Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 35
Segredos


Notas iniciais do capítulo

Eeeeeeeeeaaaí, meus amores! o/

Olha só quem está aparecendo com a cara mais sonsa que político citado na lava jato!
Pois é né, galera, eu sei que dei uma sumida, mas tô sempre pela área (salve pra quem entendeu o meme). Passei por uma barra nesses últimos três meses (terminei um namoro de anos, saí de um emprego tóxico, quase peguei D.P numas matérias da faculdade aí), mas deu tudo certo, tô de volta com força total e no pique pra fazer vocês roerem as unhas até o talo

Espero que relevem o atraso desta escritora atrapalhada, aproveitem, comentem bastante porque eu li cada comentário com urrando de emoção!

É isto



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Não levou mais do que uma semana para que eu me adaptasse à rotina totalmente sem graça e enfadonha dos Volturi. Do mesmo modo que era inconcebível para mim que alguém suportasse passar a eternidade fazendo vários nadas, foi ali, vivendo entre os inimigos, que eu comecei a entender como eles conseguiam fazê-lo. Era entrar em um círculo vicioso. Era se abrir para cada dia com a sensação de já ter visto aquele filme, criar expectativas de ver algo novo à medida que as horas corriam e se frustrar quando as badaladas do relógio anunciavam a meia-noite, tudo para repetir a mesma falta de emoção no dia seguinte. Poderia se passar um mês ou um século, e não notar a diferença. Claro que havia o fato da minha noção dos dias ser distinta da deles, uma vez que eu dormia e eles não, e tinha o agravante do dom de Chelsea de fortalecer laços para fazê-los se sentirem comprometidos a permanecer em Volterra, inteiramente fiéis a causa, mas bastou uma única semana para que eu compreendesse o apego excessivo deles com as leis. Era a única alegria que eles tinham de fato.

A maior parte da Guarda seguia as mesmas práticas habituais; durante as horas de Sol, eles continuavam impecáveis na segurança de seus senhores e para as noites havia uma escala para quem quisesse sair da fortaleza – que fosse para caçar longe de Volterra, passear ou por qualquer outra razão –, mas era raro que se dessem ao trabalho. A função de Heidi era justamente atrair presas e todos pareciam acreditar que o mundo não tinha nada que valesse sua atenção para distrai-los, então a maioria optava pelo confinamento. Às vezes, era possível encontrar dois ou três deles no salão de treinamento aprimorando suas capacidades de luta, porém não era algo frequente. O comparecimento nas técnicas de autodefesa, quando muito, era uma obrigação anual. Eles todos se contentavam em contemplar a própria divindade, e só.

 Tive que encontrar a minha própria programação dentro disso, por mais que ninguém tivesse sido idiota o suficiente para tentar me impor limites. Igual a qualquer outro vampiro que se associava aos Volturi, foi me cedido um aposento refinado em um dos torreões – o mais isolado que encontraram, que claramente foi organizado às pressas na inclusão de uma cama – e eu procurava dormir o máximo que podia, com a tranquilidade de quem conhecia plenamente seus inimigos para saber que não havia entre eles um que fosse com colhões para tentar me matar durante o sono. Quando eu inevitavelmente acabava acordando, vestia a primeira porcaria que estivesse no armário e ia passear sem vontade pelas praças ensolaradas de Volterra – ainda que me evitassem pelos corredores e, no geral, colocassem uma distância segura entre eu e eles, era bom tragar ar puro para os pulmões. Fazia o mundo ao meu redor parecer um pesadelo desordenado e me dava a sensação de que não faltava muito para que eu despertasse.

Não esperei nada muito diferente quando saí da cama naquela manhã – dado os meus anos de experiência com a depressão, ser desprovida de esperança não era nenhuma surpresa. Meu rosto estava seco, ainda que todas as noites eu chorasse em segredo até dormir, e meu corpo estava impecavelmente descansado, apesar das horas conturbadas na inconsciência. Meus pesadelos estavam piores do que nunca e, de um modo irônico e mordaz, isso não parecia estar afetando o meu desempenho físico ou a disposição dos meus poderes – algo nunca, nunca visto antes, muito menos sem a ajuda de uma bebida alcoólica. Eles permaneceram perfeitamente sob controle desde a minha chegada em Volterra e eu tinha absoluta certeza de que era por influência do monstro – não que eu estivesse reclamando ou que fosse chegar a reclamar. Apenas... era estranho que eu estivesse tão saudável, sem vestígios de sangue, sem desmaios, sem surtos involuntários ou afins, mesmo depois de ter usado tanto poder.

