo mesma. Não que eu pudesse tirar sua razão; ela se preparava para aquele momento desde que saímos de Forks oito anos antes, quando recebera a carta de admissão na Juilliard. Na época, eu estava celebrando minha própria conquista; tinha acabado de me formar com honras no ensino médio – apesar dos percalços – e conseguido uma bolsa de estudos integral para a New York University. Sue ficara radiante de orgulho. Após uma estrondosa festa de despedida promovida por nossos pais, Anna e eu nos mudamos para aquele apartamento modesto em um prédio de tijolos vermelhos no Greenwich Village, a poucas quadras da universidade e a mais ou menos quinze minutos do Lincoln Center, o complexo de edifícios onde a Juilliard se localizava.

Os anos que se seguiram foram desafiadores para nós dois. Conforme eu me desdobrava para dar conta das matérias e do meu emprego de meio período – sempre fiz questão de dividir as contas meio a meio, embora Anna achasse isso tolice –, ficando noite após noite em claro debruçado sobre os livros na teimosia de ser aprovado somente com notas altas, ela antecipou o máximo de disciplinas nas quais pôde se matricular e ainda conseguiu entrar para a School of American Ballet. Antes mesmo de pegar os diplomas, Anna já havia sido aceita na companhia de dança mais prestigiosa e rigorosa do país, a New York City Ballet, sendo que em torno de seis meses ela já estava brilhando com uma posição de destaque no corpo principal de bailarinos. Aquela seria sua terceira temporada como primeira bailarina, portanto ela já conhecia a emoção de dançar naquele palco como estrela do espetáculo, mas eu tinha consciência de que dessa vez seria diferente. Anna estava ficando famosa. Logo, as pessoas começariam a notar algo errado. Por mais que aquele corte de cabelo nos ombros a fizesse parecer mais velha, ela alegava ter vinte e sete anos com um rostinho fresco de adolescente. Não dava para ele se esconder atrás de mim para sempre; eu havia parado de me transformar, envelhecido por algum tempo para não levantar suspeitas, mas para tudo tinha limites. Estava mais do que na hora de retornarmos ao anonimato de La Push.

E, como não bastasse ser sua última temporada, a peça da ocasião era O Lago dos Cisnes. Não era de se estranhar que ela estivesse sendo tão perfeccionista.   

— E a estreia é hoje à noite – lembrou-me quando se viu sem argumentos que eu já não tivesse pensado, o que me fez revirar os olhos. De todos os lembretes, esse era o único que eu não precisava. – Depois do fim da temporada, não vamos ter mais com que nos preocupar. – Suas mãos passaram por dentro do meu casaco para ajudar a tirá-lo. – E como foi o plantão?

Toquei a nuca e meus ossos estralaram de novo. Bocejei e meus ombros arriaram. Havia passado a madrugada inteira no hospital infantil; devia estar amanhecendo, apesar das nuvens cinzentas impedirem o Sol de aparecer. Não esperava que a residência fosse tão desgastante – e aquela era apenas a minha primeira semana de cumprimento obrigatório. Colocar em prática o conhecimento que estava nos livros era uma realidade completamente diferente, mesmo que eu tivesse uma bagagem de oito anos árduos de estudos para aplicar. A maior parte de mim nutria esperanças de que em alguns meses, quando a minha residência médica tivesse sido transferida para a supervisão criteriosa de um velho amigo de Carlisle no hospital geral de Forks, meu recente diploma da Escola de Medicina começasse enfim a valer a pena.  

— Cansativo. – Meu estômago roncou e eu percebi que, além de destroçado da cabeça aos pés, também estava faminto. – Eu provavelmente poderia comer o reboco da parede agora.

— Deixei seu café da manhã pronto na mesa. – E sua voz até poderia ter sido presunçosa, se não fosse o pesar. Ela detestava me ver naquele estado. – As panquecas ainda devem estar quentes.

Meu corpo desinflou tanto com o alívio que eu devo ter perdido uns dez centímetros. Antes que eu percebesse, estava na cozinha enchendo a boca de comida sem usar os talheres.

— Você é a melhor namorada do mundo – murmurei, mas estava tão ocupado em comer que só saíram grunhidos indistintos. De qualquer forma, Anna me entendeu; ela havia me seguido pelo corredor, mantendo-se à distância, os pés prontos para refazer o caminho de volta ao quarto adaptado para um estúdio em miniatura. Sentei-me em uma das cadeiras e puxei uma outra para o meu lado, evocando a minha melhor cara de cachorro pidão. – Vai me acompanhar?

Minha tentativa de chantagem emocional não suscitou nada além de um bufar cético, embora eu soubesse que ela estava tentada. Os anos não haviam diminuído o seu impulso de ceder aos meus pedidos.

— Tenho que praticar a Variação de Odile— teimou com um sorriso contrariado. – Termine de comer e vá descansar. Não gosto de vê-lo com essas olheiras. – E desapareceu pelo corredor sem esperar por uma réplica.

Fiquei sem escolhas senão seguir as orientações dela. Depois que fiz a limpa na comida sobre a mesa, mal sentindo o gosto com a rapidez que ela me descia a garganta, tomei um banho e tentei relaxar à medida que os nós nas minhas costas se desfaziam debaixo da água quente. Bocejei mais uma vez, o sono tomando mais força. Teria que dormir o dia inteiro se quisesse estar recuperado quando o Sol sumisse no horizonte. E, sim, aquela seria uma noite especial, realmente. Anna apenas não fazia ideia do quanto ainda. Sorri para mim mesmo, convencido. Era seguro pensar nisso enquanto ela estivesse dançando – era um dos poucos instantes em que ela se desligava dos pensamentos à sua volta. Mas era bom não arriscar; ela andava bastante estranha naquelas últimas semanas, por essa razão eu me esforcei para sair com a cabeça em branco do chuveiro.

