Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 30
Inferno


Notas iniciais do capítulo

VOCÊS SÃO MUITO CRUÉIS COM ESSA AUTORA, CHÁ DE SILÊNCIO PRA VOCÊS TAMBÉM



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Eu nunca corri com tanto desespero na minha vida. Pouco me importava que eu estivesse em forma humana e que, nessas circunstâncias, qualquer vampiro fosse mais rápido do que eu; só consegui parar e me afastar do corpo inanimado de Anna quando adentrei na biblioteca dos Cullen conduzido por Edward, me deparando com Carlisle distendendo uma mesa de cirurgia no meio do tapete.

— O que aconteceu? – Carlisle interpelou já no caráter profissional de médico à medida que Edward me ajudava a deitá-la com cuidado sobre a superfície acolchoada, os dedos correndo pelo rosto lívido. Os olhos dela estavam completamente revirados quando ele levantou as pálpebras.

— Não faço ideia...! Estávamos conversando, ela reclamou de dor de cabeça, começou a sangrar pelo nariz e apagou! – atropelei-me com as palavras, a voz ficando embargada quando notei que o volume de sangue praticamente triplicara; agora o fluxo não escorria apenas pelo nariz como também pelos ouvidos e pela boca. Inclinei-me sobre ela, afagando seu cabelo. – Anna, meu amor, pode me ouvir?

Edward fitou Carlisle de esguelha com um ar sombrio.

— Eu disse que ela estava estranha.

— Ela está sofrendo uma hemorragia interna – Carlisle sussurrou como se não o tivesse escutado, o tom consternado sobrepondo a expressão de choque. – Edward, vá pegar minha maleta com os equipamentos de titânio, depressa! – E em uma batida de coração, o vampiro desapareceu porta afora. – Pessoal, tragam tudo para a biblioteca! Precisamos estabilizá-la, aplicar a morfina antes de desobstruir as vias respiratórias!

Edward não retornou sozinho. Trazia Alice a reboco, carregando uma maleta ao mesmo tempo em que ele batia na ponta de uma seringa metálica, a agulha respingando. Atrás deles, os outros Cullen apareceram um a um, posicionando objetos que de repente transformaram a biblioteca em uma ala de emergência improvisada. Carlisle aceitou sem ver a seringa que Edward entregou a ele, os olhos dourados concentrados na veia que em posicionou a agulha para depois espetar a injeção.

Automaticamente, Anna se sentou com as costas duras sobre a maca, quase translúcida na luz forte e branca do refletor. Todos estancaram no lugar, porque ninguém esperava por isso, muito menos pela cor vermelha e brilhante que consumia seus olhos – mais intensa e mais intimidadora do que a de qualquer recém-criado.

— Anna? – murmurei por reflexo, sentindo no fundo da alma que era inútil. Ela já não estava mais ali.

Sua mão se fechou em punho diante do rosto e fomos brutalmente arremessados contra as estantes de livros em uma única contração de puro poder. Bati as costas com tamanha violência que senti um dos ossos da costela se partindo e fiquei sem ar quando caí no chão. Fechei meus olhos por apenas um segundo, tentando me recuperar, e um apito insistente arriou em meus ouvidos – um apito que perdurou e ficou mais alto, mas que repentinamente se cessou.

Quando abri os olhos, eu não me encontrava mais na biblioteca moderna dos Cullen, repleta de aparelhos de hospital. Os móveis de mogno ao meu redor pertenciam a um escritório antigo, iluminado precariamente por um lustre de cristal. Ergui meus dedos para olhá-los de perto e em seguida toquei minhas costelas, no ponto onde há segundos antes eu havia escutado o estalo de um osso. Mas não havia dor, não havia nada. Meu corpo estava inteiramente intacto.

