Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 34
Os Volturi


Notas iniciais do capítulo

Olaaaar, meus amores! ♥

Vocês não imaginam o mini ataque cardíaco que eu tive ao abrir a página e ver esse tanto de notificação!!!

PQP, e essa recomendação linda que JullyDobrevSomerhalder fez?! EU TÔ NO CHÃO, SÉRIO MESMO

Para devolver o favor e deixar todo mundo no chão também, venho a vocês com um dos capítulos mais intensos e sombrios que já escrevi. Preparem-se para o lado obscuro da Anna



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Esperamos até o anoitecer para deixarmos o galpão. Ainda que não houvesse um único filete de luz do Sol restando na noite que subia, partimos no interior de uma limusine com os vidros totalmente pretos. Aos poucos, as árvores e as mínimas vegetações rasteiras da paisagem da gloriosa Toscana foram cedendo espaço à cidade milenar e as torres muradas que pontuavam o cume da colina; quando o carro se embrenhou por uma rua estreita de pedra, que naquele crepúsculo apresentava um tom pálido de marrom, pensei ter ouvido os portões da prisão se fechando ao meu redor.

Volterra. Por tempo indeterminado, minha nova morada. E, muito possivelmente, minha sepultura.

Até a arquitetura da cidade parecia agressiva. Descemos da limusine entre imponentes edifícios de três andares com portas duplas envoltas em arcos que pareciam avançar no beco, quase não deixando espaço para os pedestres. As janelas, em sua maioria, se espalhavam nos planos mais elevados e tinham tons sóbrios de castanho-avermelhado ou verde-escuro; algumas até tinham o beiral cheio de vasos de cravos coloridos, mas nem isso parecia o suficiente para trazer vida àquele mundo de pedra. Automaticamente, senti saudades do verde eterno de Forks.

Avançamos alguns metros e logo nos vimos à esquerda do Palazzo dei Priori com a larga praça se distendendo adiante; ergui meus olhos para a torre exatamente no segundo em que os ponteiros do relógio se moveram para anunciar as oito da noite. Não houve badaladas ou carrilhões de sinos cantando, mas de alguma forma ver aquilo tornou tudo mais real, mais definitivo. Pela primeira vez desde que despertei, fui abstraída por uma pontada de hesitação.

Jane deve ter visto isso transparecer na minha expressão, porque um sorriso sardônico surgiu em seu rosto para exibir todos os dentes, os olhos duros cintilando com um brilho cruel.

— É um lugar bastante agradável, não acha? – indagou retoricamente enquanto analisava a Piazza dei Priori, as mãos unidas nas costas forjando uma falsa postura solícita. – Devia ver durante o dia.

— Especialmente no ápice do Sol – Alec acrescentou, entrando no jogo da sua gêmea. – Estou certo de que seu irmão deve ter dito algo, afinal, ele próprio já teve a oportunidade de apreciar desta beleza. 

Estreitei os olhos em fendas, sentindo os punhos adquirirem espasmos severos de ódio. A praça não tinha absolutamente nada de especial – era um cercado de construções de pedra repletas de arcos floreados nas portas e nas janelas, as extremidades coroadas por padrões quadriculados emblemáticos dos castelos medievais – e se eles estavam fazendo tanto alvoroço em cima dela era apenas com a intenção de me provocar, porque aquele foi o palco da tentativa de suicídio frustrada de Edward. Decidi não reagir, porém; seria dar a eles exatamente o que esperavam e eu não queria que me tomassem como um alvo fácil de se atingir com implicâncias. Continuei marchando pela lateral até alcançar um beco ermo que se afunilava à medida que ficava mais íngreme, terminando em um paredão de tijolos e uma abertura pequena no calçamento, a grade ligeiramente afastada para o lado.

