Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 33
Consequências


Notas iniciais do capítulo

Olaaaar pessoal o/

Gente, não tem como eu começar essas notas de outra forma, vocês não têm noção de como eu chorei de emoção por essa recomendação maravilhosa que a Katherine fez. Sério, cada palavra foi uma lágrima e vou guardar essa recomendação no meu coração como a uma carta de amor.

Piegas, mas verdadeiro.

SUA LINDA, ESPERO MUITO QUE ESSE CAPÍTULO E OS PRÓXIMOS HONREM CADA PALAVRA DO QUE VOCÊ DISSE

Vamos então ao capítulo ♥



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Agarrei-me mais ao estofado do banco e, com o estômago dando voltas e mais voltas, concentrei todas as minhas forças unicamente em tentar não vomitar. Não era nada fácil. Eu podia sentir a bile queimando e entalando na garganta. Quando eu lutava para contê-la, um espasmo frio se espalhava pelo meu corpo junto de um suor pegajoso. Droga, eu tinha certeza de que estava ficando verde. Era apenas uma questão de tempo para algum deles perceber. Tentando disfarçar, me ergui e caminhei até a mesa de canto para me servir de um copo de whisky— a bebida raramente me deixava na mão e algo me dizia que não seria agora que iria falhar. Enchi um copo generoso do decantador e o entornei de uma só vez, sem gelo; o whisky desceu quente, me livrando da bile, mas não pôde fazer muito para ajudar com o suor.

Encarei de modo fixo o copo vazio enquanto o calor do álcool se espalhava devagar pelos músculos. Havia ficado um amargor na minha boca, e tive dúvidas se era por culpa do whisky. Por um segundo, tive um rápido déjà-vu, embora não houvesse uma pontinha que fosse de nostalgia para torná-lo mais suportável. Não foram poucas as vezes em que me vi daquele jeito – em uma aeronave qualquer prestes a alçar voo, e na maior parte delas a mesma sensação de vazio e angústia me engolfava. Era a raiva que fazia toda a diferença. Era a cólera que corroía como ácido, que ardia como fogo pelas minhas veias, quase a ponto de eu enxergar vermelho.

Era a raiva que me refreava também. Era um lembrete do vermelho que eu escondia. Do monstro que eu guardava a todo custo e que não podia se libertar – não ainda, não enquanto continuávamos tão próximos de casa. Forks estava a uma distância muito curta do aeroporto de Port Angeles e eu não estava nem um pouco certa sobre o que aconteceria quando perdesse o controle novamente. O monstro acabaria com eles antes que meus dons acabassem conosco? Um questionamento decisivo que eu não podia deixar a margem de erros. Se o monstro falhasse – e eu morresse antes da hora –, era muito provável que David regressasse aos Cullen e os atacasse em retaliação, deduzindo que eles tinham colaborado com aquela armadilha. Entretanto, por outro lado, se o monstro tivesse sucesso e os dizimasse... O que viria depois? Por quanto tempo meus poderes permaneceriam tresloucados, relevando a verdade aos olhos humanos? A proximidade deixava não somente os Cullen, mas também os quileutes vulneráveis. Qualquer o caminho que eu tomasse... O mais sensato era sair de Washington o quanto antes. Levar a bomba-relógio que eu virei para estourar no colo dos Volturi.   

Sorri um pouco com esse pensamento; não por humor, mas sim por haver nele algo de reconfortante. Em nenhumas das alternativas considerei a possibilidade do monstro se aliar a eles. Por mais que ela tivesse atacado a minha família, por mais que tivesse ferido da forma mais cruel possível o psicológico daqueles que eu mais amava, eu sabia que ela odiava os Volturi com a mesma intensidade que eu. Podia sentir a fúria – mais dela do que minha – ebulindo para irromper a superfície, podia senti-la arranhando as grades da prisão onde eu a confinei, querendo descarregar neles toda a selvageria e a violência que a obriguei a conter desde que eu despertara.

Senti os olhos de David se demorarem no meu sorriso aparentemente inócuo conforme Jane e Alec discutiam baixinho na entrada do jato. Ele deu sinais de querer se aproximar, mas foi sábio e pensou duas, se acomodando na poltrona mais afastada com as mãos unidas sob o queixo. Não havia expressão em seu rosto, apenas uma especulação silenciosa – o que era previsível. Eu sabia que em nenhum momento David se deixara enganar pelas palavras que proferi diante dos Cullen e, francamente, eu nem esperei por isso quando tomei minha decisão. Ele era esperto demais e jamais acreditaria que desisti de tudo o que mais amava – pelo menos, não sem lutar ou sem uma razão substancial, e sendo terrivelmente curioso como era, não havia nada mais fácil para mim do que tirar vantagem de suas fraquezas.