Um vulto cruzou a porta aberta à minha esquerda; e que escolha eu tinha, a não ser ir atrás dele? Segui os passos e o riso de uma garota até acabar no topo de uma larga escadaria, próximo a um vitral colorido. Era o ângulo perfeito para assistir ao casal que dançava no centro do hall de entrada, os movimentos tão suaves ao som da valsa que eles pareciam simplesmente flutuar sobre o mármore. Com um sobressalto, reconheci Anna entre os rodopios, mas o louro que a guiava não era David Dalaker – não, aquele cara era maior, mais musculoso, mais velho.

Era Hans. O noivo dela.

Fiquei sem reação, apesar das minhas pernas terem começado a descer os degraus sozinhas, diminuindo a distância que nos separava. Mas que espécie de pesadelo era aquele? Será que eu havia batido a cabeça e desmaiado na biblioteca?

Antes que eu pudesse questionar mais, Anna interrompeu a dança e se voltou para mim. Eu não estava preparado para vê-la daquele jeito, ainda tão bonita e vivaz, mas tão... humana. Tão distante da imagem da garota que eu conhecia e amava incondicionalmente, uma pessoa que se adequava por completo ao cenário que nos cercava, inclusive nas suas roupas de época. Ela segurou a barra do vestido – o mesmo vestido de renda com laço verde-jade com que havia sido replicada no quadro – e tocou meu rosto. Sem a costumeira malícia que me fervia o sangue, sem a eletricidade com que eu sempre sentia seu toque, apenas me tocou. Os olhos verdes, geralmente profundos e expressivos, estavam vazios e insípidos como vidro.

— Você não é a Anna – acusei, me afastando daquela imitação barata.

Sua sobrancelha se arqueou.

— Não sou? – redarguiu com a petulância que em outros dias me enchia de vontade de beijá-la, mas que ali somente me despertou um calafrio na nuca. – Ou não sou a sua Anna, Seth?

O cara atrás dela a envolveu pela cintura, tomando o lugar que era meu. Um ciúme cáustico me engolfou... e me confundiu. Eu já havia sentido ciúmes de Anna outras vezes e sabia qual era a sensação – não tinha toda aquela artificialidade. Como algo pronto, premeditado. Além do mais, como ela mesma salientou, não era a minha Anna ali, então por que me importar?

Hans sorriu e a onda de ciúmes me varreu novamente, agora com um vestígio de inveja.

— Você não se lembra? – A ponta do nariz desceu a curva delicada do pescoço dela. – Você a trouxe de volta para casa. Para o lugar onde ela pertence. – Os olhos azuis me fixaram. – Para mim.

— Calado – rosnei, subitamente furioso e consciente de que aquela fúria também não era minha. – Você nem está aqui. Você está morto.

— Verdade – concordou com a sobrancelha arqueada. – Mas nenhum de nós está vivo.

Endireitei-me como se algo gelado estivesse escorregando pela minha coluna.

— O quê? – Olhei para o ambiente refinado em torno, para as janelas abertas que libertavam a claridade de um dia de sol que eu jamais vira em La Push ou em Forks. – Onde... Onde estamos? – Hans bufou e eu fechei a cara quando compreendi o que ele estava insinuando. – Anna jamais me faria qualquer mal.

A Anna de mentira defronte a mim cruzou os braços.

— Tem razão, eu jamais faria. Não posso garantir nada sobre aquela coisa, entretanto. O monstro que você viu antes de desmaiar. – Ela fez uma pausa, como se desse tempo para que eu me acostumasse com a ideia, e quando falou, sua voz saiu mais serena que um suspiro. – Aquele monstro me destruiu também. Fez isso por muitos anos. Mas eu estou em paz agora. Estou aonde eu sempre deveria ter estado. E aqui, escolhi o caminho que sempre deveria ter escolhido. – Seus dedos se apertaram aos da mão na sua cintura e Hans a beijou no alto da testa. – O caminho do homem que eu sempre amei.

Parte de mim – por um momento – se convenceu e essa parte ficou de coração partido. Esse sentimento foi intrínseco e real, a única coisa que eu sabia que era realmente minha ali. Para mim mesmo, eu poderia admitir que guardei esse medo no fundo; a insegurança de que talvez eu não fosse correspondido com a mesma intensidade e que o amor de Anna jamais teria outro dono senão o noivo. Era um medo mesquinho e egoísta, uma estupidez – tentar criar competição com alguém morto e que teve uma história com ela muito antes de eu ter nascido.

A outra parte – e era essa que predominava – não se deixou enganar.

— É mentira. Eu estaria vendo nos olhos dela se alguma dessas palavras fosse verdade.

A garota piscou demoradamente. Quando abriu os olhos, em vez da cor verde e opaca, foi com o cruel vermelho-carmim que ela se deixou revelar. As luzes nas janelas desapareceram até que o escuro completo nos cercasse e a silhueta de Hans se esvaneceu entre as sombras.

— Prefere a sua verdade do que a minha mentira? Pois muito bem, Seth Clearwater. Vou lhe mostrar a realidade que você tanto ama e defende.

O escuro a nossa volta se manchou de um vermelho doentio e, feito uma neblina que chega devagar, começou a assumir o contorno de visões horríveis. Anna pairando acima da casa dos Cullen no centro de uma espiral de destruição, os olhos de rubi desfocados enquanto o telhado cedia e se juntava aos estilhaços de metais que levitavam em sua órbita. Os Cullen e meus irmãos e até eu, todos desmaiados em meio a uma névoa densa e leitosa ao que Bella lutava para se manter de pé, os dentes trincando no esforço de expandir seu escudo sobre nós. Um amplo salão marmóreo repleto de corpos moribundos espalhados e uma dúzia de vampiros enterrados em seus pescoços, os gritos cada vez menores virando gorgolejos fracos. O vampiro canalha compartilhando um pescoço com uma garota de cabelos castanhos claros nos degraus debaixo das três cadeiras imponentes e ornamentadas.

As visões pareceram acelerar ao alcançar os tais Volturi. Tornaram-se mais específicas. Mostrou os líderes instruindo um casal de gêmeos, as frases saindo rápido demais para que eu conseguisse acompanhar. Seguiu para três figuras encapuzadas de negro se misturando à noite, movendo-se tão silenciosamente entre as árvores que pareciam fantasmas.

Terminou com David Dalaker tirando o capuz perante a mansão Cullen em destroços, trazendo os gêmeos um em cada flanco.

Uma bofetada virou meu rosto todo para o lado. Pisquei languidamente, desnorteado, a visão desembaçando até focar em Edward, que me olhava de cima.

— Seth, acorde! – Ele me chacoalhou a ponto dos meus dentes baterem e depois se virou para Bella, que estava com os braços estendidos como se empurrasse uma parede invisível. – Vou buscar o resto!

— Vá, rápido! – Bella grunhiu, o maxilar rígido. – Não vou conseguir segurar por muito tempo, ela é forte demais!

Sentei-me no ato – como é que eu vim parar nos pedregulhos da entrada da garagem? – e fiquei em choque ao perceber que eu estava rodeado pelas matilhas e metade dos Cullen. Não foram eles que me chocaram – foi a situação. Estavam todos agachados, com expressões distantes e catatônicas. Alice não parava de se balançar para frente e para trás. Paul chorava a ponto de soluçar, assim como Jared. Eu jamais tinha visto algo tão perturbador quanto aquilo.

Então virei os olhos na direção da casa. E mudei de ideia.

Era exatamente como na visão, só que muito, muito, muito pior. Um campo gravitacional pulsava para além de Anna feito um coração no ápice da adrenalina, tão descontrolado que já havia arrancado das estruturas todo o terceiro andar. Os metais e minerais atraídos de seus escombros revoluteavam em aros protetores, fechando-a em seu interior como uma fortaleza impenetrável. Havia uma névoa esbranquiçada se desdobrando por toda parte – os únicos lugares que não parecia ter invadido foi a circunferência criada pelo escudo de Bella e, claro, o espaço no ar dominado por Anna, que ardia em seu eixo feito uma estrela assassina, um anjo vingador.

Edward retornou com Carlisle e Esme escorados em seus ombros. O escudo os recebeu com a leveza de um abraço, mas a névoa não queria desistir das suas presas tão facilmente; Bella tremeu e cambaleou sobre os sapatos quando pareceu receber golpes diretos e a névoa subiu como tentáculos pela superfície do escudo, procurando brechas.

Foi quando eu cheguei à conclusão de que estávamos todos ferrados que eu ouvi os pneus cantando. Um veículo se aproximou em alta velocidade e somente quando parou, derrapando com uma freada brusca, foi que reconheci a Duster de Teresa. Ela saltou sem hesitar do banco do motorista e correu até onde estávamos, os olhos de águia focados em Anna.

— Não me deixe cair, seu pateta – grunhiu para mim e seu corpo desabou para o lado, totalmente inconsciente. Fui articulado o bastante para pegá-la antes que batesse a cabeça contra o asfalto, mas isso fez com que eu perdesse o que aconteceu a seguir.

Eu apenas escutei o grito. Um grito longo, penetrante e estridente. Girei o pescoço a tempo de ver os objetos flutuando se perderem no caos antes que Anna tombasse junto com eles. No mesmo instante, Teresa despertou já a meio passo de disparar para o interior da casa.

Não pude registrar com precisão o que veio depois disso. Encontramos Anna caída sobre as ruínas do que sobrou do terceiro andar, grogue e coberta com o próprio sangue. De início, ninguém a não ser Teresa e eu se atreveu a tocá-la, por mais que ela estivesse desacordada; Carlisle aliás somente começou a se mover quando avisei o quanto o pulso dela estava fraco. Conseguimos salvar dos escombros a sua maleta com instrumentos de titânio, mas foi só. Desprovido da maior parcela de seu material de trabalho, ele precisou recorrer às credenciais do hospital para adquirir o necessário para interná-la em casa – quando ele e Edward partiram, percebi que as duas matilhas inteiras aproveitaram a oportunidade para se dispersar também. Não que eu pudesse condená-los por isso.

Nenhum dos Cullen se ausentou. Claro que Bella telefonou a Rosalie e instruiu que ela continuasse afastada com Renesmee – no chalé, onde estiveram desde o treino daquela tarde –, no entanto, todos recobraram estado de espírito o suficiente para permanecer por perto, mesmo sob o risco de um outro surto. Eles não ficaram nos rondando, porém. Preocuparam-se tão-somente em se livrar dos entulhos, como se estivessem à caça de uma forma de não manter as mãos desocupadas.

Carlisle e Edward retornaram em pouco menos de uma hora e carregando uma série de aparelhagens do hospital; trouxeram até uma nova maca, que esticamos na sala de visitas. Vagamente, enquanto Carlisle administrava com cautela uma medicação intravenosa em Anna, entreouvi Edward comentando com os demais algo sobre os humanos terem percebido uma comoção estranha naquela área das montanhas e a sua resposta resumida de uma desculpa qualquer sobre um carvalho que destruiu um gerador de energia ao cair. Não interceptei mais detalhes e nem pedi por eles.

A verdade era que eu não conseguia prestar atenção em nada. Eu não consegui prestar atenção em outra coisa que não fosse a Anna, pálida e imóvel na minha frente feito um cadáver. Ela não abriu os olhos e não movimentou um músculo que fosse conforme Carlisle a entubava, e eu apenas podia alegar que ela estava viva porque sua respiração ressoava baixa e irregular, assim como as batidas pesadas de seu coração.

A noite caiu junto com o silêncio. À essa altura, já havia ficado evidente que o perigo tinha passado, mas ainda assim ninguém se permitiu relaxar. Bella parecia a mais tensa de todos; ficou de pé do lado do leito batucando os dedos nos braços cruzados, a expressão desconfiada e vigilante. Esme acariciava a testa da filha e Edward não parava de andar de um lado para o outro na beira da maca. O comportamento sem dúvida mais incomum obviamente foi o de Tery, que condenava cada um de nós com os olhos apertados, mas eu estava decidido a ignorá-la. Deduzi que se fizesse de conta que ela não estava a minha esquerda espumando de ódio, ela desistiria e iria embora de uma vez.

Não foi assim. Contra os meus protestos, Teresa me arrastou pelo braço até a saída, xingando pelos cotovelos. Pelo canto do olho, vi que Jasper e Alice estavam sentados na escada, alisando as costas um do outro. Não fazia ideia de onde Emmett tinha se metido.

Teresa parou com as mãos na cintura, o pé batendo com impaciência.

— O que fizeram com ela? – sibilou entredentes.

Encarei-a boquiaberto, sem compreender. Ela estava realmente insinuando que Anna havia entrado em colapso e causado aquele pandemônio por culpa de algo que havíamos feito? E o que diabos que poderíamos ter feito?! Quando me calei, sem ter como ou o que responder, os olhos dela marejaram.

— Seth, ela estava em coma. Tive que buscá-la quase na entrada do outro plano. – Teresa se deteve brevemente, vendo que eu comecei a sufocar como se tivesse perdido os pulmões, mas isso não foi o bastante para que ela recuasse. Muito pelo contrário; de repente ela parecia tomada por uma determinação febril, tanto que me prendeu pelos ombros para que eu a fitasse no fundo dos olhos dourados. – Eu não sou médium, eu não posso fazer isso de novo, que isso fique bem claro. Não quero nem pensar nas consequências que podem haver para alguém como eu ficar brincando com o mundo dos mortos.

— Ela não está morta – me forcei a cuspir, a voz esganiçada.

— Estava quase – objetou, me largando com um gesto ríspido e subindo as escadas. – Seja lá o que tenha acontecido, não pode se repetir.

Foram três dias vagarosos. Três dias lancinantes. Anna continuou adormecida, embora Carlisle tenha parado de ministrar morfina após as primeiras doze horas justamente porque não estava surtindo efeito. Eu não arredei o pé do lado dela em nenhum momento – nem para comer, nem para dormir, para nada—, ainda que tenham se esforçado em me demover, inicialmente os Cullen, depois minha matilha e por fim, minha mãe. Sue, surpreendentemente, foi mais compreensiva que todos eles. Bastou que ela batesse os olhos em Anna para que desistisse do propósito de me afastar dali e até se empenhou em me dar cobertura – de acordo com Jacob, no mesmo dia ela conversou com a diretoria da escola para justificar minhas faltas, com o aval do Conselho. 

Teresa também faltou as aulas, apesar de não ter se preocupado em informar os pais da sua localização. Ela passou o tempo todo deitada sobre um colchão de ar a poucos metros de nós, porém eu sabia que ela não estava dormindo de verdade. Frequentemente, ela levantava sem qualquer sinal de sono para comer uma bacia de frutas ou ir ao banheiro – pelo que eu a ouvi murmurinhando, as projeções astrais exigiam muito de sua energia vital.

No fim da tarde de sexta, Anna demonstrou uma mudança significativa – que não fosse vomitar ou cuspir sangue. Seus dedos se contraíram, sua pele recuperou o tom de baunilha. Quando ela franziu o cenho e resmungou baixinho, chamei por Carlisle, que apareceu trazendo Edward, Bella e Esme na retaguarda.

— Ei – cumprimentei-a quando ela abriu os olhos, que para o meu alívio cintilavam com o verde das esmeraldas. O alívio foi tão desmedido que não pude evitar dizer isso em voz alta. – É bom ver seus olhos de novo.

Anna não falou nada. Seus braços forçaram um impulso para que ela pudesse se sentar, os olhos inquisitivos estudando rosto por rosto. Ao terminar em mim, ela já estava chorando.

— Eu machuquei você – sussurrou, mortificada.

— Shhh, meu amor, está tudo bem – apressei-me em aquietá-la, beijando seus dedos. – Descanse.

— Eu machuquei todo mundo. Eu... – Ela balançou a cabeça, ofegante. – Sinto muito, me perdoem. Vocês são minha família. Eu nunca... – Sua voz sumiu, o lábio inferior tremendo.