Entrei no quarto com a toalha presa na cintura, o cabelo longo pingando no assoalho. Meu cabelo estava gigante, quase um palmo mais comprido que o de Anna, mas eu não tinha a menor pressa em cortar. Aquele era o meu protesto particular, meu ato de rebeldia secreto; sendo um dos poucos alunos bolsistas em um ramo acadêmico tradicional e elitista apinhado de herdeiros ricos, era uma honra e um orgulho exibir as minhas origens quileutes. Eu não tinha intenção alguma de me misturar – queria de fato que me olhassem e pensassem: “Lá vai o índio”.

E, além disso, Anna adorava puxar meu cabelo igual eu adorava puxar o dela.

Um sorriso lânguido se espichou pelo meu rosto. O plano inicial era me atirar entre os lençóis desarrumados da cama, só que de repente eu tinha uma ideia bem melhor em vista. Mesmo nas épocas mais extenuantes da nossa rotina pesada, Anna e eu nunca deixamos de dormir juntos, nem que fosse por uma mínima hora, e a mudança drástica promovida por aquela semana estava sendo uma novidade especialmente desagradável para ambos. Sentia falta do corpo dela abraçado ao meu, não importava o cansaço. Larguei a toalha no chão e andei pelado até o quarto de dança.

Anna parou de dançar ao ver meu reflexo nos espelhos das paredes e se virou, intrigada. Aproveitei os segundos de vantagem que seu sobressalto me deu para me aproximar e pegá-la no colo; já estava na rota do quarto quando ela começou a reclamar, balançando as pernas.

— Seth! – E se contorceu, irritada. – Eu preciso...!

Calei-a com um beijo.

— Você vai se sair perfeitamente bem – objetei, arquejante, no que o ar nos faltou. – O papel de Odile é seduzir. E você me seduziu. – Deitei-a sobre a cama e me aconcheguei nas suas costas, abraçando-a de forma que ela não pudesse fugir. – Agora sofra as consequências.

Acordei muito mais tarde com o som da campainha com uma insistência tipicamente nova-iorquina. O escuro suave do princípio de noite se insinuava pela abertura da cortina, o que denotava que Anna já devia estar no Lincoln Center para os preparativos finais da apresentação. Coloquei depressa um calção para atender a porta, supondo que, pela pontualidade, se tratava da minha encomenda à floricultura. Eu estava certo. Um vistoso buquê de rosas brancas feito a neve envoltas em um laço igualmente sem cor. Tudo de acordo com o planejado.

Só faltava eu, é claro.

Quarenta minutos depois, eu estava descendo do táxi diante da fachada imponente do teatro, alisando os vincos do smoking para garantir que não ficou nenhum amassado no tecido. Entreguei o convite na entrada, fui guiado pelas indicações das escadas ornamentadas e, enfim, encontrei o nicho de acesso ao camarote com a melhor acústica de toda a construção. Não tive qualquer dificuldade para localizar a minha poltrona; os Cullen, recém-chegados de Vancouver e notáveis em elegantes trajes de gala, presumivelmente já haviam tomado seus lugares e se destacavam com suas feições pálidas no meio de um aglomerado de gente idosa.        

— Boa noite, Seth. – Edward me deu condescendentes tapinhas nas costas quando me sentei no seu flanco e os demais se limitaram a um aceno gentil com a cabeça. No andar abaixo, a orquestra estava começando a se organizar e as luzes foram diminuindo gradativamente.

— Como ela está? – expirei, reprimindo o impulso de secar as palmas suadas mudando o buquê de uma mão para a outra.

— Uma pilha de nervos. E distraída o bastante para não ter percebido nada ainda, creio eu. – Ele arqueou a sobrancelha de um modo sarcástico, claramente divertido com a situação. – Tem certeza de que não vai falar com ela antes do espetáculo? – Uma risadinha o fez sacolejar. – Vai deixá-la desconfiada.

Engoli a saliva de modo audível.

— Não vou conseguir disfarçar, se eu for.

— Qual o sentido? – Alice se curvou para frente, a mão brincando com um binóculo que, pelo visto de relance, estava sem lentes nos dois aros. Devia ser parte do disfarce. – Ela já sabe. Anna nunca é pega de surpresa.

Abri a boca para retrucar que havia exceções à regra, apesar de no fundo admitir que ela tinha certa razão, porém nesse exato instante deram início as palmas para saudar o maestro pomposo assumindo a regência da orquestra, uma escuridão precária recaiu feito um véu pelo teatro e as cortinas se encolheram nos cantos em uma lentidão categórica.

O espetáculo foi simplesmente arrasador; não existe outra palavra mais adequada para descrevê-lo. Alguém nas minhas costas começou a chorar em soluços quando Odette saltou do penhasco e foi seguida por Siegfried, e a aclamação da plateia durou quinze minutos no que os bailarinos se reuniram para receber os louros. O camarim de Anna, um cubículo minúsculo que em geral já ficava abarrotado, transbordava pessoas espremidas que fizeram um caminho de aplausos do palco até ali. Mesmo os Cullen – intimidativos por natureza e a família de Anna, sobretudo – tiveram dificuldades para dispersar a maioria; somente os bailarinos mais próximos a ela permaneceram, inclusive o mauricinho do Vincent, que fizera o papel de príncipe na peça.

Sério, eu devia ter alguma maldição com louros aguados. Não era possível.

Fui o último a entrar no camarim e o rosto de Anna se iluminou com a minha presença. Precisei de um segundo para recuperar o fôlego; ela estava extraordinária. O vestido branco de seda desenhava suas curvas com sutileza e, mesmo sem joias ou um pingo de brilho no corpo, todas as luzes do recinto pareciam ser atraídas para a sua figura. Então seus olhos encontraram os meus e mais nada no mundo importou. Só havia ela e eu ali. Nós dois e a necessidade absurda de encurtar a distância.

— Você estava linda. – Beijei-a de leve, entregando-lhe o buquê. – Linda.

Ela aceitou as flores e o elogio com um rosado adorável colorindo as bochechas, porém no cenho se formou uma ruga de desconfiança:

— Rosas brancas? – questionou, o velho meio sorriso em riste. As rosas vermelhas eram uma tradição antiga, quase sagrada entre nós.

— Nada menos para a Rainha dos Cisnes. – Branco para as rosas, branco para o vestido... Tudo pareceu se encaixar tão perfeitamente que de súbito eu fui consumido por uma onda de coragem que varreu com qualquer vestígio de nervosismo. – Bom, se você procurar direito... Talvez acabe encontrando uma rosa vermelha. – Pisquei para seus olhos verdes se estreitando, mais curiosos do que nunca, e o sorriso astuto dela passou a refletir o meu, exibindo os dentes. Quando ela tombou a cabeça de lado para escrutinar as flores em busca de um rastro de cor, eu a impedi com um gesto, tirando sem hesitar a caixinha do bolso do smoking. – Não aí. Aqui. – E, finalmente, dobrei meu joelho diante dela do jeito que eu havia divagado por tanto tempo. – Anneliese Emmeline Masen, aceita se casar comigo?

Tive a satisfação de ver a expressão de Anna se esticar em assombro à medida que os gritinhos de entusiasmo explodiam ao nosso redor. De início, deduzi que aquele choque se devia ao anel nada convencional; eu havia solicitado ao joalheiro um anel de ouro que se torcesse em espiral para abrigar o rubi, formando assim o desenho de uma rosa, mas ele foi além e adicionou algumas minúsculas esmeraldas nessas ramificações da espiral, o que converteu o anel em uma verdadeira obra de arte. Entretanto, conforme a comoção dos bailarinos diminuía, os segundos ficavam mais longos e Anna continuava na mesma posição atônita de olhos vidrados, eu tive um estalo de entendimento. 

— Espere... – Coloquei-me de pé devagar, os dedos livres afastando para trás da orelha o cabelo que havia escapado do meu coque. – Você não fazia a menor ideia? – Apertei os olhos em fendas, de repente me vendo tão desconfiado quanto ela havia se mostrado minutos antes. – De absolutamente nada?! Por quê? – Em determinado aspecto, eu tinha o mesmo julgamento que Alice; não dava para pegar Anna desprevenida, não totalmente. Depois que eu pedi sua mão em casamento para Edward, respeitando o decoroso costume de família, minhas pretensões de manter sigilo se resumiram à data exata do pedido oficial a ela e à aparência do anel de noivado, não ao pedido em si. Ela estar tão surpresa indicava que existiam tantas inquietações anuviando seus pensamentos que as visões acabaram bloqueadas, e algo me dizia que não tinha nada a ver com a peça.

— Eu... – Anna tapou a boca com uma das mãos para conter o choro de emoção, embora as bochechas já estivessem molhadas de lágrimas. – Eu tinha tanta coisa em que pensar, Seth! Santo Deus, sim! – E se lançou para cima de mim, os braços envolvendo meu pescoço com buquê e tudo. – Sim, eu aceito! É claro que eu aceito, meu amor! – Ela não parou mais de me beijar.  Pensei ter ouvido uma nova rodada de aplausos ao fundo, no entanto eu estava feliz demais para prestar atenção neles.  

Os preparativos para o casamento levaram um mês inteiro. A parte boa – e, sem dúvida, a mais fácil – era que nada no que dizia respeito à organização ficou sob nossa responsabilidade, o que nos deu uma boa folga para cuidar da mudança e dos detalhes de retorno à Península de Olympic. O problema, de fato, era as tais atribuições terem ficado a cargo de seres incapazes de manter o mínimo de convivência pacífica, e tanto eu quanto Anna concordamos que não tínhamos muito talento para mediadores. Os convites foram enviados logo na primeira semana e, ao passo em que Esme e Alice se incumbiram da decoração da cerimônia – marcada para acontecer no quintal da casa da minha mãe, em uma reunião aconchegante porém refinada –, o design do vestido de noiva ficou outorgado a Pierre, o vampiro com um forte sotaque francês que chegara de Paris. Imaginei que não havia pesadelo pior do que escutá-lo às turras com Alice, mas então começaram as divergências sobre a escolha das músicas entre Kurt e Pietro, o marido de Pierre, e foi o Inferno na Terra. Quando Anna e eu nos instalamos em La Push às vésperas do casamento – na casa perto da praia a qual Leah e os Cullen se juntaram para nos dar de presente –, eu me encontrava à beira de um colapso nervoso.

Na minha última noite de solteiro, eu não estava com muita paciência para despedidas, mas tanto meus irmãos como meus amigos não deram a mínima para minha opinião e fizeram uma do mesmo jeito. Enquanto Anna partia com as irmãs para uma noitada bem comportada à moda dos Cullen – ainda mantínhamos um cronograma de caçadas bastante severo para evitar incidentes feito os do passado –, os idiotas me arrastaram para o bar do píer ignorando os meus protestos; certamente quem pudesse me ver sentado em uma das cadeiras surradas do canto, cercado de marmanjos gritando por cervejas, diria que a minha expressão de desconforto se devia a estar no botequim de quinta de Stu Bennett – caramba, como ainda odeio esse cara!—, mas a verdade é que eu estava morrendo de medo de algum dos imbecis brotar com uma striper a qualquer momento. Todo mundo naquela mesa estaria com os colhões pendurados na soleira antes do amanhecer, caso isso acontecesse.