Minha única vantagem. Que deprimente. Ter que contar com a curiosidade de um calhorda.

Suspirei e esvaziei o decantador no meu copo, satisfeita por descobrir na mesa de canto uma caixa com charutos cubanos. Não era cigarro, mas na falta deles, os charutos me bastavam – acendi um entre os lábios, ignorando o olhar reprovador que o piloto humano me atirou ao cruzar comigo rumo à cabine de comando e desabei no assento mais distante de David, a cabeça inclinada para trás.

Escutei os cliques dos botões sendo pressionados no painel de controle e o motor do jato ganhou vida; quase que no mesmo instante as vozes de Alec e Jane se elevaram mais no fluxo ininterruptos de frases cuspidas em latim arcaico. Bufei e revirei os olhos quando identifiquei o conteúdo da conversa, reprimindo o impulso de rir quando percebi que eles estavam sendo cautelosos por medo da minha reação – como se eu não pudesse ler seus pensamentos. Eu não havia prestando atenção antes, mas o motivo do conflito entre eles era um impasse: deveriam esperar ou não que Afton retornasse da tarefa para a qual foi enviado?

Ergui-me no banco o suficiente para fitá-los sobre o ombro:

Não adianta. Ele não vai chegar— murmurei em latim, para que eles se tocassem de uma vez que não estavam lidando com uma imbecil. – Já podemos dar a partida nessa porcaria.

Jane me fuzilou com o olhar, os punhos apertados ao lado do corpo esguio. 

— Afton tinha uma missão.

— Pois é, querida. – Dei uma pausa debochada para bater as cinzas do charuto sobre o tapete caro. – Mas Afton falhou. Ele conseguia ficar invisível para quem o visse, mas não podia ocultar o cheiro, não sabia ser silencioso e ficou encarregado de capturar o melhor par de ouvidos da alcateia. – Arqueei a sobrancelha para os três e em seguida puxei uma vagarosa tragada. – Esqueça, supere e arranje uma desculpa convincente para Chelsea até chegarmos.

Os gêmeos paralisaram no lugar, chocados com a naturalidade com a qual tratei do assunto. Eles tinham todo um esquema indireto montado para arrastar Seth até Volterra, envolvendo decisões incompletas e repentinas de Afton induzidas por ameaças, aquele serviço dispendioso de jato fretado – onde o transporte de pessoas sequestradas era coisa corriqueira –, uma lista considerável de torturas por praticar no interior das fortalezas dos Volturi e imaginaram que eu não ficaria exatamente feliz quando eu descobrisse o que tinham planejado para meu namorado. Notei que eles estranharam, inflando as narinas de modo inconsciente quando a ruptura de autodomínio que aguardavam simplesmente não apareceu e demorou quase um minuto inteiro para que eles percebessem que nada daquilo era novidade para mim. A partir de então, o receio deles – assim como David – se converteu em desconfiança.

Meus poderes haviam se tornado desenfreados – isso era evidente para quem quisesse ver. Jane e Alec sabiam que eu havia proposto de ir embora com eles para não acabar matando alguém por acidente; David era o único que intuiu que havia algo a mais, apesar de ainda estar longe de definir o que era. Comigo ali, declarando em alto e bom som que já tinha antecipado seus passos... Os gêmeos começaram a se questionar o porquê de eu não os atacar agora, quando as circunstâncias pareciam conspirar completamente a meu favor.

Endireitei-me na poltrona antes que o monstro passasse a concordar demais com eles. Fechei os olhos, tentando me desligar daquele ambiente ao mesmo tempo em que me esforçava para bloquear meus próprios pensamentos – mal entreouvi as ordens que Alec gritou em italiano ao piloto contrabandista, apenas senti o sacolejar do jato taxiando pela pista estreita enquanto eu terminava o primeiro charuto, o barulho ensurdecedor das turbinas acelerando e, enfim, a pressão comprimindo meu corpo quando decolamos entre as nuvens mínimas e finas, deixando Port Angeles cada vez menor até desaparecer de vez.