Um buraco de esgoto, típico dos ratos, pensei com um sorriso seco antes de saltar dentro dele, pousando com suavidade nas pedras úmidas do fundo. David veio logo atrás de mim, seguido por Jane, que assumiu total dianteira pelos túneis inclinados com paredes escorrendo, e por último Alec, com o som pesado da grade se fechando atrás de si. No final do caminho nos deparamos com mais um conjunto de grades; essas eram grossas e avermelhadas pela ferrugem, e foram fechadas com uma tranca ruidosa assim que passamos elas, para enfim nos vermos diante de uma porta de madeira simples e baixa que guardava um corredor. Era bem comum esse corredor; tinha paredes claras e uma boa iluminação, um tapete cinzento e ordinário. Levava a um elevador que tocava uma música genérica ruim – os dois vampiros de tocaia ali ampliaram os olhos ao me verem, porque pela aparência corada, cheiro incomum ou coração frenético, ficava evidente de quem se tratava. Graças a junção conturbada de David na Guarda, eu já tinha sido peça de cochichos.

Alec se limitou a um retorcer de boca para responder a pergunta muda nas feições deles; as portas do elevador se fecharam e bastou uma passagem rápida para que elas se abrissem para uma recepção refinada, toda revestida em madeira e piso acarpetado em verde-escuro. Pinturas renascentistas retratando a Toscana supriam a falta de janelas e detrás do balcão de mogno, uma mulher de aspecto bastante profissional mantinha um sorriso polido. Eu a conhecia por intermédio das memórias de Edward e dos outros três vampiros ali presentes; era Gianna, a humana que servia os Volturi na esperança de que a transformassem e ela fosse jovem e bonita para sempre. A imortalidade, para ela, estava no direito de cobrar qualquer preço – fosse a alma, o caráter ou a dignidade, Gianna estava disposta a pagar. Era de dar pena.

Jane a cumprimentou brevemente e em seguida me apontou os sofás de couro claro, ainda no papel cortês:

— Espere aqui. Iremos comunicar os mestres da sua... – ela se virou para me estudar com olhos críticos, buscando cuidadosamente a palavra adequada – ...visita. – Quando viu que David foi o primeiro a atender suas orientações, acomodando-se de forma despreocupada em um dos sofás, Jane crispou a testa com uma emoção de início que não consegui distinguir. – David?

— Vou ficar com ela, Jane. Aguardaremos juntos pelo chamado de Aro. – David fez um gesto eloquente para que eu me juntasse a ele. – Não vou permitir que entre lá sozinha.

Foi o modo aveludado, quase protetor com que ele disse isso que entregou o sentimento primitivo emanando de Jane – a voracidade ansiosa que lampejava por sua expressão de tempos em tempos e com a qual ela não sabia lidar. Santo Deus, aquilo sem dúvida era possessividade. O choque foi tamanho que me deixei cair do lado de David sem contestar; eu vivi o suficiente para ver Jane com ciúmes. Os olhos dela viraram brasas homicidas ao flagrar nossa proximidade, o que no ato deixou tudo mais óbvio.

Esperei até que os gêmeos se retirassem para descarregar o meu escárnio:

— Ora, ora, ora – cantarolei. – Parece que alguém tem uma admiradora nada secreta.

David revirou os olhos, sem se mostrar surpreso – ou minimamente interessado.

— Não me diga que está com ciúmes, está, Anna?

Bufei.

— Não sonhe tão alto, é patético. Na verdade, creio que é perfeitamente adequado, caso queira minha opinião. – Dei de ombros. – Uma sádica cretina para um cretino sádico. 