— Pela milésima vez, Seth – Kurt grunhiu, olhos revirados de frustração –, pare de me encarar desse jeito ou vou achar que quer que a noiva seja eu! Eu não contratei nenhuma striper, eu juro, não sou maluco! – Quando a mesa mergulhou em um silêncio cético, ele deu de ombros. – Está bem, eu sou maluco, mas não a esse ponto. Já sou um homem casado e a minha mulher é mais ciumenta que a sua.

— Lívia lhe domesticou direitinho, não é, Kurt? – Griffin provocou às gargalhadas e os dois começaram a se acotovelar.

— Ele tem razão, trate de desfazer essa tromba logo – Embry resmungou, empurrando um caneco de meio litro de cerveja na minha direção ao mesmo tempo em que bebia o dele de um só gole. Ele era o único dos irmãos que ainda não havia se arranjado na vida e mostrava não ter pressa alguma em se amarrar. – Uma hora dessas, Anna deve estar curtindo a despedida de solteira dela. Então, qual o problema de você curtir a sua também?

— Está brincando? – bufei, embora tenha aceitado a cerveja. O gosto era horrível, mas se beber os fizesse parar de me encher o saco, valia o sacrifício. – Leah está com aquela barriga imensa de grávida e os pés inchados, o voo da Teresa atrasou e ela só vai chegar pela manhã. Anna deve estar implorando pela morte tendo que aturar aquele tanto de mulher da família dela sozinha e de uma única dose.

Stu Bennett, que servia uma cestinha do famoso peixe frito do bar a Flynn, nos ouviu de esguelha e sorriu de leve com um olhar malicioso sem se virar para mim. 

— Eu não confiaria nisso cegamente, Clearwater – debochou. – Anna tem um grande espírito festeiro. A diversão vai aonde ela estiver.

Arqueei a sobrancelha.

— Ela será minha esposa em menos de vinte e quatro horas, Stu. Então se sabe o que é bom para você, sugiro que passe a tratá-la por Sra. Clearwater. – E fiz um cumprimento com o caneco de cerveja, como se tudo não passasse de uma brincadeirinha amistosa.

Ele ergueu as mãos no alto, como se rendido, porém fez a volta para detrás do balcão com o mesmo sorrisinho esperto na fisionomia deslavada. Desejei tirar aquele sorriso no soco, mas me contive; eu não tinha uma noite de farra com os amigos desde antes de sair de La Push, e era provável que eu estivesse realmente precisando de uma. E acabou que foi tudo muito engraçado, no final das contas; como nem eu e os demais lobisomens ficávamos bêbados com facilidade, nos tornamos plateia de Kurt e os gêmeos promovendo um mico atrás do outro – resolvemos encerrar a despedida depois que os três decidiram que parecia uma boa ideia saltar do penhasco, mas não antes de gravá-los pulando marolas na praia tentando imitar golfinhos. Eu continuava me dobrando de tanto rir quando largamos Kurt, inconsciente e encharcado, diante da porta de Lívia.

 A manhã seguinte despontou nublada e quente, um dia típico do fim de verão que Alice havia previsto para o casamento, e já passava das três da tarde quando Sue e meus irmãos apareceram trazendo o meu terno que Pierre insistiu em costurar sob medida. Aguentei quieto as piadas da matilha sobre meu cabelo comprido à medida em que me aprontava – na verdade, eu estava tão imerso nos meus próprios pensamentos, assobiando baixinho, que nem percebi – e o céu apresentava os tons suaves e pálidos do pôr do Sol ao chegarmos no local da cerimônia.

Havia rosas, brancas e vermelhas, espalhadas para todos os lados. Um mar de pétalas abria caminho em meio a uma fileira de largos bancos de ferro batido, daqueles de desenho antigo com o encosto repleto de ornamentações em arcos e arranjos floridos nas extremidades, terminando em duas colunatas que formavam um dossel demarcando o altar. Os convidados – mais numerosos do que eu havia calculado – se colocaram de pé para a minha entrada e pareceu levar uma eternidade até Rosalie trocar a melodia delicada que fluía do piano para a marcha nupcial de Mendelssohn.       

Anna surgiu em meu campo de visão sendo guiada por Edward, e bastou pousar os olhos nela para que eu me apaixonasse perdidamente de novo. Seria capaz de me apaixonar mil vezes. Os olhos verdes brilhavam no rosto quase sem maquiagem, exceto pelos lábios vermelhos feito uma rosa em botão. Os cabelos ruivos tremulavam em cachos soltos na linha da clavícula sem o tradicional véu, apenas com um enfeite de rosas atrás da cabeça que parecia sugerir uma coroa. O vestido era uma nuvem farta de tule na saia volumosa, separada do corpete de renda por uma larga fita de cetim vermelho – a cor que se replicava no buquê que ela trazia nas mãos desnudas. Não havia noiva mais linda nesse mundo.

Dizer sim a Anna foi fácil. Foi natural feito respirar. Por mais comovido que eu estivesse declarando meus votos, não senti como se houvesse uma mudança prestes a acontecer, porque o meu sim vinha de muito antes – ele se formou na primeira vez em que a vi na floresta, no momento em que fui arrebatado pelo imprinting, e se repetiu dia após dia desde então. Quando a união foi oficializada pelo juiz e selada por um beijo, a sensação que ficou era que ele estava absurdamente atrasado. Anna sempre foi minha, assim como eu pertencia a ela, e aquela união sempre existiu para mim.