Percebendo que ela estava entrando em pânico, Edward se adiantou para abraçá-la.

— Acalme-se, irmãzinha.

— Eddie, meus poderes... – Anna se escondeu nos braços do irmão, o choro desenfreado distorcendo suas palavras. Chorei com ela, porque não tinha mais nada que eu pudesse fazer.

Horas mais tarde, quando enfim ela se tranquilizou e nossa principal inquietação era se certificar que ela ingerisse algum alimento consistente, entendi que eu não podia postergar por muito mais tempo. Eu precisava saber com o que estávamos lidando. Pedi a Esme e a Bella que cuidassem dela enquanto puxava Edward até o quintal à procura de Carlisle, descobrindo-o nas margens do rio. Ele estava cansado, isso era notório. O modo como fitava a floresta detrás do rio vincava a base de seus olhos em rugas centenárias. Era como se o homem tivesse envelhecido mil anos em setenta e duas horas.

Edward e eu marchamos para ele, estacando um em cada ombro. Talvez devêssemos ter sido minimamente sutis ou sorrateiros. Mas que diferença faria? Anna iria nos escutar, de qualquer jeito.

— Diga o que está havendo – implorei. – Por favor.

Carlisle abriu a boca, entretanto as palavras morreram na garganta. Quando finalmente imaginei que ele me daria alguma explicação, uma agitação próxima na floresta o interrompeu; minutos depois, Sam surgiu entre as árvores em forma humana, a habitual fisionomia pouco calorosa sendo usada para encobrir um sentimento apreensivo.

— Precisamos conversar. – Ele enfiou as mãos nos bolsos da bermuda, algo incomum. – Soube que ela acordou. Onde está?

Edward fechou a cara – um péssimo indicativo do conteúdo daquela conversa.

— Lá dentro. Estamos tentando incentivá-la a comer.

Sam fez que sim e indicou com o queixo para que o seguíssemos. Repensei várias vezes a decisão de ir atrás deles, temendo deixar Anna pelo tempo que fosse, entretanto eu não tinha alternativa. Não ia conseguir minhas respostas ficando parado ali sozinho. Pulamos o rio, cortando caminho até estarmos na mesma campina nas montanhas onde tínhamos ido para treinar e fiquei surpreso por me deparar com as duas matilhas completas iluminadas por uma fogueira, sendo que no lugar de destaque estavam Billy Black, o Velho Quil e a minha mãe.

Uma reunião do Conselho fora das fronteiras de La Push. A primeira. Possivelmente, a última.

Todos nos encaravam com ar de interrogatório, assim como eu, cobrando explicações. Diante desses olhares, voltei-me para Carlisle, assumindo a mesma posição que a minha tribo. Esperava que ele não me negasse o direito da verdade.

Carlisle não me decepcionou, mas também não parecia satisfeito com isso. Ficando próximo ao fogo, ele me deu as costas, incapaz de sustentar meu olhar.

— Não sei como dizer isso – começou, esfregando os vincos na testa com as duas mãos. – Não sei como lidar, me sinto de mãos atadas. O corpo da Anna, ainda que seja resultado de um processo de adaptação, possui toda a estrutura fisiológica de um híbrido. O poder dela, na sua capacidade mais primordial, é se adequar aos mais diversos aspectos da natureza vampírica. – Ele respirou profundamente, sua musculatura se soltando em derrota. – São incompatíveis. Não tem como existir tanto poder em um corpo que é metade humano. O que deveria ser a maior defesa dela está literalmente a matando de dentro para fora.

O silêncio que tomou conta da campina foi sepulcral.

— Isso não explica que inferno foi aquele – Sam rebateu, estupefato demais para que sua entonação autoritária de líder soasse convincente.