Uma minúscula parte de mim se sentiu aliviada no que o céu pálido da alvorada se distendeu diante de nós, azul e interminável, porque caso alguém tenha tentado nos seguir, aquele aeroporto seria sua última parada. Não queria encontrá-los, não queria escutar suas palavras me dissuadindo a desistir, em especial porque eu sabia que cederia a elas.

Principalmente se essas palavras viessem de Seth.

Seth. Meu garoto-lobo.

Respirei fundo com a dor que me rasgou o peito. As lágrimas inundaram meus olhos, mas não caíram; ficaram presas e pesaram entre as pálpebras. Pensar nele e nas atitudes horríveis que tive que tomar para mantê-lo – e a todos – a salvo fazia com que eu me sentisse despedaçada, como se uma dúzia de ganchos puxassem minhas costelas de dentro para fora, me dilacerando por inteiro, para em seguida oferecer os restos expostos às bicadas de urubus. E, por mais que doesse, por mais que sangrasse, em nenhum momento eu me senti arrependida.

De forma um tanto quanto irônica, a situação toda pareceu se ajustar em meu benefício. Uma visão me alertou da chegada de David com os gêmeos malditos ainda durante meu surto – o monstro até inclusive fez questão de mostrar a Seth – e voltou a se repetir quando acordei, junto com a imagem de Afton fazendo seu cerco furtivo pela retaguarda. Alice também previu, mas a pobrezinha estava tão desorientada pelas imagens hediondas que eu a havia forçado assistir que deduziu ser mais uma ilusão perdida entre tantas, e as visões falsas que implantei em sua cabeça depois contribuíram bastante para que ela segurasse esse ponto de vista – tanto que nem mesmo chegou a compartilhá-las com Edward, mantendo-se  à distância com Jasper. Com Teresa, parti para a mesma premissa, apesar de que com ela, precisei ser bem mais cuidadosa; aquele sentido extra que ela herdara dos quileutes antigos fazia com que tivesse mil olhos afundados da floresta e apagar dos que viam a imagem de David adentrando em nosso território foi trabalhoso, ainda mais porque tive que fazê-lo sem chamar atenção. E Edward... Assim como Seth, ele estava tão focado no meu estado de saúde que não conseguiu se dar conta de outra coisa até que fosse muito tarde, e quando finalmente se tocou, não havia o que poderia fazer para me impedir. À essa altura, eu já tinha lançado meu poder sobre as emoções para amedrontar as matilhas e induzi-las a voltar a La Push, usado a telecinese para prender Edward com os demais Cullen – e, posteriormente, Teresa – em um campo gravitacional no estacionamento que não permitia que nem mesmo o som se propagasse e, sobretudo, encontrado um pretexto adequado o suficiente para afastar Seth de Forks.

Quem por pouco não colocou tudo a perder, para variar, foi a Leah.    

Para início de conversa, eu nem esperava pelo seu retorno; só a vi quando ela estava a ponto de se deparar com Seth no acostamento da rodovia. Leah apareceu diante do meu leito improvisado com Martín – o dono da “bunda mais pecaminosa” que ela já havia visto na vida, de acordo com as cartas – e o pequeno Arturo, bastando dois minutos de diálogo para que ela já percebesse alguma coisa errada. A expressão que fez quando pedi pelo peixe frito do bar – que era realmente pavoroso, mas que foi a única mentira que pude inventar –, por um instante, me deu certeza de que eu seria desmascarada, mas não; ela usou uma pergunta aleatória para aliviar o clima tenso e ficou toda distraída quando virei essa brincadeira contra ela, falando sobre uma possível gravidez. Uma maldade minha, blefar com um assunto tão complicado para ela e – como descobri também – para Martín, e algo que no fundo eu torcia para que fosse verdade.

Toquei minha barriga por cima do pijama. Antes tudo fosse verdade e ela estivesse certa; eu aguentaria calada as dores de cabeça, os enjoos, os sangramentos e o que mais fosse necessário se eles não passassem dos resultados de um pedacinho de Seth fincando raízes dentro de mim. Quem dera fosse um bebê – nada me faria mais feliz. Mesmo sendo tão jovem, Seth seria um pai maravilhoso.

Encolhi-me com a ideia. Forjar futuros que jamais aconteceriam foi tão excruciante quanto abandoná-lo. As palavras exatas do que eu disse na minha despedida para Seth ainda eram frescas em minha mente; eu desnudei a minha alma diante dele enquanto falava, ainda que corresse o risco de me delatar. Mas Seth não interpretou os fatos do jeito como eu os disse – eu precisava ser sincera e fui, no entanto quando terminei, o que eu mais precisava era que ele fosse embora e foi isso o que o imprinting se encarregou de fazer.

Foi quando as coisas começaram a desandar.

Afastados da influência dos meus poderes, Sam e os outros resolveram fazer uma ronda de última hora e interceptaram o rastro dos vampiros mais ou menos quando eu tive a visão de Afton se colocando na frente do Bentley de Martín – uma visão que veio atrasada demais para eu conseguir evitar. Assisti, impotente e horrorizada, David transpassar sem esforço a barreira montada pelos lobos e confiná-los no ar com a gravidade enquanto que a poucos quilômetros, Seth lutava sozinho contra um homem da Guarda Volturi. Quando David parou diante da casa... Tudo o que eu tinha engendrado para que o menor número de pessoas possível se envolvesse... Se desfez feito um castelo de cartas. Fiquei frente a frente com ele com apenas duas alternativas nas mãos; descarregar todos os meus poderes em um único ímpeto, deixar o monstro assumir o controle para destruir os três à medida que o uso excessivo dos dons nos destruía no processo, ou meramente dizer adeus àqueles que, para proteger, eu sacrificaria tudo o que havia de mais precioso para mim e ceder a David o pedido que me fizera na primeira vez que pisou em Forks. Partir. Para sempre.

Houve um momento em que a opção de atacar foi, sem sombra de dúvidas, a mais tentadora; senti o monstro sorrir na expectativa da batalha. Mas eu já estava além dos limites. Já não tinha tanto pulso para manter o campo gravitacional sobre os que estavam enclausurados no estacionamento – já havia até deixado escapar o isolamento acústico, dado os gritos de Edward que ecoavam porta afora – e quando voltei a telecinese para cima de David, Jane e Alec, acabei ferindo também os lobisomens. Que catástrofes eu teria causado se tivesse soltado tudo?

Abri os olhos e ofeguei baixinho quando fui apunhalada pela lembrança do uivo de Seth. A angústia, todo o sentimento de tortura contidos naquele uivo me atormentariam até o último dos meus dias. Era justo que eu pagasse pelo que fiz, que eu sofresse por ter sido precisamente a criatura manipuladora que ele me acusara de ser, mas que justiça havia na sua dor? E, céus, Seth estava sofrendo. Podia sentir sua dor na flor da pele. Larguei meu coração com ele naquele adeus, porém como consequência arranquei o seu para trazer comigo.

Fiquei frustrada quando levei o copo aos lábios e estava seco. Praguejei entredentes; nem ao álcool para afogar as mágoas eu teria direito. Aproveitando que o piloto suspeito estava ocupado, levitei a caixa de charutos para o banco ao lado, ávida por fumar um atrás do outro. Pouco me importava se ia intoxicar todo o ar no interior do avião com fumaça. Algumas horas e charutos mais tarde, quando eu procurava – sem sucesso – apagar com um cochilo, alguém se movimentou suavemente para ocupar o banco vazio, os dedos batucando na superfície de madeira da caixa que ficou pela metade. Apesar de eu sentir seu cheiro, antes de abrir os olhos, torci para que fosse Jane ou Alec.

Não tinha emoção alguma nos olhos de David quando os encontrei, da forma que era apropriado a um membro fidedigno da Guarda. Presumi que ver a cor vermelho-vinho deles tão de perto me traria calafrios – em particular quando eu fui testemunha da matança de meninas que trouxeram esse tom –, mas reparando o quão bem David se encaixava naquele papel, percebi que não tinha motivos para sentir aversão. Aquela era a verdadeira natureza de David. Esperar pelos olhos dourados era o que seria errado ali.

Ele franziu o cenho quando viu a indiferença assumir minhas feições – a fachada que construiu com cuidado se rompeu, desvelando o nervosismo que ele se empenhara em abafar. Com uma surpresa desagradável, constatei que David estava ainda menos preparado do que eu para aquela conversa, mas que não existia nada no mundo que poderia fazê-lo desistir de tê-la.