A festa teve início assim que terminamos de receber os cumprimentos dos convidados, e se havia um lugar adequado para medir o quão diversificado era esse pessoal, esse lugar era a pista de dança. À nossa esquerda, destacando-se entre os muitos casais por conta da elegância e sincronia incomparável, Pietro e Pierre dançavam abraçados um ao outro de olhos cerrados – o que felizmente escondia as lentes de contato – e do mesmo jeito não erravam um único passo. Perto das mesas, Martín ajudava Leah a retirar os sapatos enquanto ela espichava o pescoço à procura dos filhos e, um pouco além, vislumbrei Teresa às sombras de uma árvore agarrada ao novo namorado – a quem eu não me incomodei em perguntar o nome, sabendo que ela o trocaria antes que tivesse a oportunidade de memorizá-lo. Na margem contrária do quintal, Carlisle e Esme conversavam animadamente com o clã Denali, não reparando nos olhares fixos dos meus parentes da reserva de Makah, e os quileutes – tanto meus companheiros de alcateia quanto os moradores comuns da tribo, meus amigos da escola e os convidados da minha mãe – se reuniram para cantar algumas canções típicas com o Conselho. Entrevi Kurt, ao longe com Lívia e a filha, deixando a ressaca de lado para se juntar aos aplausos alegres, o que me fez sorrir. Não era um casamento quileute genuíno sem as nossas canções ancestrais.

Alheia a tudo e a todos ao redor, encostada no meu peito como se só existisse eu e ela, Anna sorria de olhos fechados, os pés deslizando com tanta naturalidade que ela parecia flutuar. Apertei-a mais forte contra as batidas instáveis do meu coração e me afundei em seu pescoço, pouco me importando que isso me deixasse mais desajeitado – de qualquer modo, eu já tinha me acostumado a parecer um pato de pernas de pau quando dançávamos juntos.

— Como está se sentindo, Anneliese Clearwater? – soprei em sua orelha, saboreando o nome na minha boca. Uma emoção profunda, uma mistura agradável de satisfação e orgulho, cresceu e se espalhou dentro de mim; de súbito, fui tomado por uma vontade boba e irracional de gritá-lo aos quatro ventos.

Ela riu, a emoção a contagiando também:

— Perfeita. Meu novo nome soa bem, não acha?

— Não poderia estar mais de acordo – suspirei e fui entorpecido por uma lufada de seu perfume. O calor inundou meu corpo no ato. – Ah, por todos os espíritos, não vejo a hora dessa festa terminar. – Senti Anna se enrijecer em meus braços, confusa, mas quando tentou se afastar para me cobrar a explicação, eu a impedi com um abraço mais urgente. – Está tudo impecável, Alice e Pierre formam uma ótima dupla quando param de brigar, só que você está inacreditável nesse vestido e confesso que estou bem ansioso para tirá-lo.

— Vai gostar muito mais do que tem debaixo dele – devolveu em um tom aveludado e travesso. 

Praguejei entredentes. Anna nunca jogava limpo.

— Alguma chance de sairmos sem que percebam? – arrisquei, suplicante, ainda que sem esperanças.

— Nenhuma. – E as risadas agora sacudiram seus ombros. Ela deu um passo para trás, os olhos buscando os meus, e eu sobressaltei por ver no fundo deles uma pontada de hesitação. – Além do mais, ainda não lhe dei seu presente de casamento.

Meus pés travaram.

— Presente de casamento? – repeti debilmente, franzindo a testa. – Não sabia que havia isso entre os noivos.  

— Coisa da minha época – escarneceu com um dar de ombros indiferente. – E está tudo bem, não precisa me dar nada. Você é meu maior presente, Seth. – As palavras eram doces, porém o sorriso se tornou amarelo. Comecei a ficar inquieto e o pior é que nem sabia o motivo. – Se bem que, dependendo do ponto de vista, esse presente é para nós dois.

— Quanto mistério – brinquei para aliviar a tensão, o que teria funcionado se a minha voz não tivesse aumentado três oitavas. – Estou curioso. Onde está?

Anna soltou o ar pela boca e, junto com o gesto, a cor foi embora de suas bochechas. Antes que eu pudesse interrogá-la, ela puxou nossas mãos entrelaçadas para baixo e as pousou com toda a delicadeza na barriga.

Aqui. Faltam alguns meses, é claro. – Ela mordeu o lábio inferior, que estava trêmulo. Quando não compreendi depressa o suficiente, um pigarro forçado lhe subiu a garganta. – Sete, para ser mais específica.

Eu compreendi. Compreendi, mas não podia acreditar. Foram anos me convencendo de que não tínhamos esse potencial, e agora Anna vinha dizendo...

— Seth? Seth? – Seus dedos estalaram diante do meu nariz. Quis responder, tentei até, o problema é que eu não encontrava minha língua... Não lembrava como formar as palavras... Eu ainda estava ali, ainda podia ver seus olhos verdes se arregalando de pânico... No entanto, de repente, senti como se estivesse caindo e sua voz soou tão distante... – Ai, meu Deus! Ajudem!

E a próxima coisa que consegui distinguir foram os tapinhas batucando no meu maxilar.

— ... que está em estado de choque. – Carlisle se aproximou a ponto da minha respiração se tornar dolorosa; meus pulmões arderam como se eu tivesse inalado água sanitária. – Seth, pode me escutar?

Meus pés cambalearam, incertos. De onde surgiram todas aquelas mãos me segurando? Com a mesma rapidez que perdi os sentidos, eu os recobrei. Empurrei meus irmãos para longe e prendi Anna pelos braços, totalmente focado nela.

— Você tem certeza?

Sem sustentar o meu olhar, ela assentiu.

— Absoluta. – E não parecia feliz. Suas feições desmoronaram aos poucos para pesarosa, amarga... Decepcionada, por fim. – Carlisle pode confirmar.