 Andei com passos leves até o guarda-roupas e me troquei conforme analisava o quarto; de fato, estava tudo no lugar, do jeitinho odioso como David havia deixado. Não era preciso ler pensamentos para concluir que ele havia sido o responsável pela decoração – do lustre do teto, do papel de parede, das cadeiras forradas de veludo até a lareira, tudo era ridiculamente inglês. Eu estava terminando de escovar os cabelos, sentada diante da penteadeira, quando escutei seus três toques tímidos na porta; David entrou empurrando um daqueles carrinhos de hotéis entupido de comida e parou ao lado da mesa de café, esperando que eu acabasse de me aprontar. De início, haviam cogitado Gianna para o trabalho de risco de ter que conviver comigo em tempo integral, mas por fim chegaram à unânime conclusão de que David era o culpado de ter trazido o Cavalo de Tróia – vulgo, eu – até a fortificação dos Volturi, portanto nada mais justo do que deixa-lo incumbido de suprir minhas necessidades e atender a todos os meus caprichos. Eu não poderia estar mais de acordo; sua presença podia causar espasmos frequentes de asco, porém havia um prazer cruel em vê-lo no papel de criado.

— Bom dia, Anna – David me cumprimentou quando fiquei quieta, ofegando no que me levantei, ficando de frente para ele. – Nossa... – Seu pé recuou com um passo automático para trás e os olhos escuros brilharam no fundo das olheiras enquanto a mão tocava o peito calado. – Como você está linda.

Alisei a saia do vestido em um gesto amargo. Era uma coisa pavorosa que, assim como tudo naquele quarto, David havia selecionado a dedo; um modelo vintage de ombros expostos, corpete justo e saia ampla até os joelhos, o tecido acetinado de uma tonalidade de rosa-claro que em Forks eu jamais seria flagrada usando publicamente, muito menos por vontade própria. Eu havia resolvido usar sem reclamar o guarda-roupa de princesa açucarada que David aprovava porque alimentava parte da minha ânsia de vingança – ali estava eu, vestindo as roupas e sapatos elegantes com as joias pesadas que ele me dera, abominando cada segundo e fazendo questão que ele experimentasse cada gota dessa aversão gélida. Deixava-o no precipício de saber que jamais estivera tão perto e ao mesmo tempo tão distante do que sempre sonhou, tendo a mim ao seu lado... mas sem jamais pertencer a ele. Nada mais que um ornamento – uma bonequinha de porcelana para complementar o cenário de requinte.

Un cappuccino, per favore— pedi com a voz monótona e despida de qualquer emoção, ciente de estar ignorando o elogio, e me acomodei junto à mesa de café sem olhá-lo nos olhos, a imagem perfeita do desprezo.

A determinação na sua expressão entregou que ele não estava nem um pouco disposto a me deixar escapar tão facilmente; não sem pelo menos uma tentativa de diálogo displicente.

— Podemos conversar? – indagou logo que serviu e me passou a xícara fumegando.

Não. – O vapor da bebida envolvendo meu rosto deu ênfase para o tom sombrio. – Estou diante de um excelente café da manhã e gostaria de desfrutá-lo sem vomitar sobre ele.

— Anna...

Bati a xícara no pires com um gesto rude.

— Não me force a calá-lo – grunhi entredentes, lentamente, embora a ameaça estivesse mais explícita na cor selvagem e carmim que consumiu meus olhos do que nas palavras ásperas.

David se afastou por instinto, reconhecendo o prenúncio do monstro. Sorri com doçura; agradava-me saber que ele estava adquirindo cada vez mais medo. 

— Neste caso, é melhor eu me retirar. – Suas mãos se apertaram para aplacar a tensão.  – Não pretendo incomodá-la durante...

— Você incomoda sim— cortei –, mas não dei permissão para que se retirasse ainda. Quero que me acompanhe até a saída quando eu terminar. – Arqueei a sobrancelha. – Fique. Depois leve tudo na minha ausência. – Apontei para o carrinho.

Ele assentiu com a cabeça e endireitou a postura, resignado.

— Como queira. 

Suspirei alto, forçando na aparência um contentamento que estava distante de sentir. Nem a comida tinha mais o mesmo sabor. Os croissants, os bolos, os brioches e as frutas até me alimentavam, mas desciam arranhando pela garganta com o gosto e aspecto seco de papelão. Comecei a considerar a possibilidade de ir caçar pelas florestas das redondezas quando acabei com o carrinho inteiro e meu estômago ainda se revirava de vontade por outra coisa... algo mais metálico e molhado, sendo que a comida indesejada caia nele sem pesar absolutamente nada. Era a sede de sangue do monstro, é claro. Minha fome havia se tornado irrelevante para ela. E, ao que tudo indicava, sua sede não tinha muita paciência para substitutos ou negociações.

A mão de David se estendeu para mim no instante em que me coloquei de pé – o convite silencioso de quem estava acostumado a tender para o cavalheirismo. Permiti que ele tomasse meus dedos e os pousasse na dobra de seu braço à medida em que eu tentava esticar em minhas feições algum sorriso adormecido, por mais falso que fosse; eu tinha plena consciência do que me aguardava atrás daquela porta e, em se tratando da notória Guarda, não tinham muitas alternativas para trabalhar que não fossem apelar para a violência, sarcasmo ou o cinismo. Percebi depressa que cinismo foi a escolha mais sábia – Santiago e Chelsea foram os primeiros com quem cruzamos no corredor assim que descemos as escadas em espiral, a névoa escarlate de raiva que emanava dela formando uma parede robusta pelo caminho que se abria adiante.

Meu sorriso, antes de mentira, se ampliou até exibir os dentes. Não era exatamente de mim que Chelsea estava com raiva, embora as circunstâncias tivessem me incluído na equação. O ódio dela era direcionado a Jane e Alec e, sobretudo, a David, por terem arrastado Afton de Volterra a poder de ameaças para dar conta de uma missão que não tinha como não ser suicida. E não bastando terem retornado sem ele, os gêmeos agiam como se sua morte não fosse nada, como se não fosse responsabilidade deles, e por isso ela se dedicava a lançar a sua ira toda em cima de David – era o único dos três que demonstrava o mínimo de humanidade o suficiente para sentir algum remorso ou consideração. Por um breve momento, Chelsea até pensou em se voltar contra Seth, quem sabe até tentar se vingar dele, mas o milênio com os Volturi e o instinto de autopreservação haviam feito dela alguém extremamente prática; Seth era o meu protegido, não havia limites que eu não ultrapassasse para defendê-lo e desde que cheguei na fortaleza, havia ficado evidente que não valia a pena provocar a minha fúria à toa. E o que mais deixava ela indignada era nenhum dos três ter observado esse fato antes de incluírem Afton na aposta.

David tremeu à proporção em que sentia nas suas terminações nervosas cada fisgada das emoções cáusticas dela. Seus olhos estreitos me condenaram à esguelha por obrigá-lo a isso, porém ele se manteve calado; não se atreveu a proferir nenhuma palavra, nem mesmo quando os próximos a passarem por nós foram Alec e Jane, que diferentemente de Chelsea e Santiago, não seguiram reto.

— Muitos bons dias, Anna. – Jane nos avaliou da cabeça aos pés quando deteve o passo, demorando-se no contraste berrante entre o meu vestido tom pastel e o terno soturno de David, os olhos pesando em nossos braços entrelaçados para então ela recompor a expressão vazia. De modo muito vago, feito o zumbido irritante de uma mosca, senti na superfície do meu escudo ela testando se eu era realmente imune ao seu poder da dor. – Escolha interessante de visual.

Bufei sem tirar o sorriso. Já havia se tornado hábito mantermos esse tipo de confronto, que disfarçávamos por debaixo de indiretas e cortesia exagerada. Para mim, esses encontros esporádicos nos corredores representavam sempre um banquete farto; eu descaradamente esfregava na cara dela que tinha conhecimento de seus interesses sobre David, fazia pouco-caso deles expondo tudo para o restante da Guarda e escancarando o quanto eu tinha David na palma da mão, para em seguida deixá-los se resolverem sozinhos. Em geral, as séries de provocações tinham início de minha parte, até porque quem tinha mais lenha para queimar nessa fogueira era eu, mas fiquei bem satisfeita por Jane ter tomado a iniciativa desta vez. Eu não tinha como lançar mão de certos artifícios se ela não me desse a devida abertura.

— Ora, obrigada, Jane. – Minha mão livre escorregou para dentro do paletó de David, alisando o peito frio por detrás da camisa. Ele estremeceu outra vez, mas não foi de aversão; seus olhos enegreceram, vorazes e rendidos, no que meu hálito quente fez cócegas no seu nariz. – David escolheu pessoalmente para mim. – Pisquei para ela. – O bom gosto dele é impecável, não concorda?

Alec a impediu de avançar em meu pescoço segurando seu pulso, que trepidava com tamanha força do lado do corpo miúdo a ponto de um humano conseguir ouvir seus dedos estralando. Os lábios recuando sobre as presas deixaram escapar um sibilar indistinto em latim, algo que provavelmente equivalia a “vadia insuportável”, mas eu não levei aquilo como ofensa; saí andando com um dar de ombros presunçoso, pois a reação dela significava que a minha abordagem petulante da situação estava sendo a mais providencial. Cheguei sozinha à recepção, cumprimentando Gianna com um movimento rápido da cabeça e depois terminando o conjunto de corredores que me dariam acesso às ruas; quando fechei a pesada porta de madeira atrás de mim, afastando-me daquela fachada corporativa que camuflava os Volturi para os humanos, soltei a respiração que nem sequer percebi que havia prendido.