Ele ficou quieto, impassível à minha rispidez. Seus sentimentos para mim eram um livro aberto que eu não queria ler, mas que sabia o conteúdo como conhecia meu próprio coração. Nenhuma palavra que saísse da minha boca teria mais poder sobre ele; nenhuma farpa seria o suficiente para abalá-lo, porque o que havia para destruir eu destrocei completamente no jato. David estava me evitando desde aquela conversa e não fazia questão alguma de disfarçar isso; ele costumava pensar que não poderia haver coisa mais dolorosa do que me assistir escolher outro ou do que imaginá-lo com as mãos em meu corpo nu, mas a descoberta abrupta da minha indiferença levou suas convicções por terra e ainda da forma mais violenta possível. Outra vez eu desfiz com as suas resoluções – os princípios aos quais ele se agarrava com veemência –, tendo agora o agravante de tê-lo deixado inteiramente desnorteado. Ouvir-me confessar que eu o apaguei da minha vida como a fumaça que se perde no vento arrancou o chão debaixo de seus pés. E doía ainda mais quando David lia em meus olhos a sintonia com seus pensamentos e percebia que eu não tinha pretensão alguma de negá-los. Ele poderia aguentar o ódio, o nojo, a decepção, qualquer sentimento, mas não a indiferença. Isso, para David, era pior que tudo.

 Cruzei as pernas e me concentrei no vaso de cristal da mesa de centro defronte a mim, a postura educada contrastando com o pijama surrado que eu usava. Desliguei-me rapidamente da cabeça dele, não querendo dar brechas para que desenvolvesse uma compaixão involuntária, porque nem ao menos de piedade ele era digno. Mas, por mais que não estivesse conectada... eu sentia. Cada uma de suas emoções estava ali, se derramando à nossa volta feito o cheiro entorpecente de uma flor venenosa; sua confusão, seu desespero de se apegar a qualquer fiapo de laço emocional que pudesse resgatar comigo...

Entendi então a cisma de David em esperar juntos para encarar Aro e os demais Volturi; era uma tentativa de preservar o antigo elo com Joseph, como se fôssemos adentrar no antro dos inimigos no papel de filhos leais – como se ele já não tivesse ferrado com todo o restante. Deduzi que o absurdo da situação deve ter ocorrido a ele em algum momento, porque uma sombra cruzou suas feições e seus dedos retorceram nos bolsos do terno – um hábito comum do garoto que conheci na Rússia.

— Nervosa? – indagou de súbito, imprimindo na voz uma delicadeza que nada fez para esconder sua preocupação.

Neguei, sem desviar os olhos das flores no vaso de cristal – enquanto eu fitava, as flores se contraíram e se desmancharam em uma nuvem de pó no ar, intensificando o cheiro fúnebre da sala de espera.  

— Por mais incrível que pareça, nem um pouco – sussurrei, contundente. – Mas eles certamente vão ficar.

O pó das flores caiu sobre o tapete com uma leveza que os humanos seriam incapazes de discernir. No mesmo instante, uma pontada de dor certeira me atingiu bem no meio da testa. Meu corpo não estava precavido para a violência com que ela se alastrou; encolhi-me em uma reação involuntária ao que os dedos iam de socorro às têmporas, massageando-as freneticamente na angústia de aplacá-la, mas de nada serviu. A dor desceu meus músculos, alcançou a ponta das mãos e dos pés para em seguida fazer o caminho inverso – de repente, senti-me grata por estar sentada, senão provavelmente meus joelhos teriam cedido. Não houve sangue pingando do nariz ou subindo a garganta, mas isso não significa que tenha sido melhor. Eu nunca tinha sentido uma dor assim, não de um único impacto – o preço dos poderes usados em Forks, no avião e até mesmo ali com aquelas florezinhas estava enfim sendo cobrado e eu não tinha condição alguma de honrar o pagamento.

Mais do que previsível, senti o monstro às margens da minha consciência lutando para conquistar seu espaço; ela sempre aparecia no meu estágio mais fraco e vulnerável e, desta vez, eu não quis nem tentar impedi-la. Estava cansada demais para resistir. Já não tinha motivos para fazê-lo. Rendi-me sem pensar duas vezes e não tardei a senti-la tomar o controle, sua presença obscurecendo minha cabeça feito uma mancha de nanquim maculando um papel em branco. Ela se acomodou sem esforço em cada fragmento do meu ser e eu definitivamente não estava preparada para o alívio que experimentei; a dor diminuiu na proporção em que a frequência cardíaca desacelerava, minha pele se tornou mais dura, fria, pálida. De uma hora para outra, meu coração virou um mínimo eco dentro do peito – imaginei que estava morrendo de vez, já que nem em seus últimos minutos os humanos têm batimentos tão lentos e pesados, mas tanto o monstro quanto eu estávamos plenamente confortáveis.

Ela se espreguiçou languidamente, como se tivéssemos ficado muito tempo sem trabalhar os músculos, e abriu um sorriso maléfico para David e Gianna, que nos encaravam estupefatos. David tremeu diante dos olhos vermelho-rubi, o que deixou o sorriso do monstro mais amplo, porém Gianna se reservou a lançar um olhar atravessado para as portas duplas, apreensiva pelo retorno de Jane e Alec. Demorou quase uma hora para os gêmeos voltarem, contudo; eles gesticularam para que adentrássemos em mais um corredor ricamente adornado, parando de frente para as portas folheadas a ouro puro. 

Antes mesmo que as portas se abrissem, eu sabia o que nos aguardava do outro lado. Toda a Guarda estava posicionada em um semicírculo nas laterais dos tronos com seus senhores ocupando suas respectivas posições, as esposas de pé em seus flancos escoltadas por guarda-costas. Ao todo havia vinte e nove vampiros compondo uma formação estreita – incluindo os dois vampiros do elevador, embora eu não fizesse ideia de como entraram –, mas o salão principal – o centro da força e do poderio dos Volturi – era espaçoso o suficiente para abrigar uma multidão; inteiramente ornamentado em ouro e mármore, o piso brilhante refletia o desenho de um primoroso mosaico, ofuscado apenas pelas soberbas tapeçarias que pendiam das paredes e pelas pinturas renascentistas na abóboda do teto. Detrás dos tronos, acima dos tablados, colunas de mármore se erguiam majestosas e faziam um plano de fundo intimidante para aquela reunião. Não era necessário ser empata para captar a tensão sufocando o ambiente.

Quando todos os olhos vermelhos se cravaram em mim, a tensão se tornou opressiva. Seus pensamentos desconfiados e emoções conflituosas desestabilizaram um pouco o monstro – ela não estava acostumada a lidar com tamanho fluxo de poder, não da forma como eu estava. Minhas pernas estacaram na entrada ao que Jane e Alec assumiam seus postos junto à formação e David continuava em linha reta, reagindo ao convite de Aro para que ele avançasse.

— David, David... – Aro cantou com visível alegria, apesar do rosto parecer uma máscara petrificada. – Você realmente me surpreende. Partiu para buscar um pedaço de carvão bruto... – Seus olhos sorriram para mim com um brilho ávido que me despertou um espasmo de asco. – E retorna a nós com um diamante dos mais raros. Impressionante, meu caro!

David não respondeu. Ele se deteve na base do trono, a mão estendida para entregar a Aro acesso livre à sua mente. O vampiro ancião não hesitou; desceu os degraus quase flutuando para tomar a mão dele entre as suas, os olhos ficando inexpressivos à medida que se fechavam para que pudesse se concentrar mais facilmente. Talvez muito tarde, me ocorreu que eu devia me afundar nos pensamentos de Aro também, descobrir quais lembranças ele estava sondando, porém eu não consegui ver mais nada que não fosse aquelas mãos unidas. David não tinha importância alguma para mim, mas estar presenciando aquela cena fez com que eu me sentisse profundamente traída, ultrajada pela memória de Joseph. Minha indignação foi tão intensa que o monstro não aguentou o peso de suportá-la; ela me entregou novamente a liderança e me abandonou ali sozinha, emocionalmente forte mas fisicamente fraca, para enfrentar o inimigo.

Depois do que me pareceu uma eternidade, Aro se afastou de David de cenho franzido, insatisfeito pelas lacunas nas respostas incompletas. Seu manto negro ondulou sobre o piso lustroso enquanto ele se voltava para Marcus, o ancião imerso em absoluto tédio e desinteresse, a mão erguida em um pedido exigente. O toque não durou mais do que um segundo.   

— Marcus está deveras intrigado a ligação entre vocês dois – murmurou, sua testa ainda mais vincada. O modo como articulou deixou explícito que a curiosidade era sua, não de Marcus. – Um vínculo antigo, profundo... Mas bastante desgastado. Unilateral, eu diria. E, mesmo assim, a jovem escolheu vir com você. Estou... – ele esfregou as mãos uma na outra, umedecendo os lábios – ...perversamente ansioso para saber como tudo aconteceu.

— Eu não me aproximaria se estivesse em seu lugar. – Queria ter sido eu a falar isso, mas foi a voz de David que ecoou pelo salão, suas palavras murmurinhadas de um único folego para que não tremessem.

Aro não deu crédito ao aviso, dispensando seus guarda-costas com um aceno mecânico e ficando frente a frente comigo totalmente despido de suas defesas. Eu compreendi depressa essa manobra. Ele tinha plena consciência de que, se eu quisesse matá-lo, não seriam dois ou três grandões que iriam me impedir – talvez nem toda sua preciosa Guarda seria o suficiente. Aliás, esse foi o motivo pelo qual demoraram tanto para nos receber; de início, especularam as justificativas que explicassem minha presença em Volterra, já que ninguém pareceu engolir o que Aro viu nas recordações de Alec e Jane, em seguida debateram os riscos que eu poderia oferecer para a segurança de todos e, por fim, simplesmente me deixaram entrar porque havia grande possibilidade de eu fazer isso arrebentando as portas e as paredes a qualquer momento.

A visão de Aro era muito mais política do que a do resto; enquanto os outros viam inevitabilidade, ele enxergava uma oportunidade rara a ser explorada. Ele ainda me cobiçava como um de seus troféus. Sabia que jamais conquistaria isso através de minha afeição, mas imaginava obter sucesso por intermédio de David, afinal, ele era seu trunfo. Pouco importava o desdém que eu alimentava por ele; eu dei minha palavra na promessa e estava ali por sua causa, portanto David teria recurso para me controlar e montar resistência quando fosse necessário. Era nisso que Aro estava apostando todas as suas fichas.  

— Seja muito bem-vinda a Volterra, valiosa Anna – saudou com um sorrisinho artificial, as mãos presas nas costas de forma despretensiosa feito um avô cumprimentando uma criança. Notei logo de quem Jane copiara essa mania para tentar parecer simpática imitando uma estátua de cera. – É um prazer para nós recebê-la em nosso humilde lar.

Pensei em saltar em sua cabeça e arrancá-la do pescoço. Pensei em cuspir na cara dele. Pensei em pulverizá-lo com um estalar de dedos. Entretanto o que fiz em réplica foi abrir um sorriso afiado e esticar minha mão para devolver a cortesia. Onde quer que estivesse, Joseph ficaria orgulhoso da atitude diplomática.

— O prazer é todo seu, Aro. – Analisei o aspecto rígido da Guarda com um ar irônico. – Mais literalmente do que supõe.

A rispidez das frases não o perturbou; ele segurou minha mão para um beijo suave, mostrando-se desapontado mas nada surpreso quando não pôde invadir meus segredos. Reprimi o impulso de limpar os vestígios de seu contato nas calças do pijama conforme os olhos leitosos percorriam minha silhueta e prendi a respiração quando o rosto de Renesmee foi resgatado da sua memória em um lampejo vívido, comparando as características dos híbridos.