— Por que leiloou todas as joias que lhe dei de presente? – jogou de um único golpe, quase em um rosnado exasperado.

Sufocando um suspiro, tirei a caixa das mãos dele e acendi outro charuto devagar, consciente de eu iria me irritar mais. No decorrer das décadas que vivemos como irmãos, David me regalou com as mais caras joias que sua fortuna poderia comprar, que iam de brincos e pulseiras imensas, anéis de raras pedras preciosas, até diademas próprios às pessoas da realeza. Quando retornei a Forks após a nossa primeira briga, fiquei confusa sobre o que fazer com a coleção, portanto ela acabou esquecida e menosprezada nos fundos do closet na casa Cullen. Mas depois do episódio em que David quebrou os ossos de Seth e ainda teve a audácia de plantar ideias venenosas na cabeça dele, a simples ação de olhar para elas me deixava possessa. Por isso que, na primeira oportunidade, eu as encaixotei e as enviei para um leilão de caridade, convertendo a quantia recebida em uma doação anônima para os fundos de apoio às crianças com câncer do Condado de Clallam. Seth certamente teria aprovado a iniciativa – isto, é claro, partindo do princípio de que eu tivesse tido coragem de contar a ele dos presentes.

— Eu não queria nada que viesse de você por perto. – Soprei uma nuvem de fumaça. – Continuo não querendo.

— Mas vai aceitá-las – grunhiu, revoltado. Na sua perspectiva demente, era humilhante que eu estivesse desprezando a única dianteira que ele poderia cantar sobre Seth: o dinheiro. – Fui eu o comprador desse leilão ridículo. Estão todas em Volterra, esperando por você.

Recriminei-me em segredo pela pontada de decepção que me alfinetou. Estupidamente, eu alimentara esperanças de que ele decidiria me levar para Bergen e não para aquele ninho de víboras imortais na Itália. Não deixei margens para que David percebesse o pesar, entretanto; se eu já iria morrer de qualquer jeito, que pelo menos fosse com o orgulho incólume.

— Ah, então você ainda me quer, mesmo que eu não seja mais pura? – zombei, distorcendo a última palavra. Se existia uma arma que eu podia usar até no meu leito de morte, era o sarcasmo.

— Eu sempre vou amar você, Anne. – Sua postura ficou mais reta e as linhas do rosto, inflexíveis. – Mesmo que você não se dê ao próprio respeito.

Foi a brecha que serviu para que o monstro encontrasse sua escapatória. Eu não desmaiei como na campina; permaneci com os sentidos intactos ao que sentia a presença dela vindo aos meus olhos, reclamando para si os arreios de meu corpo. Por mais que se valer em excesso dos poderes nos deteriorasse mais rapidamente, o monstro não deu a mínima; expandiu seu domínio sobre cada engrenagem do jato e de súbito estávamos despencando a uma velocidade absurda, as luzes piscando acima de nossas cabeças para em seguida explodir em uma chuva de faíscas. O charuto aceso entre meus dedos – assim como a caixa em meu colo – se desintegrou em um punhado de poeira, as mãos se agarrando ao estofado da poltrona enquanto a pressão nos empurrava para trás.

Não me chame de Anne— sibilou ela por cima dos gritos do piloto saindo da cabine de comando. Nos bancos às nossas costas, eu podia captar a apreensão muda de Alec e Jane, que se compeliam a não demonstrar pânico. Naqueles instantes, desejei entregar os pontos; facilitar para o monstro terminar logo o serviço. Mas havia a vida de um civil na jogada. Muito embora o humano não possuísse a melhor das índoles, o cara não sabia no que estava metido; apesar de ter distinguido os detalhes anormais, como a pele cadavérica e os olhos vermelhos, ele não fazia ideia do que éramos e parecia errado que levasse a pior em nosso fogo-cruzado.

Aprumei os ombros ao recuperar o equilíbrio, estabilizando aos poucos a aeronave. David me encarou bestificado quando tudo voltou aos conformes e eu podia apostar que suas bochechas estavam mais brancas do que de costume. Ele havia notado que eu estava instável – só não tinha pressuposto ainda o tanto. 

