Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 12
Proximidade


Notas iniciais do capítulo

Oie! É, como assim eu apareço com essa cara de pau e com essa merreca de capítulo curto depois de um mês?? Gente, eu tive que reescrever tudo (porque eu ia mandar a Anna pra escola e ficou horrível) e, bom, bloqueio criativo atinge todo mundo, né? De qualquel forma, enjoy, e podem comentar, seus Judas, senão vou ficar magoada com vcs!



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Pela terceira noite seguida tentei dormir e não obtive sucesso. Remexi-me na cama, impaciente e alerta pelo sono que não chegaria, e acabei sentada entre os lençóis emaranhados. Devia ser umas quatro da madrugada; o escuro tomava a floresta do outro lado da cortina de vidro e havia poucas nuvens no céu – chumaços prateados ao alto que aconchegavam a Lua crescente, a fonte da luz branca que se estendia pelo quarto.

Quis sair dali, embora soubesse que não encontraria nada com que me distrair. Dançar, tocar, compor ou mesmo cantar exigiam de mim um estado emocional elevado – picos extremos tanto de felicidade quanto de tristeza – e não era exatamente assim que eu me sentia. Além do mais, havia vozes nos andares de baixo, como de costume, e eu não pretendia alarmá-los com minha condição apreensiva – já fizera isso demais naqueles últimos três dias. Apreensiva... na falta de uma palavra melhor. A sensação desagradável que alfinetava meus nervos era mais insistente... mais preocupante.

Era o receio que anunciava a calmaria antes da tempestade.

Eu sabia que isso aconteceria cedo ou tarde. Que David viria atrás de mim, afinal, rodávamos naquele ciclo vicioso já fazia quinze anos. Só não esperava que fosse tão cedo. Devia ter desconfiado desde aquela misteriosa intuição em Chicago. Não fui cuidadosa como deveria ter sido e provavelmente ele me localizou quando voltei a Bergen com Edward, tendo mapeado meus passos de lá até Forks.

Perturbou-me que David tenha dado as caras na pior hora existente – deparando-se comigo atrelada nos braços de Seth, meus lábios quase colados nos dele. Um calafrio me percorreu devido a uma série de motivos – o choque da surpresa, o embaraço da situação, a dor das lembranças, a raiva das acusações, a saudade dele, a frustração com sua presença. Fiquei surpresa por a frustração se destacar tanto entre os demais, pois a origem dela foi a interrupção de algo que secretamente eu cobiçava – outra palavra que parecia inadequada.

Seth também não facilitou em nada o meu lado. Ele era rápido; assim como eu, viu o borrão da passagem de David, porém diferentemente de mim ele não soube explicar de que forma aquela silhueta não deixou rastro de cheiro – evidência incontestável de que se tratava mesmo de David, pois fui eu quem o ensinou esse truque. Isso não significou, entretanto, que foi fácil mentir para Seth. O pavor nos meus olhos entregou a verdade, que eu sabia de modo categórico quem era o louro esquivo, porém a falta de provas acabou com sua argumentação e engavetou o assunto, tendo servido de fato apenas para nos afastar. Tornamo-nos muito hesitantes um com o outro – ou quem sabe, tenha sido só eu – e nas tardes que ele viera me visitar, entrevi uma pontada de tristeza com meu silêncio. Ao menos não precisamos conversar sobre o quase beijo – não que fôssemos fazer isso, independentemente do ocorrido. Seth já me conhecia o bastante para saber que eu agia de supetão, mas que de jeito nenhum eu falava desses impulsos.

Saltei da cama e esfreguei as têmporas com força, tencionando arrancar cada ideia venenosa com as pontas dos dedos. Estipulei que talvez sabão e água perfumada pudessem ajudar, então resolvi me afundar na banheira, um hábito frequente para cobrir o tempo que se arrastava. Peguei um livro na prateleira sem ver ao passar pelo batente e deixei pendurado na borda enquanto amarrava meu cabelo e me despia – as torneiras giravam sozinhas, preguiçosas, e a água que jorrava sobre os sais de banho preenchia o ambiente de modo tranquilizador. Era sexta-feira e não estava chovendo em Forks, nem choveria o fim de semana todo, por isso os Cullen decidiram que sairiam todos de uma vez para caçar, dividindo-se em dois grupos seguindo direções opostas para aproveitar a ocasião. Eu não podia estar mais contente por ser deixada para trás, porque eu sabia que David ia continuar voltando até falar comigo.

Avaliei o livro no que me acomodei na espuma; O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux, um clássico em francês original da minha lista de não-lidos. Eu optava por ler livros em seu idioma de origem para praticar o meu domínio de outras línguas e também para me dispersar de pensamentos inoportunos – A Arte de Amar, de Ovídio, por exemplo, me custou três semanas de leitura devido ao latim arcaico da escrita. Comecei a ler e já estava no quarto capítulo, repetindo em voz alta a pronúncia de cada palavra rebuscada que encontrava, quando meu quarto foi invadido. Edward entrou no meu banheiro sem permissão e eu desci mais na água. O que diabos ele estava pensando?

Sacré bleu! — esganicei, constrangida. – Não há mais privacidade nesta casa? Estou tomando banho!

— Ótimo. – Ele se recostou na parede, um ato espontâneo que não combinava com a expressão austera ou com as roupas engomadas de Testemunha de Jeová. – Assim não tem para onde fugir. Você, mocinha, vai me ouvir e vai ser agora.

Fechei a cara, usando a capa do livro como barreira.

— Não quero falar com você. Já pode dar meia volta e sair por onde entrou.

Edward cruzou os braços e me estudou com aquela expressão rabugenta que ele usava quando queria extorquir verdades de mim.

— Diga-me o que está escondendo.

— Posso tirá-lo daqui à força, se estiver muito difícil andar. – Acenei os dedos para ele.

— Por que está sendo tão arredia? – O rosto ficou rígido de determinação e sua articulação se tornou frenética, veemente. – É por causa do que contou de nossa mãe? Se não quer tocar nesse assunto, eu respeito sua vontade. Apenas vou lhe pedir desculpas por ter sido cego durante tantos anos e por não tê-la protegido quando essa sempre foi minha função. Não quer discutir acerca do que quer que seja que está fazendo com Seth? Concordo. De qualquer forma, eu nunca meti o nariz na sua vida amorosa. – Ele me calou com um gesto ao perceber que eu ia me manifestar. – Mas esconder coisas de mim, sendo que se vê a quilômetros o quanto você está inquieta? Não, não, Anneliese, isso eu não vou tolerar!

Suspirei dramaticamente, derrotada. Ele não ia desistir sem pelo menos uma migalha.

— Serve eu lhe prometer que conto tudo quando você precisar saber? – propus, consciente de que estava entregando o ouro ao bandido.

— Não – revidou com obstinação.

— Então sinto em lhe desapontar, monsieur. – E abri o livro de novo.

Um grunhido baixo ressoou em seu peito, mas Edward acabou cedendo, relaxando contra a parede. De nós dois, eu certamente era a mais teimosa.

— Vamos partir ao amanhecer – comunicou, ainda irritado. – Esme lhe deixou bastante comida pronta e, bem, você pode sempre recorrer a um restaurante.

Soprei o ar com força sem tirar os olhos do livro.

— Eddie, eu passei mais de vinte anos da minha vida sozinha. Creio que consigo sobreviver por três dias e sem colocar fogo na casa, se é o que vocês temem. – