Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 31
Perda




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Diante das recentes experiências envolvendo ilusões e truques da mente, não era de se admirar que eu duvidasse do que meus olhos estavam vendo. Cocei-os, secando a umidade das lágrimas com as costas das mãos e quando enxerguei livremente, fiquei estupefato por constatar que ela ainda estava ali, de pé em meio a neblina que tomava aquela área da rodovia.

Parecia a minha irmã... e ao mesmo tempo não parecia. A expressão mal-humorada e os olhos críticos eram familiares, mas eram pormenores esquecidos no rosto bem maquiado e emoldurado por um corte moderno e bagunçado, com mechas suaves nas pontas. Franzi o cenho, analisando-a da cabeça aos pés. Leah não frequentava cabeleireiros... e muito menos se vestia feito uma cosmopolita. Aquelas botas altas e o vestido listrado pareciam ter acabado de sair de uma revista de moda e eu estava torcendo para aquele colete de pele cinza ser sintético.

Ela deve ter lido meus pensamentos na minha testa – como em geral fazia –, porque seu nariz retorceu com azedume e ela fez o que somente a minha verdadeira irmã poderia ter feito: puxou o braço para trás e me acertou um potente soco na cara.

Recuei, por pouco não caindo contra o asfalto e toquei o maxilar. É, com certeza era a Leah. Ninguém a não ser ela teria um jeito tão meigo de fazer um cumprimento.      

— Oi para você também – resmunguei com sarcasmo.

— O que está fazendo aí, seu idiota? – rosnou com as mãos plantadas na cintura, rabugenta igualzinha à nossa mãe. – Jogado na beira do acostamento que nem um saco de lixo? – Ela retesou os ombros quando fiquei quieto e entrecerrou o olhar com desconfiança, finalmente se dando conta das minhas lágrimas. – O que houve?

De dentro do carro, pela porta do motorista, saiu um homem de fisionomia preocupada. Ele era alto, bronzeado, ligeiramente musculoso e o cabelo era uma nuvem farta de cachos que iam do castanho-escuro ao caramelo. O que mais me chamou a atenção foram seus olhos azul-celeste – a cor era intensa, carregada e por um momento me lembrou de um husky siberiano. Deduzi que o cara deveria ter interpretado errado a tensão que retumbava entre Leah e eu, porque pelo modo protetor e possessivo com que a cercou deixou claro que ele avançaria em mim ao primeiro movimento em falso.

— Leah? – chamou com um sotaque característico, a voz arrastada. – Tudo certo?

Ignorei a ameaça implícita no tom dele.

— Trouxe o espanhol com você? – questionei-a e automaticamente seus olhos se inflamaram em chamas perigosas. Levantei as mãos em rendição ao que ela cruzava os braços. – Está bem, está bem, não é da minha conta! – Suspirei e ergui o queixo para o alto da montanha, onde um mínimo rastro de fumaça se desprendia do meio das árvores. Não fazia muito tempo em que eu abandonara a reunião, mas não havia muitas pautas a serem discutidas além de Anna, portanto deviam estar encerrando. – Vou avisar aos outros da sua chegada.

— Não precisa! – Leah me cortou imediatamente e, se eu não a conhecesse tão bem, poderia afirmar que ela estava em pânico.

— Precisa sim e estão todos aqui perto – teimei, mesmo que me sentisse intrigado. Procurei limpar meus pensamentos para que Edward escutasse meu recado com mais facilidade; era uma distância curta e eu não queria que os outros demorassem muito para nos encontrar. – Você chegou na hora exata. Vamos para a casa dos Cullen.

Sem pedir permissão e, antes que ela tivesse chance de contestar, comecei a marchar até o carro. Apertei a boca ao ver a carroceira preta e perceber que se tratava de um Bentley; ou Leah estivera torrando com gosto o dinheiro que Anna cedera a ela, o que no fundo eu duvidava, ou o tal Martín era podre de rico. Ainda mais surpreendente que isso foi me deparar com os olhos assustados de um garotinho no banco de trás, uma miniatura tão igual ao homem que se aproximava junto de Leah que não havia como negar que era seu filho.

Leah fingiu não ver o meu choque passando direto por mim e se sentando no banco traseiro ao lado do menino, que não devia ter mais do que seis ou sete anos. Ele, por instinto, se encolheu e agarrou o braço dela com a confiança e o apego que uma criança só dedicaria a uma mãe.

Meu queixo caiu. Mas que diabos era aquilo?

Martín se acomodou no banco do motorista e ligou o Bentley, então não tive muito tempo para especular; adentrei no banco do carona e apontei a direção que ele deveria seguir à medida que um silêncio esmagador se instalava no interior do carro. Notei uma troca de olhares cúmplices entre os dois pelo retrovisor e, conforme os nós dos dedos dele se soltavam, um sorriso amigável cresceu em seu rosto.

— Seth – murmurou de repente, muito mais tranquilo enquanto coçava a barba rala. – O irmão.

Computei devagar o alívio com que ele disse meu nome.

— Sim... Quem achou que eu fosse...? – Revirei os olhos e ri alto quando compreendi. – Sam. Relaxe, vai conhecê-lo daqui a pouco.

Leah me acertou um tapa na nuca.

— Você ainda não me disse o que aconteceu, seu tapado.

Meu sorriso morreu.

— Não. – Encarei a noite, lutando para manter o controle e não desmoronar outra vez. – Não disse. – E nem diria, pelo que dependesse de mim. Não me importava com o que eles achariam, até porque depois que chegássemos aos Cullen, meus irmãos se encarregariam do trabalho de colocá-los a par de tudo.

Endireitei-me no banco ao assimilar as circunstâncias como um todo e descobrir um detalhe que eu deixara passar em branco. Haviam civis naquele carro. Não havia como expor a condição de Anna para eles sem comprometer os segredos da tribo e, por tabela, dos Cullen. Olhei para Leah sobre o ombro, me perguntando se ela também chegara a essa conclusão, entretanto ela estava completamente sossegada, e eu não demorei a entender que o porquê da calma... era que Martín já sabia sobre nós.

— Ai, caramba! – exclamei e, com o susto, Martín ziguezagueou com o carro pelas duas pistas até parar bruscamente no acostamento contrário a centímetros de bater em uma árvore. – Você contou para ele?!

Agarrada feito uma armadura ao garotinho, ela pelo menos teve a decência de corar, apesar de me fuzilar com os olhos. Não foi necessário explicar a que eu estava me referindo – ela viu a urgência na minha expressão.

— Acredite, eu não precisei. Martín descobriu sozinho.

Olhei para o homem defronte a mim – mas desta vez olhei mesmo, totalmente focado. Martín me devolveu o olhar com uma pontada de ironia e foi no exato instante em que um discreto lampejo prateado cruzou o azul-celeste de seus olhos que eu percebi um outro detalhe: o cheiro dele e do garoto. Minhas narinas se inflaram, tragando o ar quente de dentro do carro para confirmar novamente.

O cheiro deles era tão humano quanto o meu.

Foi a similaridade que me impediu de reparar nisso antes. Tinha a mesma natureza animal, o mesmo aspecto lupino que delatava a nossa origem – de fato, a única diferença que pude estabelecer entre o cheiro deles e dos lobos de nossa tribo era que o deles era mais ácido, deixava uma leve ardência e uma sensação incomum no nariz ao inalar.

Sacudi a cabeça para me livrar de um calafrio e me recostei mais no estofado do Bentley, desejando que aquele passeio acabasse logo. Martín se limitou a rir baixinho ao dar a partida, atendendo à minha orientação de virar a última rua, e quando a silhueta da mansão devastada despontou entre as árvores, Leah se inclinou pelo espaço no meio os bancos e deixou escapar um som de engasgo.

— Quando falou que estavam todos por perto, não pensei que tivesse sido tão literal – sibilou entredentes.

Dei de ombros.

— Tivemos uma reunião do Conselho.

Fora das terras de La Push? – ela se sobressaltou, se virando para mim.

Não respondi. Realmente, todos que estiveram na montanha desceram até a mansão – inclusive minha mãe, o Velho Quil e Billy Black, apesar de eu ainda não fazer ideia de como fizeram para levar a cadeira de rodas até a campina naquela área pedregosa e depois até ali. Antes mesmo de sairmos do veículo, Sue estava fungando para disfarçar as lágrimas de emoção, mas assim como todos deu um passo para trás de espanto no que Martín e o menininho tomaram lugar nos flancos de Leah, que se dividiu entre ficar rubra e abrir um sorriso amarelo.

— Olá, pessoal. – Sua mão fez um aceno rígido. – Que lindo comitê de boas-vindas. – Quando observou que ninguém conseguia desviar os olhos da criança grudada nas suas pernas, ela pigarreou e engoliu em seco. – Este rapazinho aqui é o Arturo, filho do Martín. Diga olá para minha família, Artie.

O garoto apenas escondeu o rosto no colete de pele dela. Comecei a ficar nervoso; minha mãe parecia que ia ter um infarto a qualquer momento. Ela já estava até se apegando ao braço da cadeira de Billy em busca de apoio caso desmaiasse.

— Fale de uma vez, droga – grunhi, impaciente.

— E este é Martín de la Vega. – Seus dedos gesticularam para a figura atrás de si na proporção em que os dedos dele se plantaram nos seus ombros, incentivando-a a continuar. – Ele é... – Uma careta contorceu sua expressão e ela suou frio. – Hã...

— O futuro marido da Leah, muito prazer – Martín completou com um único folego, exibindo um sorriso imenso e orgulhoso.

Marido?! – esganiçou meia dúzia de vozes, incluindo a de Sam.

Leah demonstrava estar tão perplexa quanto o restante de nós – aliás, o pescoço dela fez um estalo audível quando ela se voltou para Martín para fitá-lo nos olhos –, porém bastou que Sam se manifestasse para que ela se enrijecesse inteira e recobrasse o temperamento de sempre.

— O que achou, Sam? – redarguiu com um meio sorriso sardônico e a sobrancelha em arco. – Que minha escolha para homens se limitaria a você pelo resto da vida?

Embry e Quil quebraram o gelo gargalhando que nem hienas.

— Essa é a Leah que conhecemos e amamos – Quil comemorou, se aproximando para abraçá-la.

— Sentimos sua falta. – Jacob se adiantou e estendeu a mão para Martín. – Bem-vindo, cara.

E teríamos sido rodeados por abraços e votos de felicidade se os Cullen não tivessem se agrupado em posição de ataque na entrada da casa. Jasper ocultou Alice na sua retaguarda com um rosnado reverberando pela garganta até se sobressair pelos dentes expostos e Edward parou de músculos contraídos à frente de Bella, Esme e Carlisle – ambos tinham o maxilar trancado de repugnância e os olhos arregalados de receio cravados no semblante despreocupado de Martín.

— Trouxe Filhos da Lua até nosso território? – Edward indagou lentamente.

— Fica frio, amigo. Não é lua cheia. – Perfeitamente à vontade, Martín se encostou no Bentley e piscou com um deboche descarado. – Engraçado, nunca tinha visto Filhos da Noite de olhos amarelos.

Minha irmã bateu no braço dele para fazê-lo se calar.

— Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo? – cobrou, exigente.

— Eu estou morrendo – a voz alta e clara de Anna ecoou porta afora, fazendo com que a respiração de todos inconscientemente se prendesse. – É isso o que está acontecendo e não querem dizer a você.

Sem se deter, Leah disparou para o interior da casa com Martín e Arturo em seu encalço; os vampiros abriram caminho como se Moisés estivesse passando entre eles com o cajado em riste para lançar a próxima praga. Fui atrás apenas para me esbarrando nas costas de Leah, parada em completo estado de choque diante da maca de Anna. Não que eu esperasse uma reação diferente, a despeito de Anna estar melhor do que nos últimos três dias – ela estava praticamente sentada, escorada em um amontoado de travesseiros e sorria abertamente, embora uma gota de sangue pendesse do nariz sem que ela percebesse. Teresa estendeu um lenço de papel para que ela limpasse o sangue e em seguida me cedeu a cadeira ao seu lado, onde me assentei antes de entrelaçar minha mão na sua.

— Meu Deus – Leah sussurrou –, você está horrível.

Amaldiçoei-a por dentro. Em contrapartida, Anna soltou uma gargalhada sonora.

— Vá se ferrar, Leah.

— Eu amo você também, Anna – rebateu em tom de brincadeira, mesmo parecendo estarrecida. Ela se aproximou mais, estacando junto aos pés do leito e então focou em Teresa. – E quem seria... essa?

— Tery McAllister. A melhor amiga da Anna. – A garota jogou o cabelo sobre o ombro e ainda teve a audácia de erguer a mão para um cumprimento, bastante desaforada.

A mão de Leah permaneceu no lugar.

Ah, é mesmo? – Os olhos escuros se comprimiram em fendas.

Anna forçou uma tossida.

— E vocês devem ser os famosos Martín e Arturo. Sejam muito bem-vindos a Forks. Martín, preciso confessar que você é bem mais bonito ao vivo e a cores. Sorte eu poder vê-lo pelas visões, porque se dependesse das descrições de Leah nas cartas para ter um panorama geral... – ela desistiu do tagarelar incessável ao ver que não estava surtindo efeito algum, porque as duas continuavam se estranhando. – Por falar nisso, Leah, está com elas? As minhas cartas? – Mantendo os olhos fixos, minha irmã tirou um pacote pardo do bolso interno do colete e o entregou a Anna, que deu um suspiro após abraçá-lo. – Esme? – chamou e prontamente a mãe apareceu na sala de visitas. – Poderia guardá-las na minha caixa de lembranças, por gentileza? – A vampira sumiu no corredor e Anna praguejou uma dúzia de obscenidades. – Ah, vocês duas, já podem parar com essa infantilidade, não é? Gente, pelo amor de Deus, eu estou morrendo aqui!

Leah revirou os olhos e soltou o ar pela boca.

— O que há de errado, Anna? – interpelou, indo diretamente ao assunto.

— Nada do que eu já não devesse ter antecipado. Meus poderes se viraram contra mim. Ah, eles podem dar mais detalhes depois, se quiser. – Deu de ombros e fez um gesto de desprezo para a porta de saída. – Estavam enfurnados na floresta fofocando sobre isso agora a pouco.

— Você parece um tanto melhor – comentei, tentando desconversar ao mesmo tempo em que ouvia meus irmãos do lado de fora de debandando rapidamente, fosse de carro ou apelando para a transformação. Eu tinha plena consciência de que estavam fugindo de Anna, com medo de atiçarem um novo espasmo de fúria, e uma parte de mim se afundava em culpa por acabar concordando com eles. Fechei os olhos por um segundo, rezando para que ela não estivesse sintonizada aos meus pensamentos.

— Eu me sinto melhor, na verdade. Talvez tenha sido a comida. Se bem que continuo faminta. – Anna fez uma careta ressentida para a travessa de frutas que Carlisle a estava obrigando a ingerir e mordeu o lábio.

Senti uma pontada de esperança brotar no meu peito. Ela já estava voltando ao normal.

— Quer comer algo em particular? – ofereci, ansioso para ajudá-la de algum modo.

— Bem, já que perguntou... – Seu rosto ficou iluminado. – De repente estou com uma vontade absurda de comer o peixe frito do bar do píer. – Ela cutucou Leah com a ponta do pé.  – Lembra? Aquele que comemos na noite do pôquer?

Leah fez a maior expressão de estranhamento que já vi na vida.

— Tem certeza de que esse seu mal-estar não é somente uma gravidez não planejada? – atirou de supetão e eu engasguei com a minha própria saliva.

Anna replicou com um sorriso cheio de dentes.

— Querida, a grávida aqui não sou eu. – E girou de volta a cabeça para mim, absolutamente despretensiosa enquanto Leah e Martín ficavam mais brancos que os vampiros. – Consegue ir me buscar esse peixe em La Push? Realmente não sei o que eles usam no tempero.

Reprimi um riso dobrando os lábios.

— Podemos pedir para o Quil ou o Embry trazer... – Teresa sugeriu, mas Anna negou instantaneamente.

— Não quero incomodá-los com isso, mesmo sabendo que eles não vão se importar. – Ela enrubesceu, me fitando pela visão periférica, e eu bati com a mão na testa. Sim, ela estava lendo meus pensamentos. – Além do mais, Seth, faz três dias que você não move dessa cadeira. Eu me sentiria menos pior se você fosse para casa tomar um banho, descansasse um pouco e se alimentasse. A última coisa que quero é que você adoeça comigo.

Bufei. Não era como se eu já não tivesse feito vigias.

— Não preciso descansar, eu estou ótimo, meu amor. E comer, posso fazer isso aqui. – Suas feições tomaram contornos de reprovação e eu suspirei, derrotado. Talvez ela estivesse certa, eu devia estar fedendo. – Vou para casa tomar um banho e retorno daqui uma hora com o seu peixe. Só vou conseguir dormir aqui do seu lado, me certificando que você está bem. – Volvi-me para o casal de estátuas vivas. – Vamos juntos, futuros pais? Imagino que queiram se acomodar e desfazer as malas.

Leah teria me xingado se Anna não tivesse interferido.

— Vão indo na frente, Leah – pediu ela, soprando um beijo para Arturo com uma frase rápida e calorosa em espanhol. – Quero falar a sós com Seth, se não se importam.

Antes de se retirar, Leah relutou brevemente e me lançou um olhar de advertência que eu não consegui decodificar. Teresa foi logo depois deles, e quando enfim ficamos sozinhos, Anna me encarou com uma seriedade ímpar, uma intensidade que normalmente precedia conversas complicadas. Por alguma razão desconhecida, senti um tremor de pânico me subir das pernas até a nuca.

— Não gosto desse olhar – confessei baixinho, acariciando sua bochecha.

— Tem... – Anna hesitou. – Tem tantas coisas que eu gostaria de lhe dizer agora, Seth. Mas vou me resumir a apenas uma. – Com uma pausa calculada, ela puxou o ar profundamente. – Tery contou que eu quase morri. Sei que não quer ouvir isso de mim, mas concordo com ela, esse foi um quase muito quase. Quando minha consciência se afastou do corpo, eu vi meu pai. Vi minhas amigas, Gwendolyn e Catharina me chamando e vi Hans. – No ato, meu coração se apertou até parar e de súbito meus pulmões desapareceram; tentei respirar, mas era impossível.  Ela pacientemente esperou que eu me recuperasse para prosseguir, mas talvez nem todo tempo do mundo serviria. – Eles me chamavam, tentavam me puxar para que eu fosse com eles, mas em momento algum me senti tentada a ir, porque você não estava comigo. – Com os olhos brilhantes de emoção feito duas esmeraldas líquidas, Anna prendeu minha mão no seu rosto e em seguida beijou cada um dos meus dedos. – Seria por você que eu morreria, Seth Clearwater. Um milhão de vezes, se necessário. Por você, eu mataria. E, por você, eu me sacrificaria todos os dias da minha vida, sem pensar duas vezes, sem me arrepender um só minuto dessa escolha.

— Por que está me dizendo isso? – forcei-me a interrogar.

— Porque não quero que duvide dos meus sentimentos quando eu partir – respondeu com tamanha determinação que nem sequer piscou. – Não quero que questione o meu amor incondicional quando me perder.

O tremor virou um princípio de síncope que eu batalhei para abafar.

— Você está me assustando, Anna. Eu não vou perder você. Jamais. – Beijei-a na testa, procurando acalmá-la. Não ia favorecer em nada na sua recuperação ela acreditar que morreria. – Vou tentar ser rápido, a fome está lhe deixando dramática.

Seus dedos demoraram para me largar e ela me assistiu sair da sala com uma expressão atípica, uma expressão sem nome específico que inexplicavelmente não abandonou a minha cabeça e me acompanhou até quando adentrei no Bentley pela porta de trás. À essa altura, todos os membros do Conselho e das matilhas tinham ido embora, tendo restado somente a minha mãe, que se plantara feito um coqueiro na lateral do carro e fizera questão de ir conosco. Estanhei Sue ter aguardado por nós ali sozinha – os Cullen não eram de deixar uma visita sem a presença de um anfitrião –, mas decidi não perguntar nada; ela estava com uma cara de brava, apenas esperando por uma brecha para soltar os cachorros na primeira vítima desavisada.

Eu estava torcendo para que fosse Leah.

— Ela está esquisita – avaliou quando nos encontrávamos a meio trajeto de La Push. Nisso, eu já tinha narrado para ela todas as particularidades da situação, desde a tarde do surto de Anna até a reunião de algumas horas antes.

Bati palmas demoradas.

— Ora, obrigado, capitã Obviedade. Agora já pode dizer algo que seja menos evidente.

— Você não entendeu, seu tapado – relinchou, não dando corda para o meu sarcasmo. – O que quero dizer é que tem algo mais. Alguma coisa que não está encaixando nessa história.

Através do vidro, corri com os olhos pela floresta mergulhada em um mar de neblina. Não devia ser mais do que dez ou onze horas, e sendo uma sexta-feira, as atividades no bar de Stu Bennett deveriam estar apenas começando. Seria tranquilo arranjar o peixe frito que Anna queria – para tanto, eu só teria que passar pelo desprazer de ter que interagir com o dono daquela espelunca.

— Quanto antes formos, o mais depressa eu vou poder voltar para desvendar o que é – refleti à meia-voz, ainda examinando a paisagem noturna que não tinha nuvens para estragá-la. O céu salpicado de estrelas se estendia com liberdade até o horizonte, enfeitado por uma lua oval no início de seu estágio minguante. Disfarçadamente, pelo canto do olho, examinei com curiosidade o perfil de Martín, imperturbável em seu posto de motorista enquanto segurava os dedos da minha irmã com a mão livre. Como deveriam ser os tais Filhos da Lua em seu auge?

— E qual é a da garota de cabelo azul? – cismou. – É parente daquela velha McAllister, não é? A bruxa maluca do penhasco.

Estremeci com a memória remota de uma senhora encarquilhada fazendo fogueiras nos penhascos de La Push, rodeada de corvos, abutres, e dependendo do caso, também urubus. Teresa poderia ser desmiolada e horripilante às vezes, mas não representava uma fração do que sua avó fora em vida. Minha mãe, ao que tudo indicava, compartilhava da mesma opinião, porque fez um gesto antigo de família usado para afastar assombrações.

— Neta da Cassandra. E herdou os mesmos poderes, é uma longa história... – Sue se conteve e massageou a nuca de cansaço quando lembrou do tanto de informações que teria para dividir com Leah. – Tenho pena da menina, a diretora Woods contou que tem uma relação difícil com os pais e uma longa lista de internatos no histórico. Basta saber que é inofensiva, só... Deixa qualquer pessoa perto dela desconfortável.

— Eu não me sinto desconfortável, o que eu sinto é vontade de bater a cabeça dela no chão até ela morrer. – Leah ergueu os ombros em sinal de inocência ao ver a censura no olhar atravessado de Martín. – O que foi? – Então bufou. – Rá, até parece que Arturo já não me viu fazendo coisa pior.

— Não quero que Artie tenha esse tipo de exemplo. E você também não deveria querer – recriminou, e surpreendentemente ela ficou quieta.

Minha mãe e eu nos curvamos para frente em um movimento involuntário, tentando enxergar seu rosto pela fresta entre os assentos. Nunca antes tínhamos testemunhado Leah ficar calada perante uma repreensão, nem mesmo quando Harry, nosso pai, estava vivo. Assobiei baixinho em decrescente, inteiramente pasmo e Sue corrigiu a postura enquanto se esforçava para reter os olhos arregalados. De uma hora para outra, ela parecia absurdamente consciente dos fatos ao seu redor – do carro caro; das roupas finas que Arturo e Martín vestiam, apesar da simplicidade; a própria criança em si que, embora não tivesse qualquer parentesco de sangue com a nossa família, se tornaria seu neto se efetivamente houvesse um casamento.

Por algum fundamento inconcebível, foi para mim que ela se virou toda esbaforida:

— Filho, por que será que tenho a impressão de que você não está nada surpreso com... – ela apontou o indicador para os três, impaciente – ...isso? – Fiquei sem voz no que me dei conta de que ela havia encontrado a brecha que precisava. Maldição, a vítima desavisada seria eu. Sue aproveitou que estava do meu lado para agarrar a minha orelha em um aperto de ferro. – Quando pretendia me contar?!

Ei, o noivo é da Leah, não meu! – protestei, me encolhendo para me livrar do puxão. Não fazia diferença que eu fosse lobisomem, forte e resistente e tudo o mais, aquela droga ainda doía. – Era ela quem tinha que contar!

Arturo tapou uma risadinha com a mão e Leah sorriu para ele, mas estreitou os olhos para Martín.

— Eu nem sabia que estava noiva.

— Você nem sabia que estava grávida— retorqui, emburrado.

Grávida?! – guinchou Sue.

— Cale a boca, Seth! – Ela vergou o corpo para tentar me beliscar, espumando de ódio. – Eu não estou grávida!

Desatei a rir com um amplo sorriso maldoso, sentindo-me vingado.

— Não foi o que a Anna falou.

— Anna falou várias coisas – cuspiu, mas de modo repentino arqueou a coluna como se tivesse sido eletrocutada. Seus olhos perderam o foco, apurando-se aos poucos em suspeita e quando enfim se levantaram, espalharam de uma só vez o horror por suas feições agora pálidas. – Seth, existe algum motivo para ela querer você longe da casa dos Cullen agora? – sondou em uma única lufada de ar.

Congelei no lugar.

— Não. – Meus músculos formigaram. – Por que está perguntando isso?

— Porque Anna odeia esse peixe frito do Stu Bennett. Na noite em que fomos ao bar, ela jogou o prato pela janela depois da primeira dentada e disse que iria preferir comer uma carcaça de cervo a voltar a chegar perto desse peixe frito de novo. A não ser que ela esteja mentindo sobre uma gravidez... – Leah se retraiu ao notar que Sue estava a ponto de ter um ataque apoplético. – Bom, hipoteticamente supondo que vocês dois tenham essa capacidade... – tentou consertar rapidamente. – Ela quer manter você afastado de lá. A questão é... Por quê?

A resposta chegou de forma abrupta e fatal, precisamente como a silhueta do homem que surgiu na rota do Bentley no meio da estrada às portas da reserva. Aquela expressão de Anna que me marcara intimamente não era de uma pessoa abalada pela perspectiva da morte.

Era uma despedida.  

Martín jogou o volante para a direita na tentativa de evitar a colisão frontal e os pneus do carro rangeram no asfalto antes de invadirem uma ribanceira em uma velocidade frenética. Por impulso, lancei meu corpo sobre Sue e Arturo para protegê-los quando o veículo sacolejou e começou a capotar; apertei-os contra mim para absorver todo o impacto da batida, sentindo a dor se alastrar pelo meu corpo quando atingimos o tronco da árvore que bloqueou a nossa queda pela ribanceira. Mal tive tempo de recuperar o oxigênio para meus pulmões doloridos, porém – o teto do Bentley foi brutalmente arrancado e eu fui atirado de costas sobre a terra com algo pressionando o meu peito nu.

Na noite, inesperadamente, ele se fez visível. Chocantes olhos vermelhos me fitavam de cima, o pé enterrado nos meus músculos. Era esquálido na luz branca da Lua e quando se recurvou para inspirar meu cheiro, uma mecha de cabelo castanho caiu sobre a testa.

— Um híbrido de lobo impregnado com o perfume doce de uma meia-vampira – ponderou, como se estivesse fazendo um inventário. 

Meu corpo se dilacerou, a forma animal vindo à tona ao mesmo tempo em que escutei o alarme – um uivo prolongado, agudo e tão urgente que não tinha como se tratar de um erro. Um arrepio se esticou até a minha cauda quando a injunção do alfa passou sem efeito sobre mim; reprimi o ímpeto de sair correndo em direção à Forks e, pela segurança da minha família, concentrei meus pensamentos na presente batalha.

Arreganhei as presas para o vampiro, preparando uma investida.

— O cão amarelo... – Ele sorriu em reconhecimento. – Sem dúvida é você.

Dei um salto mirando em seu pescoço, entretanto a um milésimo de segundo de eu encostar nele, o vampiro desapareceu no ar sem deixar vestígios. Minhas presas bateram umas contra as outras ao agarrarem o nada, as patas derraparam na terra conforme eu retomava o equilíbrio, a cauda ricocheteou ao que meus sentidos se aguçavam, despertados pelo instinto primitivo de autopreservação. Vistoriei o ambiente em torno, captando cada minúsculo detalhe e constatando que não havia indícios do vampiro. Diabos, já não bastava visões do futuro, levitação e leitura de pensamentos? Não, tinha que ter um idiota invisível também.

Levei um violento golpe no focinho que me arremessou a cinco metros para trás. Desabei sobre uma pilha de rochas com uma vertigem me tomando e um apito zumbiu nos ouvidos, mas eu me recusei a ficar caído. Aquele era o propósito daquele vampiro – incapacitar, não matar, exatamente como Leah havia presumido. Eu era o espólio de guerra de outro.

Essa era minha principal vantagem. Saber que ele não tinha intenção de me matar.

Porque eu iria matar ele.