— Não ouse voltar a repetir esse nome – ameacei, agora em posse de minha própria voz. – Você perdeu completamente esse direito. E pela milésima vez, você não me ama. Colocou na sua estúpida cabeça doente que essa fixação que tem por mim é amor e usa isso para justificar atrocidades que são injustificáveis, como ter se associado aos assassinos de nosso pai, por exemplo. E, por último, dormir com o homem que eu amo não é um desrespeito à minha integridade. Você não está em posição de julgar isso, assim como mais ninguém está, porque nossa intimidade é algo que diz respeito somente a Seth e a mim. – Recuei, com medo de estar com o nariz sangrando e acabar revelando que, além de descontrolada, eu estava também martelando os pregos do meu caixão. A regra era clara: quanto mais eu usasse dos poderes, mais próxima eu estaria do fim. – Agora, se não for exigir muito da sua pessoa, caia fora daqui e me deixe em paz. Esse seu cheiro de traidor misturado com tabaco está me dando náuseas.

O desgraçado não se moveu um centímetro que fosse.  

— Você o ama tanto assim? – sussurrou com um desprendimento nitidamente fingido, que logo de início me provocou o instinto de esbofeteá-lo. Era um desaforo sem tamanho ele vir se metendo na minha vida e ainda querer que eu engolisse seu interrogatório na casualidade. Mas então percebi que a agressão física ou mesmo meu silêncio não seriam tão efetivos para magoá-lo; não da forma como eu tinha certeza de que a verdade o torturaria.

— Como nunca havia amado antes – declarei, transmitindo todas as nuances profundas de minhas emoções para garantir a ênfase. – Como nunca poderei amar outro.

David estremeceu e foi incapaz de sustentar o meu olhar.

— E é por essa razão que se ofereceu para vir embora comigo – concluiu sozinho, assentindo de leve com a cabeça. – Tem medo de machucá-lo. De machucar todos eles.

— Sim – admiti a contragosto, aborrecida por ele continuar insistindo em ligar os pontos. – É muito mais fácil arriscar o pescoço de vocês, Volturi.

Ele não gostou de ser referido como um Volturi; não do modo como saiu da minha boca, mas ele não deu indicativos de que pretendia objetar. Seus pensamentos se enveredaram por outro rumo, para um passado longínquo enfeitado com sorrisos doces e gestos delicados, especificamente para o dia em que me perguntou com todas as letras se existia uma chance, mesmo que ínfima, de no futuro eu vir a amá-lo mais que a um irmão. Minha resposta na época, bastante polida e pragmática, se replicou com igual rigor na sua memória; David havia percebido que meu coração não portava espaço para tal sentimento, mas não compreendeu – ou talvez não quis compreender – que o motivo disso era porque já estava ocupado.

— Nunca me disse que havia se apaixonado antes – alegou, a voz sobreposta por um ressentimento pesaroso, quase me culpando por ele ser teimoso e não saber lidar com um não.

Restringi-me a uma risadinha sem humor.

— É bem irônico, não acha? Vivemos lado a lado por décadas e só viemos a conhecer um ao outro na prática quando ficamos separados. Talvez a única coisa autêntica em nosso mundinho de cristal tenha sido Joseph. – Parei de debochar quando notei que ele aguardava por uma explicação. Inspirei fundo; não tinha esclarecido antes, mas apesar das circunstâncias, parecia justo para nós dois que eu me esclarecesse agora. – É, eu me apaixonei antes de Seth. Quando humana, tinha minha família. Meu pai, minha mãe... Meu irmão, que durante muito tempo acreditei que estivesse morto também... E tinha um noivo, Hans. Ele se foi e eu fiquei, mas o sentimento permaneceu vivo em meu coração. Por isso jamais consegui abri-lo para você, caso esteja curioso.  

— Mas você o abriu para ele— acusou com os músculos do pescoço tensionados.

— Não, eu não abri. Eu lutei contra isso, com todas as minhas forças. Mas foi inevitável. – Abri um sorriso involuntário, tão apaixonado quanto triste. – Seth estava apenas reivindicando um lugar que já era dele. Neste caso, eu não escolhi, eu fui escolhida. Foi... – Dei de ombros. – Como uma versão contrária de Romeu e Julieta. Eu tinha minha Rosalina, o amor inalcançável, mas um único olhar jogou tudo o que eu julgava sentir por terra. De uma hora para outra, era como se estivesse colocando a chama de uma tocha para competir com o calor e a luz do Sol. Não havia muito o que eu pudesse fazer senão me entregar.

David bufou.

— Você detesta não ter poder de escolha.