— O que raios está acontecendo, Anna? – Jacob cuspiu, impaciente. Perto dele, colado com Renesmee, Edward sibilou e assobiou baixinho, os dedos esfregando a ponte do nariz.

Descobrir que havia uma plateia despertou nela uma reação quase que animalesca. Colocando um metro de distância entre nós, abraçada à barriga como que em posição de defesa, ela tentou controlar a respiração afetada, mas seus arquejos pareciam cada vez mais intensos, crescentes e sôfregos. Quando ela ergueu os olhos para nos encarar – olhos cor de rubi –, percebi que fui muito lento; uma névoa leitosa espiralava pela barra do vestido como se fizesse parte da saia, serpenteava pelas nossas pernas igual tentáculos e engolfava os convidados, adentrando por seus olhos e ouvidos. Pensei que eles cairiam ao ter os sentidos roubados de si, mas me enganei; permaneceram de pé, anormalmente imóveis, suas cabeças tombadas para o lado. Os únicos a ficar intactos eram aqueles que tinham ligação com a magia, com o segredo – vampiros e lobisomens, em sua maioria, e nenhum deles com a expressão muito amigável.

— Relaxem, eles não vão se lembrar de nada! – Anna ralhou, gesticulando exasperada. Seus olhos tinham voltado ao normal, mas a expressão continuava a mesma; algo que lembrava uma leoa pronta para defender seu território. Ou, fazendo um comparativo mais condizente com as circunstâncias, uma loba protegendo seu filhote. – É... Então... Eu estou... – e engoliu em seco – ...grávida. – A palavra saiu acompanhada de uma careta.

Talvez tenha sido impressão minha, mas todo mundo pareceu recuar. 

— Como isso é possível?! – Quil foi o primeiro a se manifestar após um minuto de silêncio absoluto.

— Não lhe ensinaram na escola? – Teresa quebrou o gelo com uma gargalhada.

Quil a censurou pelo rabo do olho.

— O que eu quero dizer é – ele prosseguiu, a cara fechada –, se vocês podem ter filhos, como isso não aconteceu antes? Era para vocês terem um afilhado para cada irmão à essa altura.

Outro minuto de silêncio – e, desta vez, foi constrangedor. Todos os olhares inquisitivos se concentraram em Anna. Até eu me peguei levantando a sobrancelha à espera de respostas; por não sermos humanos, nós nunca vimos a necessidade de usar proteção, e em dez anos de vida ativa...

— Ora, uma dama tem suas técnicas... – O sangue dela queimou e subiu o pescoço, deixando-a escarlate. Parecia um molho de pimenta que havia entrado em erupção. – Acontece que nem sempre... – Os punhos se agitaram de irritação. – Maldição, isso não vem ao caso!

— Certo, agora consigo entender aquela sua conversa absurda com Renesmee – Edward cuspiu.

Ela o ignorou, centrada apenas em mim:

— Se eu soubesse que essa seria sua reação, não teria lhe contado aqui! – Seus olhos cintilavam de lágrimas não derramadas, o que me levou a estacar no lugar, abalado. Anna estava magoada. Aquilo que eu havia lido nela não era tristeza pela gravidez, e sim pela minha atitude, a qual ela deve ter interpretado como rejeição. Senti-me um completo idiota.

— Ah, Anna... – Trouxe-a para meus braços, por mais que ela tentasse se desvencilhar e esconder o choro. – Meu amor, me perdoe. Fui pego de guarda baixa, é claro que estou feliz! – Encostei minha testa na dela, secando suas lágrimas com beijos. – Eu vou ser pai. A mulher que amo vai me dar um filho. Como eu poderia não ser o homem mais feliz do mundo agora? – Permiti que meus sentimentos viessem à superfície para que ela não duvidasse do quão sinceros eles eram; eu passara tanto tempo convicto na versão de que seria sempre nós dois que nem havia me aberto para a possibilidade de um bebê, todavia ele estando ali, havendo se tornado realidade, era simplesmente maravilhoso.

A novidade, apesar do impacto geral, acabou sendo bem recebida por todos. Nossa festa de casamento se tornou uma comemoração dupla depois que voltou aos conformes – sendo que as pessoas em transe saíram do torpor assustadoramente tranquilas – e as preocupações que começaram a brotar uma a uma, pequenas dúvidas, foram empurradas para o dia seguinte. Algo no rosto de Anna me deu a confiança de que eu não tinha motivos para esquentar a cabeça. De que estava tudo bem e que daria tudo certo.

Nosso filho nasceu a exatos sete meses mais tarde, uma semana antes do prazo previsto. Uma atípica tempestade furiosa castigava La Push naquela noite; as árvores tremiam diante do vento inclemente, as ondas do mar se revoluteavam, a água caía em pedras e era impossível enxergar a um palmo do nariz detrás do volante. Por conta dela, demorei mais que o necessário para chegar em casa – tinha largado o plantão no hospital às pressas logo que Leah me telefonou – e Anna já aninhava um embrulhinho minúsculo nos braços quando adentrei em nosso quarto, o sorriso cansado porém enorme. Em volta dela, Leah, Quil e Embry olhavam que nem bobos para o bebê e Ártemis rosnava para quem se aproximasse demais, como se estivesse de guarda.

— É o menino mais bonito que já vi, filho. – Minha mãe, que terminava de secar as mãos, sorriu e se inclinou para admirar o neto. – Nasceu forte.

— Um legítimo rapazinho quileute, sem dúvida. – Leah deu uma última inspirada funda, estudando o cheiro dele. Quando Anna anunciou a gravidez, a maior curiosidade de todos era saber com quem a criança se assemelharia; até ali, pelo tempo de gestação e pela mistura sutil do cheiro de floresta com uma nota levemente adocicada, eu estava ganhando.

— Já tem nome? – Quil indagou, afastando-se da cama para me ceder o espaço.

— Já, mas Anna queria que fosse surpresa para todos, inclusive para mim. – Pareceu-me justo que ela escolhesse o nome, visto que além dos desafios de carregar um pequeno híbrido, Anna teve que aguentar também o meu excesso de preocupação. Fingi estar bravo com o mistério e me sentei cuidadosamente ao lado dela, mas a verdade é que meus olhos estavam marejados de emoção e eu mal conseguir falar por causa da voz embargada.

Reparei que Anna lutava para ocultar um sorriso diabólico:

— Sim. O nome dele começa com a letra D. – O sorriso aumentou perante as respirações se prendendo, e quando todos nós estávamos evidentemente pensando no mesmo nome, uma gargalhada ruidosa explodiu dela. – Precisavam ver as suas caras! – Ela beijou a testa do bebê antes de encaixá-lo nos meus braços. – Daniel. Esse era o nome do meio do Harry, não era? Harry Daniel Clearwater, Seth Daniel Clearwater. Daniel Masen Clearwater. Dan, para os de casa. O que acham?

O bebê abriu os olhinhos e me fitou, estranhamente perspicaz. A cor era idêntica aos de sua mãe – verde-esmeralda, intensos. Sua pele quente era de uma nuance suave de baunilha, as bochechas de querubim eram fartas e rosadas. Tirando o cabelo negro e denso, espetado para todas as direções, não havia nada em sua aparência que o marcava como meu.   

— É perfeito – murmurei, encantado.

Daniel cresceu no mesmo ritmo de uma criança humana, embora qualquer um que o conhecesse concordasse que era muito mais inteligente. Ele compreendia quando explicávamos a necessidade do sangue animal – nenhuma tentativa de alimentá-lo com mistura para bebês funcionou – e escondia suas habilidades quando estávamos próximos de estranhos. Minha mãe não tinha exagerado ao dizer que era forte – os brinquedos se transformavam em fragmentos tão logo ele os tivesse entre as mãozinhas, de modo que Anna passou a usar seus poderes sobre os metais para fabricá-los. Quando ele aprendeu a andar, já conseguia dar saltos de cinco metros e quando nasceram seus primeiros dentinhos de leite, Dan já falava como se tivesse nascido sabendo.

Ele devia ter pouco mais de um ano e meio quando Anna descobriu a segunda gravidez, já deixando de antemão se tratar de uma menina. O nome dela, diferentemente do de Daniel, optamos por escolher juntos, uma vez que queríamos algo que simbolizasse nossa união. Dentre tantos caminhos, Selena era o único em que estávamos de comum acordo – era lindo, feminino, atemporal, e o significado era a própria personificação da Lua. Que outro nome mais apropriado poderia ter a filha de uma vampira com um lobisomem?

Selena Josephine Clearwater veio ao mundo em uma bela madrugada de verão, sob a proteção de uma lua cheia. Os Cullen tinham acabado de se instalar em Forks para uma breve temporada – fizeram isso com antecedência para evitar serem surpreendidos de novo –, e Carlisle se responsabilizou pelo parto; e se eu não consegui participar, foi por culpa de Daniel, que não parava de tentar invadir o quarto em busca da mãe. Por ser um dos poucos com a capacidade de controlá-lo, tive que esperar com ele e os demais no andar inferior de casa – o diabinho se agarrava aos meus cabelos no esforço ininterrupto de escapar, e quando um chorinho de bebê se fez ouvir, ele se aproveitou do meu segundo de desatenção para disparar degraus acima.

— Mamãe, mamãe, eu ouvi você gritar! – Ele escancarou a porta, pulando na cama. – Minha irmãzinha está machucando você?

— Cuidado, Danny! – Puxei-o pela cintura e o prendi no ombro. – Sua mãe está exausta! – Procurei o olhar dela com o coração na mão. – Você está bem, meu amor?

— Creio que é melhor me perguntar daqui uma hora – Anna brincou, bastante pálida, entretanto radiante de alegria. – Venham aqui. Quero que os dois homens mais importantes da minha vida que conheçam a nossa pequenina. – Quando houve um silvo no canto do quarto, onde os Cullen foram se espremendo um a um depois que entrei, ela fez um muxoxo sarcástico. – Não me faça essa cara, Eddie. Estou tentando decidir se você está com o segundo lugar.

— Obrigado pela parte que me toca – ele revidou, cruzando os braços. – Por curiosidade, se não fosse eu, quem seria?

— Carlisle, claramente.

Se eles continuaram implicando um com o outro, eu nem percebi. Minha concentração estava inteira na garotinha com rostinho de anjo no colo da minha esposa, que olhava atenta o ambiente ao seu redor para absorver cada detalhe. Era incrível sua semelhança com Daniel quando recém-nascido; se não fosse a diferença de idade, poderiam se passar por gêmeos.  

— Toda essa bagunça por essa coisa vermelha e inchada? – Daniel fez cara feia para a irmã. – Mas ela não tem nem dentes!

Selena deteve o exame curioso e focalizou o olhar astuto diretamente em Daniel. Uma expressão de desagrado retorceu os lábios cheios, e quando pensei que não podia ficar mais impressionado, ela colocou a língua de propósito para fora. Anna e eu caímos na gargalhada. Nossa felicidade estava completa.

O tempo nos trouxe muitas coisas boas. E levou muitas coisas também. Levou de nós a nossa doce Ártemis. Levou também a perspectiva de continuarmos na nossa casa em La Push sem sermos expostos. Havíamos acabado de festejar o primeiro aniversário de Lena quando começamos o nosso mapa de mudanças – nisso, eu cortei meu cabelo e voltei a me transformar outra vez, interrompendo definitivamente o efeito da idade. Passamos a viver de anos em anos em cidades movimentadas e ensolaradas onde pudéssemos nos misturar – e assim se camuflar –, sendo que levaram vinte anos para nos acomodarmos em outra cidade chuvosa novamente. Á essa altura, nossos filhos já estavam adultos e haviam parado de envelhecer, tendo descoberto no caminho cada um as suas particularidades. Enquanto que Daniel se mostrou um descendente autêntico dos quileutes se metamorfoseando em um imenso lobo branco, Selena desenvolveu a habilidade de deixar qualquer vampiro perto dela sem poderes.

O que talvez tenha colaborado para Anna descobrir tão tarde o que estava acontecendo:    

— Mas... Mãe! – Dan protestou, apesar de saber que era inútil.

— Já disse! Não, não e não!

— E quem vai me impedir? – Um silêncio perigoso sobreveio e, percebendo seu erro a tempo de consertar, o garoto atenuou a voz. – Você é minha mãe e eu lhe tenho todo o amor e respeito do mundo, mas eu já sou um homem feito e estou no meu direito de me apaixonar por...

Ah, é?!— Anna exortou. – Homem feito?! Isso é o que veremos!

— Ai, mãe! A orelha, não!

— Seth, me ajude aqui!

Suspirei fundo e baixei o jornal. Sabia que ia sobrar para mim. Daniel tinha exatamente o mesmo temperamento explosivo da mãe, e sempre que eles chegavam a um impasse no meio de uma briga, ela recorria à minha argumentação. Só que daquela vez eu estava de mãos atadas.

— Querida, o que quer que eu diga? – Cocei a testa ao assisti-la descendo as escadas trazendo Dan, vinte centímetros mais alto do que ela e uma réplica quase que igual de Edward, arrastado pela orelha. – Que ele não pode ficar com Tanya Denali porque ela é mais velha?

Anna trincou os dentes, tão enraivecida que estranhei ela não ter assumido o seu estado animal de olhos vermelhos – isso, até ver Lena debruçada sobre o corrimão, rindo com gosto. Ali estava uma situação para a qual nenhum de nós dois se preparara; decerto não teríamos nos tornado vizinhos dos Denali se Anna tivesse previsto que nosso primogênito se apaixonaria pela bela vampira que liderava o clã.

— Não. Quero que diga que ele não pode namorar a Tanya porque ela é uma súcubo sedutora de homens!

Revirei os olhos.

— Ora, aí vai soar duplamente hipócrita. Se quer minha opinião sincera, acho que nosso filho fez uma boa escolha. Ou você ia preferir que ele se apaixonasse por uma humana, mortal, e vivesse o mesmo dilema que Edward?

Seja lá qual fosse o demônio interior que a consumia, ele abrandou diante desse prisma. A mão dela afrouxou na orelha de Daniel, por mais que seus lábios estivessem comprimidos em uma linha fina e insatisfeita.

— Tem razão. Já basta das semelhanças com Edward. – Seus olhos se estreitaram. – Talvez eu já devesse ter pressentido o envolvimento de Tanya, a propósito.

No ato, Dan parou de massagear a orelha amassada.

— O que isso significa?

— Nada, nada – ela desconversou. – Imagino então que você não vá nos acompanhar no aniversário da sua avó.

— Vovó vai me perdoar. – Um sorriso torto e faceiro se refestelou.

Anna bufou, cética.

— Claro que vai. Sue sempre lhe acoberta. – Ela se esticou para beijá-lo na testa. – Tenha juízo. E não vá pensando que eu não vou lhes fazer uma visita para saber como andam as coisas, rapazinho.

— Não seria minha adorável mãe se não o fizesse. Mas eu esperaria algumas semanas, em seu lugar. – Ele fez uma pausa maliciosa. – Ou meses.

— Coitados dos Denali – Selena tripudiou à meia-voz, e até no jeito de falar, ela me lembrava de Leah. – Nem sonham com o pesadelo que os aguardam.

Ver nosso filho mais velho sair de casa não foi nada fácil. Se presenciar Daniel juntando suas coisas para partir já era ruim o suficiente, eu não queria nem pensar em quando chegasse a vez da minha garotinha. Não sabia se era por ambos sermos caçulas, mas eu tinha uma conexão muito forte com Lena, um vínculo especial que eu tinha medo que desgastasse. Depois que Dan se despediu de nós, percebi que isso era pura bobagem. Nossos laços eram eternos. Tempo nenhum arruinaria.

Anna demonstrou ter chegado à mesma conclusão, mas era teimosa demais para dar o braço a torcer. A faceta superprotetora dentro de si falava mais alto. Por mais contente que pudesse ficar por nosso filho ter encontrado o amor, eu sabia que ela estava pensando no que poderia ter feito para retardar aquele momento o máximo possível.  

— Vamos, Anna, não faça essa cara. – Abracei-a pela cintura. – Você mesma vive dizendo que gostaria que ele se parecesse um pouco mais comigo.

— É, mas precisava ser justamente nesse aspecto? – obstinou-se, carrancuda.

Apoiei minha testa na dela, meus batimentos ganhando velocidade.

— Acho que fizemos um bom trabalho, no final das contas.

— Precisaram de uma segunda tentativa, na verdade – Selena murmurinhou antes de nos deixar a sós.

A eternidade era, de fato, incrível.


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Notas finais do capítulo

Aos bravos leitores que chegaram até aqui, muito obrigada!

Aos que tem coragem de esperar essa relapsa escritora se organizar, nos vemos no spin-off da Leah.

PS: me sugeriram um outro spin-off da Teresa. O que vocês acham disso? Deixem nos comentários.



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