— Explica sim – Edward exortou, severo. – A consciência da Anna abandonou o corpo. O instinto de autopreservação em nossa espécie é muito forte. O subconsciente dela está a todo custo tentando fazer com que o corpo sobreviva e está se armando contra qualquer tipo de ameaça com todos os poderes que duplicou como um mecanismo de defesa. Ela esquadrinhou as mentes e usou nossos medos, inclusive os mais escondidos, para nos incapacitar. – Seu olhar em chamas pousou em mim, ligeiramente mais comedido. – Ela foi muito gentil com você, Seth. As coisas que mostrou ao resto de nós... – Ele estremeceu. – Foram muito piores.

Reparei na forma esquiva com que meus irmãos seguiram o exemplo de Edward, remexendo-se desconfortavelmente no lugar. Eu não tinha parado para considerar as consequências do que aconteceu, mas para eles deve ter sido como enfrentar o próprio calvário. O que Anna fizera na última reunião do Conselho não representava uma fração se comparado ao que fez durante o surto. As imagens que ela mostrara naquela noite eram como holografias, uma ilusão projetada no ar fácil de se distinguir da realidade. Já no estado absoluto de seu poder, ela evocara diversas versões da realidade... Versões que, na descrição assustadora de Edward, era a personificação dos medos de cada um.

Estremeci também.

— Aquela noite na campina... – Jacob se manifestou pela primeira vez. – Alguma coisa deu errado quando Anna copiou o poder da brasileira. Foi o que a deixou sobrecarregada.

— É mais provável que apenas tenha desencadeado algo que estava para desatrelar a qualquer momento – Edward especulou. – Fazendo as contas, além das características híbridas, que também são derivadas de uma cópia, Anna atualmente carrega sozinha as habilidades de onze vampiros. – Seus punhos se retorceram, como se preparassem para estrangular alguém, mas ele se limitou a um fechar de olhos. – Já tinha algum tempo em que ela vinha manifestando alguns picos de instabilidade.

Usei todo o meu autocontrole para manter a calma, porque só havia uma única pergunta que realmente importava e que ninguém ainda tinha proferido.

— Como podemos salvá-la? – Analisei Sam pelo rabo do olho, e pelo bem da vida dele, era melhor que ele concordasse comigo. – Não somos a favor do veneno, mas se for necessário...

— Não há mais nada em nosso poder que possamos fazer – Carlisle não permitiu que eu prosseguisse. – Eu tentei injetar o veneno há dois dias, ela vomitou tudo. Só podemos aguardar... E torcer para que ela consiga resistir. – O rosto se ergueu para as nuvens, e eu senti que ele se obrigava a ter esperanças.

Algo molhado desceu minha bochecha e por um instante pensei que estava chovendo. Mas não. Eram minhas lágrimas, as que eu não ousei desprender na frente de Anna, as que guardei por três dias.

— Temos outro problema – Sam tomou coragem para dizer o que estava incomodando. – Anna era nossa principal base de ataque e, vocês gostando disso ou não, era a principal defesa também. Com ela fora de combate, estamos todos vulneráveis. 

Recusei-me a ficar para acompanhar o resto. Eu não queria ser obrigado a esmurrar Sam. Minha namorada, meu imprinting, minha outra metade estava morrendo e esse idiota só se atentava as estratégias de guerra. Embrenhei-me sem rumo montanha abaixo conforme as lágrimas me deixavam cego; nem ao vi quando alcancei a rodovia, apenas captei o atravessar periódico dos carros. Assentei-me na beirada do acostamento e me protegi da luminosidade dos faróis entre os braços apoiados nos joelhos.

A certo ponto, porém, a luminosidade não passou reto. Permaneceu apontada para o meu lado e logo depois percebi que estacionaram a alguns metros de mim. Uma raiva animalesca se espalhou por meu corpo. Maldição. Eu queria chorar em paz. Não era pedir muito. Alguém saiu do carro e se aproximou com passos cadenciados nos saltos barulhentos. Ótimo. Teria que ser mal-educado com uma garota.

Levantei-me com as palavras prontas na ponta da língua para mandá-la embora, mas quando a luz do farol se apagou e eu focalizei suas feições, perdi minha voz.

Era Leah.


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