Fechei meus olhos, permitindo-me ser dominado pelos outros sentidos de lobisomem. Ele podia ser invisível, mas não podia ocultar seu cheiro doce e enjoativo, ainda fazia barulhos. E minha habilidade mais aguçada era a audição. Parei quieto onde estava, controlando a respiração descompassada e quando o vampiro se precipitou para o próximo rompante, fui decisivo ao prendê-lo pela clavícula; agitei-o de um lado para o outro entre minhas presas até que sua pele marmórea rachasse e a cabeça se separasse do resto do corpo.

Não perdi um minuto que fosse quando terminei; corri para junto do carro querendo verificar se estavam todos bem e fiquei aliviado por encontrar todos conscientes. Martín e Leah eram quem tinham os maiores ferimentos – especialmente nas têmporas e nos braços – e provavelmente o maior grau de atordoamento pela colisão, dada a forma como se moviam, contudo se curavam depressa e estavam procurando um meio de tirar Sue e Arturo do carro destruído sem machucá-los nas ferragens. Leah cambaleou até onde eu estava, caçando atentamente pelo vampiro, mas não precisei me esforçar muito para transmitir a mensagem; indiquei com o focinho para um conjunto de árvores e rezei para que ela ateasse fogo aos pedaços antes que eles se reagrupassem.

Não pude ficar eu mesmo para fazer aquilo. Eu tinha mais uma batalha me aguardando.

Meus pensamentos se conectaram aos dos meus irmãos na pior hora existente. Jacob, Quil e Embry assistiam o mundo de um plano elevado, presos em um campo gravitacional que não possibilitava que movimentassem um só músculo, assim como toda a matilha de Sam. Nenhum deles parecia surpreso por eu estar fora da injunção, mas aquilo já não tinha mais importância. Abaixo deles, três vultos encapuzados se detiveram perante à fachada da casa dos Cullen.

Obriguei minhas patas a acelerar mais.

Meu coração parou quando Anna saiu voando do interior da casa e pousou diante de David Dalaker. Seus olhos verdes eram gélidos e rancorosos ao alcançar os dele, mas quando falou, sua voz acompanhou o vento em uma suavidade resignada.

— Se eu for com você, promete deixá-los em paz? – soprou articuladamente, e por um segundo, pensei que eu estava delirando.  

— Anna, não! – gritou Edward de algum lugar.

Ela fingiu não ouvi-lo.

Todos eles? – ressaltou, unindo as sobrancelhas com uma angústia incontida, e eu soube que ela estava se referindo a mim.

— Por que está me propondo algo assim? – O vampiro canalha vacilou, desconfiado. – E por que faria isso? Você tem tudo para vencer essa briga.

Anna estalou os dedos e o campo gravitacional sobre meus irmãos se desfez e convergiu para cima do casal de gêmeos. Ao passo que as matilhas caíram sobre os arbustos, eles foram içados do solo e comprimidos com tanta pressão que começaram a desintegrar.

— De fato. Tenho tudo para ganhar. – Os gritos da garota que ia ficando sem parte do queixo pareceram satisfazê-la, mas ela recuou quando acidentalmente passou a abrir feridas nos lobos. Seus olhos assumiram momentaneamente o tom de rubi, que ela tratou de esconder desviando para baixo. – E tenho tudo a perder também. Eu os amo muito, não quero que eles paguem o preço... Não suportaria perder um deles para um conflito que eu mesma provoquei. E então, aceita?

A ganância cintilou nos olhos dele, seguido de um sorrisinho odioso.

— E você promete renunciar a todos, todos eles, para passar a eternidade ao meu lado?

— Pelo tempo em que me quiser ao seu lado – jurou solenemente, respirando fundo para engolir as lágrimas. Através dos olhos de Jacob, ela se conectou comigo por um breve instante. Para um último adeus. Sinto muito, garoto-lobo, disse. Eu amo você. — E pelo tempo em que eu viver.

Não sei em que momento o uivo de agonia e desespero irrompeu de mim, mas ele repercutiu tão vastamente na floresta que Anna tremeu ao escutá-lo. Mesmo com minha visão sendo embraçada pelas lágrimas, tentei correr mais do que as minhas pernas, mais do que meus pulmões permitiam, o máximo que consegui.

Só que foi inútil.

Cheguei aos Cullen quando era tarde demais.

Ela já havia partido.


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