— Deve imaginar então como me sinto por estar aqui. – Para Seth, eu havia feito parecer que eu estava fazendo uma escolha, assim ele não viria atrás de mim, mas quando eu parava para analisar, em meu âmago, eu percebia que não tinha outra alternativa senão partir. Como poderia impor a ele e aos outros a minha presença quando era eu quem os colocava em perigo?

Muito deliberadamente, David ficou de pé e parou defronte a mim, de modo que não houvesse abertura para subterfúgios. O olhar com que me fitou foi de uma transparência ímpar, o que eu fiz questão de devolver em idêntica medida.

— O que você sentia por mim? – indagou, as mãos inquietas nos bolsos do terno preto. – De verdade?

Não precisei pensar para responder, apesar da pergunta ser bem mais significativa do que ele deixara explícito. Por debaixo dos panos, David podia até estar me questionando se em algum momento ele ficou próximo de ter sucesso, se houve algum instante em que ele quase me ganhou ou o que faltou ter feito para ganhar, mas a minha verdade era uma só e seria dela que eu me muniria. A verdade, pura e simples, seria minha melhor política. Minha maior defesa.

— Antes, você era meu porto-seguro – confessei, sem tremer ou gaguejar. – A âncora que me trouxe de volta um pouco de estabilidade. Eu ainda me lembro do que sentia quando vocês me encontraram em Moscou. Meus sonhos tinham sido virados do avesso... Feito castigo. A família que eu queria deixar por amor à dança, estava morta. O noivo que de início rejeitei, também. Até a música e a dança, que eram tudo eu o que conhecia e respirava desde pequena, eu não poderia me dedicar demais porque chamaria a atenção dos humanos, porque se me tornasse famosa, acabaria me expondo. Não havia me restado nada. Nada mesmo, nem perspectiva de futuro. Então vocês apareceram. Eu senti... – engoli a saliva com dificuldade – ...como se a vida estivesse tentando me compensar por tudo o que foi arrancado. Eventualmente, Joseph se tornou o melhor pai que eu poderia querer, me oferecendo todo o carinho e a proteção que meu pai biológico não teve oportunidade de dar. Vi em você, além de um irmão, o meu melhor amigo. Edward sempre foi um irmão exemplar, mas jamais me compreendeu de verdade. E como poderia? Ele nunca soube o que era ser a criança renegada. Mas eu e você...? Ajudávamos um ao outro. Nós nos compreendíamos, e quando não conseguíamos, ao menos tentávamos compreender. – Ri de escárnio. Era isso ou chorar. – Digo isso de minha parte, porque descobri do pior jeito que o ser que eu colocava em um pedestal nunca existiu... Ou, se existiu, morreu no dia em que perdemos Joseph. Não que isso importe, o que eu sinto ou deixo de sentir não faz diferença alguma para você. Se fizesse, não teríamos chegado nesse ponto.

Seus olhos piscaram repetidas vezes, como se ardessem. Eu conhecia aquela sensação como sabia o meu próprio nome. Era assim que um vampiro chorava.

— Anna, eu... – David balbuciou, dando um passo na minha direção, no entanto eu me desvencilhei dele como teria feito com algo tóxico.

— Encoste em mim e você perde as mãos – vociferei.

Ele não recuou:

— E o que ficou? – insistiu. – O que sente por mim agora?

— Nada – redargui de supetão, mas à medida em que falava, percebi que não mentia; minha raiva pertencia à situação e a mim mesma por ter me metido nela. – Queria poder dizer que sinto ódio, repulsa, desapontamento... Até mesmo saudade do que eu pensei que tinha... Mas, na realidade, não sinto nada. Absolutamente nada. É como se você nunca tivesse existido no meu coração. – Ergui o queixo para que ele visse o fundo dos meus olhos e não duvidasse. – Eu sepultei você no meu passado, David. E é lá que você vai ficar.

Sua boca abriu por reflexo, vazia quando as palavras faltaram e se afogaram na garganta. Ele mal teve tempo de recuperá-las; o piloto anunciou pelo alto-falante o pouso em uma pista de aviação particular e em poucos minutos, havíamos aterrissado e estacionado sob um enorme galpão coberto no meio de uma área florestal.

Ao longe, Volterra se destacava no alto de um monte com os muros dourados pelo Sol da tarde.


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Notas finais do capítulo

Quais são as apostas para o encontro com os Volturi, meus caros?



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