Uma vez livre do lado de fora, a primeira coisa que reparei foi que os costumeiros e escaldantes raios de Sol da vivaz Toscana não estavam me cobrindo. Ergui os olhos para o céu, confusa; uma massa inquieta de nuvens escuras assomava acima de Volterra, anunciando a chegada iminente de uma tempestade de verão. Ofeguei um pouco, recuando para perto das paredes dos becos e desviando o olhar. Ver aquelas nuvens foi um golpe duro em meu peito – era como se o cinza de Forks estivesse me mandando lembranças. Segui sem ar pelas vielas, pensando em encontrar no comércio da cidade algum local fechado em que pudesse me esconder – uma loja ou mais um museu, talvez –, no entanto eu não prestei muita atenção na direção que tomei, por isso foi uma surpresa ruim quando me deparei com a entrada da milenar acrópole etrusca, no Parque di Castello.

Praguejei um palavrão ou dois e engoli em seco. Era temporada de alta para o turismo; apesar do clima pouco propício, o campo arqueológico estava apinhado de visitantes com guias. Desvencilhei-me de pelo menos três grupos enquanto tentava alcançar as ruínas e, no que me vi defronte a elas, busquei a sombra acolhedora de uma árvore afastada para me sentar debaixo. Nem sei em que instante acabei me encolhendo em posição fetal, nem tive condições de parar para pensar a respeito – somente abracei as pernas e me concentrei em inspirar e expirar, devagarzinho, para controlar um possível ataque de pânico ou, ainda pior, um surto histérico. Fosse o que fosse, começou a despertar a curiosidade de dois carabinieri— a polícia italiana – que se encontravam às margens das ruínas fazendo a ronda; após uma discussão sucinta e feita de cochichos, o fardado aparentemente mais novo veio caminhando até mim de testa franzida, uma expressão circunspecta que foi amenizando à medida que a distância se tornava menor, sendo substituída no final por olhos arregalados e um rubor ansioso. Suas mãos, percebi, alisavam de modo inconsciente o blazer azul-marinho.

Signorina? – chamou, a voz falhando ao mesmo tempo em que ele ajeitava a gravata. – Está tudo bem?

No que eu abri a boca para responder, uma sombra que saiu detrás da árvore me calou. David se interpôs entre o rapaz e eu com o deslizar silencioso de uma cobra pronta para o bote, escondendo-me nas suas costas. Foi tudo tão inesperado que, através da brecha do braço dele, entrevi os dedos do guarda resvalando na pistola presa ao cinto.

Nessum problema— David redarguiu languidamente, fitando-me por cima do ombro. – A dama está apenas sofrendo de um mal súbito. Agradeço a preocupação, mas fique tranquilo, ela está sob meus cuidados.

Houve um minuto de silêncio constrangedor, todavia o guarda não insistiu no assunto; logo que percebeu a inflexão de advertência nas palavras de David, o rastro de possessividade, ele se despediu abaixando o quepe e deu meia-volta até seu parceiro. David girou os calcanhares para mim com um sorrisinho convencido apertado nos lábios, mas eu não dei o braço a torcer – desviei com um tapa a mão que ele ofereceu para me ajudar a levantar e me coloquei de pé em um átimo, avançando sobre ele com a mesma intensidade da tempestade que se formava.

— O que pensa que está fazendo?! – trovejei com o maxilar trancado.

— Encurralando você. – Suas mãos me empurraram de volta à árvore e subiram, apoiando-se no tronco uma de cada lado da minha cabeça. Não foi um movimento violento, entretanto a intimidade com que ele agiu me fez recuar os dentes em aviso. – Duvido muito que vá conseguir me evitar em público.

— Não me subestime. – A gravidade em torno de mim o afastou de forma agressiva, atirando-o na grama a no mínimo cinco metros.

Assustado, David olhou para os turistas e para a dupla de carabinieri— particularmente interessados no “casal de riquinhos discutindo a relação” – que vez ou outra nos encaravam, considerando a possibilidade de algum deles ter flagrado alguma coisa, mas ele ainda não havia constatado o quão excelente eu tinha me tornado na manipulação mental; eu poderia atear fogo nele sem que ninguém visse nada extraordinário ou chegasse a captar seus gritos de agonia. Imaginei que minha serenidade deve ter dado a ele uma pequena dica, pois seu corpo relaxou conforme se levantava e batia a sujeira do terno, os olhos procurando fundo no interior dos meus.

— O que era aquela coisa? – sussurrou baixinho, como se temesse que ela ouvisse. – Aquilo não era você.

— Está enganado. – Tanto eu quanto o monstro exibimos um sorriso cruel para ele. – Aquilo sou eu. Sou eu sendo como sou, sendo exatamente o que nasci para ser, um lado meu que você não conhece... – minha voz diminuiu à medida que a frieza cedia lugar para o sarcasmo. – Bom, um lado que sem dúvida você não ficou satisfeito por conhecer. Se não quiser outra amostra e acabar sem a cabeça acima do pescoço, sugiro que fique longe.

David não deu crédito ao meu alerta, para variar; consumido por uma coragem atípica, ele agarrou meu braço para não me deixar escapatória, o queixo curvando no nível do meu. Cintilantes, como se marejados, seus olhos ficaram maiores, suplicantes.

— Você não quer isso— declarou, convicto. – Ainda a conheço o suficiente para saber. – Movido por impulso, ele segurou meu rosto entre suas mãos, um ato tão desesperado quanto familiar; um traço característico do meu antigo irmão que eu seria capaz de reconhecer a quilômetros. – Diga-me como posso ajudá-la a se livrar. Pode achar que não tem mais ninguém, mas você tem a mim.

Pela primeira vez desde que pisei em Volterra, eu externei uma emoção verdadeira – uma que não fosse ódio, uma que pertencesse somente a mim, e não ao monstro. Uma lágrima, solitária e traiçoeira, correu pela curva da minha bochecha, caindo na palma da mão de David.

— Eu tinha tudo. E você me arrancou por puro egoísmo. Não venha à essa altura agir como se pudesse me compensar, porque você não pode. – Engoli o choro a seco, a postura dura. – E não, não tem como se livrar dela. Não tem mais volta. O que está aqui dentro... é definitivo.

Aproveitei o abalo que aquela lágrima causou nele para caçar a minha rota de fuga – lancei-me feito um raio entre as árvores rumo ao norte, cortando caminho pelas vilas sem que os humanos me notassem e maldizendo as nuvens densas o trajeto inteiro por me privar do Sol, o único capaz de manter David encarcerado da fortaleza. Passei perto da necrópole etrusca até alcançar a região montanhosa de Montebradoni; a vegetação mediterrânea era baixa e esparsa, todavia extensa naquela área, por isso deduzi que conseguiria caçar alguns javalis ou veados – senão, teria que aplacar a sede do monstro com coelhos.

Saltei de um galho e aterrissei no solo arenoso meio incerta sobre como proceder – fazia anos que eu não caçava e tinha receio de ter perdido a prática, porém bastou que eu fechasse os olhos para que o monstro recorresse aos meus instintos de sobrevivência. Minha garganta ardeu em brasas, a audição ficou mais apurada, o olfato buscou ao longe e de repente eu estava no rastro de um veado parrudo que não teve a menor chance quando investi contra seu dorso; meus dentes se afundaram nele como se qualquer coisa entre eu e seu sangue fosse gelatina, a boca sugando o líquido pouco convidativo enquanto seu calor se espalhava por meus músculos. Em algum momento, repelida pelo sangue animal, o monstro se lembrou do guarda italiano, do som molhado de sua pulsação e seu cheiro agradável... Era evidente que ele me achava bonita, seria tão fácil atraí-lo para algum lugar discreto usando um olhar ou tom de voz mais persuasivo, adiantar-me para ele como se fosse soprar palavras provocantes em sua orelha e pousar meus lábios na pele fina de seu pescoço, no ponto certeiro onde o fluxo de sangue se acumulava...

Balancei a cabeça freneticamente para dispersar essas ideias peçonhentas e, quando não tinha mais o que beber da minha presa, decidi abater outro veado apenas por precaução. De jeito nenhum eu iria me permitir matar um humano; não iria apunhalar Joseph também e trair tudo o que acreditávamos, em especial estando ali e muito menos àquela altura dos fatos. No começo da tarde, ao retornar para o antro dos Volturi, reparei que estava toda descomposta; meu cabelo estava sujo e revolto, o vestido ensanguentado e me faltava um dos brincos de diamante. Recebi encaradas enviesadas nos corredores a caminho da sala de música na ala sul – o único recinto além dos meus aposentos onde eu encontrava o mínimo de paz e sossego.

As portas ornamentadas abriram sem que eu as tocasse, relevando uma antecâmara levemente curvada, de acústica impecável. As colunas da estrutura se fechavam ao alto por arcos romanos, que eram encabeçados por uma abóbada revestida em alabastro, assim como as paredes claras. Na posição de patrono das artes, os Volturi honravam sua fama ao exibir uma coleção invejável e vasta de instrumentos musicais, tão numerosa que poderia abastecer uma orquestra inteira – todos instrumentos clássicos, porém; nada de guitarra, teclado, bateria ou coisas do gênero. Andei pelo piso de mármore diretamente até o piano de cauda e não me importei em estar com os dedos pegajosos de sangue ao correr com eles pelas teclas de marfim; tal qual a minha roupa, fazia parte da história da melodia melancólica que fluiu e preencheu os ares.

Era triste, mas sincera. Intrínseca. Visceral, feito a minha dor. Agarrei-me a ela feito um viciado se apegando a uma droga para abandonar a realidade, entreguei-me por inteiro de corpo e alma, tanto que mal me dei conta quando as notas enveredaram por si só em um novo curso, desta vez entrando em uma estrada conhecida pela qual passei meses trilhando.

Não me detive quando reconheci a composição que fiz para Seth. As lembranças viriam de qualquer forma; eu não tentava me evadir delas, como fiz durante tanto tempo com Joseph, porque sabia que era inútil. Muito antes da memória, Seth estava marcado no meu coração, e esse tipo de marca era eterna – algo que nada e nem ninguém poderia apagar. Para esse elo, não existia tempo ou distância capazes de interferir, e se eu tinha tanta certeza disso, era porque nem mesmo com um oceano nos separando eu deixava de experimentar suas emoções como se fossem minhas. Nem era preciso fechar os olhos ou até me concentrar para que eu o visse – apesar do meu esforço em bloquear as visões, as imagens se pintavam sozinhas na minha frente; podia vê-lo parado em sua grande forma de lobo caramelo diante do riacho nas montanhas onde fizemos nosso primeiro piquenique, as pesadas lágrimas que caíram dos olhos negros e inocentes escorrendo pelo focinho, podia enxergar através deles o empenho com o qual Seth se compelia a não sentir como humano, sua teimosia de se prender no corpo de animal para tentar sofrer menos...

A verdade era que não era somente Seth – ninguém em casa parecia saber lidar ao certo com a minha partida. Nos fragmentos esporádicos de visões que fui obrigada a contemplar, pude concluir que tanto os Cullen quanto o próprio Seth não tinham a menor ideia do que fazer. Alguns deles – Edward, por exemplo – pareciam inclinados em viajar para Volterra com o intuito de me buscar, nem que fosse para levar o meu cadáver de volta a Forks, mas ao mesmo tempo os outros ainda exploravam as possibilidades, atirando às cegas... Seth simplesmente não reagia.

Meu garoto-lobo estava completamente sem vida.

Limpei as lágrimas que só dei pela existência quando passos suaves e cadenciados ecoaram na entrada do recinto. No ato, intuí que se tratava de David, já que nenhum outro vampiro da Guarda senão ele seria tão estúpido para me interromper; a sala de música costumava estar sempre movimentada, desde que eu não estivesse presente. Caso contrário, ninguém nem sequer respirava perto da ala sul.

Eu já estava com os ombros retesados de cólera antes mesmo de virar o corpo:

— Eu já avisei para que se afastasse, seu... – calei-me depressa ao constatar que, em vez da tonalidade de cabelo castanho-claro que eu esperava, o intruso inconveniente tinha uma longa cortina de fios escuros, quase negros caindo pelos ombros e vestia uma capa. – Ah, é você. – Minha atitude ofensiva arriou com o choque.

Marcus não se intimidou pela minha reação ou pela minha aparência nada cativante, aproximando-se com um movimento tão antinatural que mais parecia um fantasma a esvoaçar pelo mármore.

— Não pare de tocar. É sublime. – Então indicou o banco do piano com o dedo ossudo. – Permite-me?

Demorei mais tempo que o usual para recolher o queixo caído.

— À vontade – guinchei, a voz um tanto afetada pelo choro, e cedi espaço para que ele se assentasse à minha esquerda eu enquanto retomava a composição.

Sem demonstrar qualquer sinal de animosidade, Marcus se acomodou do meu lado ao que eu, em contrapartida, procurava recompor minha fisionomia. Que ele poderia farejar o meu desconforto feito a uma carne putrefeita, isso era inequívoco, mas igual a tudo mais no mundo, minhas emoções não surtiam efeito sobre o ancião – suas feições continuavam as mesmas, entediadas e distantes, contrastando com a música doce que se tornara intensa e urgente.

— Deve amá-lo bastante – comentou de súbito.

Enrijeci do pescoço para baixo. Eu não queria ter que falar sobre Seth com um Volturi, mesmo que fosse Marcus, o menos abominável dos três. E, na prática, eu não sabia muito bem como deveria me sentir com relação a ele. Depois do meu pequeno acerto de contas contra Aro, no qual os segredos sujos ficaram estampados nas paredes que nem a um noticiário de televisão, supus que uma das consequências seria um atrito entre a tríade de governantes ou, no mínimo, que Marcus enfrentaria Aro a respeito do assassinato de Didyme. Só que eu não poderia ter me enganado mais, pois eles não apenas permaneceram do jeito como sempre foi – Aro na posse da liderança, Caius como executor inveterado de leis, Marcus no papel submisso de diplomata –, como também estavam mais unidos do que nunca. Cheguei até a considerar, inicialmente, a probabilidade de Aro ter virado os ventos a seu favor, convencido os outros de que eu estava forjando mentiras e ilusões para desestruturá-los com mais facilidade, mas nem era necessário olhar nos olhos de Marcus para confirmar que ele acreditava em mim, que ele sabia que eu não tinha razões para mentir.

Marcus sabia, igual a cada membro da Guarda. Conheciam a índole de Aro, e o apoiavam do mesmo modo. Ninguém ali estava se ludibriando.

— Sinto muito pela sua esposa – redargui com um ar sardônico explícito na intenção de que ele assimilasse a crítica.

E ele assimilou. Porém, optou por ignorá-la.

— Você me lembra um pouco dela, sabe, minha jovem. – Seus olhos perderam o foco ao que os dedos deslizavam pela tampa do piano, nostálgicos. – Didyme era uma mulher ímpar. Tinha luz própria... Preenchia um ambiente com a sua presença. Com ou sem dom de inspirar felicidade, as pessoas orbitavam ao seu redor.

Franzi o cenho.

— Não consigo sentir sua saudade.

— O tempo e a dor de perdê-la me anestesiaram para tudo. – Ele suspirou, inexpressivo. – Meu interior está morto. Aqui, diante da sua música e das emoções que afloram de você... Talvez seja a primeira emoção real que sinto em séculos. Chelsea jamais conseguiu influenciar meu senso de lealdade sem uma pontada de artificialismo e a habilidade de Corin de nos fazer sentir satisfeitos, independente das circunstâncias, é praticamente uma piada mórbida na minha situação.

Fiquei tão estupefata que parei de tocar.

— Você se permitiu ser manipulado. Sempre soube que Aro...? – Não consegui terminar.

— Desconfiava – Marcus admitiu com um dar de ombros desinteressado. – A princípio, a falta de Didyme me deixou entorpecido. Mais tarde, porém, com a mente mais fria e calculista, passei a cogitar essa possibilidade.

— E não pensa em se vingar? – questionei, ultrajada.

— Vingança não a traria de volta para mim. Além do mais, Aro já teve sua punição e carrega até hoje as cicatrizes. O remorso de ter assassinado a própria irmã. O desgosto de ter que adquirido a mim, um objeto quebrado e cheio de pedaços faltando, sem outra opção senão me aturar, dia após dia. A incerteza com a chance iminente de ocorrer o mesmo com ele e Caius, a qualquer momento... É por essa razão que Sulpicia e Athenodora são guardadas a sete chaves, a propósito.

Bufei, embora em partes o compreendesse. O sentimento que ele descrevia era bem similar ao meu comportamento em relação aos Volturi depois da morte de Joseph.

— Duvido muito que Aro seja capaz de sentir remorso – rebati por força do hábito.

A sombra de um sorriso se insinuou nos cantos de sua boca.

— Bem, ele está sentindo alguma coisa agora, tenho certeza. E para o caso de não sentir, tenho a impressão de que você se encarregará do contrário. – Sua sobrancelha fez um leve arco.

— Pode apostar que vou mesmo. – Acabei sorrindo genuinamente.

O vampiro ancião viu nesse sorriso uma oportunidade para dizer algo que o consternava – palavras que teimavam tanto em adquirir vida própria que deixavam sua boca trêmula. Procedendo uma pausa deliberada, elas tomaram forma concreta com a pressa de um atrasado, mas com a delicadeza de um avô que aconselha:

— Não se prenda às promessas que fez ao garoto, criança. Volte para seu amado. – Estudando o luxo que nos cercava com um repúdio amargurado, ele deu tapinhas complacentes nas costas da minha mão. – A imortalidade é uma tortura lenta quando se está sozinho.

Fiz que sim, antevendo que eu acabara de desenvolver uma espécie de empatia por ele, nem que fosse para sentir um pouco de compaixão. Marcus até poderia estar ali, se resignando a compartilhar sua sabedoria milenar comigo só pela expectativa de me espantar de Volterra do modo mais sorrateiro, mas seu sofrimento era legítimo, antigo. Busquei seus dedos com a minha mão livre e os apertei por reflexo para expressar minhas condolências, não me dando conta do que estava fazendo até ser tarde demais. Quando dei por mim, minha palma da mão já brilhava, minha pele já repuxava, meu dom já duplicava um poder para o qual meu corpo de híbrida não tinha mais espaço disponível.

Caí estatelada contra o mármore, contorcendo-me com a descarga violenta que se que alastrou pela minha coluna, espalhando-se em ondas corrosivas pelos braços e pernas. Arquejei, sentindo a presença do monstro indo e vindo, minha consciência se confundindo com a dela, enquanto o senso de autopreservação do meu organismo procurava desesperadamente em qualquer uma das duas uma âncora que pudesse ajudá-lo a se salvar. E, ao que tudo indicava, não encontrou em nenhuma, pois de repente minha vista começou a escurecer, levando consigo os demais sentidos.

Minha última visão, pelo que posso me lembrar, era a de sapatos engraxados parando na minha frente ao mesmo tempo em que eu tentava inutilmente me escorar nos cotovelos.

 

Acordei depois do que me pareceu serem segundos, embora eu estivesse ciente de que não tinha sido apenas isso. Um rubro dossel brocado pendia do alto, minha cabeça martelava feito um sino na manhã de natal, um monte de imagens indistintas e frenéticas passeavam por meus olhos e alguma coisa fria e dura roçava de modo incômodo no meu pulso.

Tombei a cabeça para a direita e me deparei com David me espreitando atentamente, sentado em uma cadeira na lateral da minha cama. A coisa fria e dura, descobri, era seu polegar.

Entendi depressa o que havia acontecido:

— Quanto tempo fiquei inconsciente? – perguntei, puxando a minha mão para longe de seu toque.

— Três dias – disse de prontidão. Ele soou seco, automático. Examinou-me com os olhos, à espera de uma reação aflita, e quando ela não apareceu, David se pôs de pé, rígido como uma estátua. – Isso não está apenas lhe deixando descontrolada, não é, Anna? Está também matando você.

Meu silêncio prolongado foi resposta suficiente.

— Que diferença faz? – murmurei por fim. Não tinha mais sentido em fazer segredo. – Devia estar feliz. Logo vai ter a sua garantia de que não vou passar a resto da minha vida dormindo com outro. E quanto aos seus respeitáveis mestres... – Ergui-me entre os travesseiros da cama. – Os Volturi vão enfim se livrar da sua principal farpa no traseiro. Vocês só têm a ganhar.

Suas narinas se inflaram, indignadas, em discordância ao meu humor de moribunda:

— Isso muda tudo. – Usando da minha desorientação em seu benefício, David se inclinou para afagar meu rosto, os olhos queimando com tamanha veemência que me deixaram muda. – Anne... – ele soprou, angustiado. – Eu não posso viver em um mundo onde você não vive.

Três batidas na porta atrapalharam o que eu ia concluir com uma bofetada.

— Entre – anunciei e Gianna adentrou no quarto para se deter a dois metros da cama, as mãos escondidas atrás das costas em uma conduta respeitável e impessoal.

— Com licença, signorina. – Ela fingiu não perceber a tensão. – Que bom que despertou. Estão sendo chamados no salão norte. – Os olhos verdes insípidos alternaram entre David e eu. – Os dois.

 Não fiquei satisfeita com a sincronia com que nos entreolhamos, estranhando o convite. Muito menos com a facilidade com que David me indagou, apenas com um olhar, se eu queria trocar de roupa antes de ir, visto que estava com o mesmo vestido ensanguentado de quando voltara da caçada. Neguei com um dar de ombros eloquente e marchamos junto ao encontro dos Volturi, para o torreão onde normalmente levavam as presas desavisadas que Heidi pescava.

Quando ultrapassamos a entrada de madeira, fui pega de surpresa com a presença não somente de Aro, Caius e Marcus, mas também das esposas, da Guarda inteira, de dois visitantes deslocados que identifiquei como sendo Amun e Benjamim. A porta se fechou com um baque sonoro na minha retaguarda e automaticamente cada vampiro se posicionou para bloquear as saídas.

Haviam me montado uma armadilha.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenhas gostado desse singelo presentin de natal adiantado e tentem não entrar em pânico até o próximo capítulo. Quero teorias sobre o que vai acontecer, hein!



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