— Vejo que os anos lhe caíram magnificamente bem. Você sempre foi estonteante, minha querida, mas confesso que a semi-humanidade... – seu peito inflou com um suspiro de contentamento – ...a tornou excepcional. Não havia notado, é muitíssimo curioso... – Seus pés se moveram devagar à minha volta, o tom sério de quem avalia uma peça no museu. – Porém, agora que sabemos de seu parentesco com o jovem Edward, a semelhança é assustadora. – Quando o único som que saiu de mim foi meu maxilar trincando e ele sentiu minha raiva se apoderando do salão feito uma neblina densa que engolfa uma floresta, Aro recuou ligeiramente para perto de David, procurando apoio. – Espero que, seguindo o exemplo de seu irmão David, você não tenha guardado ressentimentos a respeito de nosso último encontro na Noruega. Imagino que compreenda, como patronos da lei e da justiça, a nossa responsabilidade...

— Poupe-me de seu cinismo, não estou com estômago para isso, não hoje – cortei-o, coçando a testa de tão farta que já estava daquela encenação ridícula. – Vamos deixar alguns pontos bem claros, certo? Eu não estou aqui porque quero, não sou sua convidada e muito menos sua querida. Nós dois sabemos devidamente que esse infeliz, que não é o meu irmão, guarda sim ressentimentos, e se ele o esconde é em nome do despeito estapafúrdio que sente. David não liga para vocês, não vai ligar se eu matá-los um a um, e respondendo a sua pergunta, sim, vocês correm esse risco. Abandonei os Cullen porque me tornei um perigo mortal para eles, era conveniente que eu me afastasse e de quebra tirasse esse idiota da cola do meu namorado, e garanto que a situação não muda de figura só porque vocês têm alguns músculos – apontei o indicador para Felix e Demetri – e meia dúzia de truques de mágica – repeti o movimento com os gêmeos malditos.

O silêncio se propagou com o mesmo efeito devastador de uma explosão de bomba; subitamente, não havia o som de um piscar que fosse ou do ar atravessando os pulmões sem vida, somente a brisa agitando suas capas escuras e as roupas de verão por debaixo delas, além das batidas cadenciadas do meu coração. Ninguém se moveu um músculo, mas a mudança se tornou palpável na atmosfera – com um sobressalto vertiginoso, a configuração defensiva deles foi direto para hostil.

Caius sibilou de cima de seu trono, as mãos esticadas nos apoios parecendo garras:

— Garota insolente, como ousa... – começou, mas foi impedido de continuar quando um campo magnético irrompeu pelo salão, acorrentando todos onde estavam. Meus olhos se fecharam brevemente para depois revelar a eles o vermelho impiedoso do monstro dentro de mim. Ela reclamou as rédeas do meu corpo para si sem precisar de qualquer tipo de anúncio; aquela faísca de agressividade deles foi chamariz suficiente para atender os desejos dela por caos e destruição.

Com um apertar autoritário dos punhos, ela colocou todos brutalmente de joelhos – inclusive Aro e David –, que assistiram estarrecidos conforme ela caminhava com tranquilidade até Caius, brandindo um apavorante sorriso anavalhado no rosto. Ela correu com o indicador pelo maxilar dele, desintegrando a pele poeirenta e vendo-a se recompor à medida em que os olhos da Guarda ficavam mais e mais arregalados. Se o medo fosse seu combustível, o monstro teria sustento garantido vindo deles por mil anos.  

— Mais uma palavra e eu arranco a sua língua. Vocês não vão fazer nada, porque não podem fazer nada. – Ela se dirigiu com passos premeditados para o trono de Aro, cruzando as pernas ao se acomodar nele. – Eu poderia me sentar aqui, confessar de bom grado que estive de acordo com os tais planos de Joseph, compactuado com os romenos Vladmir e Stefan para destronar os falsos reis, ou quaisquer mais artifícios que eu poderia inventar – seus olhos se reviraram, entediados ao que a mão apoiava o queixo e ela estudava o salão com um misto de desprezo e deboche –, e do mesmo modo vocês não fariam nada. E querem saber por quê? Porque vocês não passam de um bando de covardes escondidos em suas covas, que posam de intocáveis e invencíveis nas suas fortalezas, mas que ao primeiro sinal de uma briga justa, encolhem-se como larvas dentro de suas capas.

Bloqueando meu poder sobre ele usando o seu próprio domínio telecinético, David se pôs de pé com os braços recurvados para trás e deu um passo convicto na minha direção, entretanto isso não refreou o monstro – muito pelo contrário. Ela se recostou mais na cadeira, mais incitada pelo prelúdio de desafio do que pelo medo.

— Por favor. Faça. Tente provar que estou errada. Dê-me um único motivo para atacar. – Diante da frieza, David parou e engoliu em seco, impotente quando ela o capturou outra vez e o levitou para perto; uma predadora implacável. – Eu prometi vir com você, prometi estar ao seu lado pelo tempo em que você quiser, mas isso não quer dizer que eu não vá matá-lo ou quem mais estiver com você. Não me importo nem um pouco de cumprir a promessa no Inferno, podemos queimar juntos lá, por toda a eternidade.

— Anna... – ele tentou na esperança de encontrar um rastro de racionalidade, só que era inútil.

O monstro estava em seu auge.

O cenho dela se franziu quando a disposição em que estavam reviveu uma lembrança; por mais que os papeis estivessem invertidos e o cenário fosse outro, o quadro era igual ao do dia em que David atacara Seth e traumatizara seus irmãos de matilha. Feito uma lâmpada, uma ideia hedionda acendeu na cabeça do monstro.

— Talvez já estejamos no Inferno. – O terno de David se dividiu em dois com um rasgo e ela enterrou os dedos em seu peito, fragmentando qualquer coisa que estivesse na rota entre eles e o coração. De olhos desolados e boca escancarada, David arquejou quando ela arrancou do lugar aquele músculo imóvel e azulado pelo tempo e pelo veneno. O coração rachou em pedaços e, como era próprio de um vampiro, se regenerou depressa. – Lembra do que jurou para mim? Que faria da minha vida um verdadeiro inferno? Meus parabéns, você conseguiu. – Ela enfiou bruscamente o coração no buraco escancarado e o empurrou para longe ao se levantar do trono. – Agora esteja preparado, porque vou devolver a você algo muito, muito pior.

— Anna – David sem fôlego chamou uma última vez, estatelado no chão de mármore.

O monstro o ignorou. Sua atenção estava focada em Aro e ela ficou satisfeita por vê-lo ajoelhado feito um escravo diante dela. Era apropriado, mas não era uma revanche completa – sua sede de vingança não estava nem pela metade. Aro era famoso por desencavar os segredos de seus inimigos; o monstro resolveu exibir os segredos dos Volturi. As pinturas na abóboda do teto elevado, mais lindas e pomposas do que as da própria Capela Sistina, foram substituídas por ilusões de artimanhas sujas e desavenças sangrentas; as velhas disputas com os romenos, os massacres de clãs que resultaram na aquisição dos principais membros talentosos da Guarda – sendo que a morte de Joseph era o que mais se destacava –, o assassinato velado de Didyme, a companheira de Marcus e irmã de Aro, que ele mesmo matou se fundamentando somente em interesses políticos. Tudo o que eles abafavam debaixo de tanto requinte e ardor pelas leis ficou exposto feito uma ferida fresca.

Um som de engasgo se evadiu de Aro. A resposta dela para ele foi um sorriso insípido.

— E quanto a você... Não pense, nem por um segundo, que por me ter aqui com vocês, os Volturi se valerão de alguma vantagem. Vai desejar amargamente, dia após dia, que esse verme vá embora e me leve dessas catacumbas nojentas com ele. – As portas douradas se abriram à proporção em que ela se afastava com um andar sossegado. – E até que isso aconteça, se forem espertos, não vão cruzar o meu caminho.


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Notas finais do capítulo

Minha única consideração final é AINDA BEM QUE ISSO ESTÁ ACONTECENDO BEM LONGE DO SETH

Gente, eu acho que eu cheguei a comentar com alguns leitores, mas não anunciei direito...

ENFIM, vai rolar spin-off da Leah.



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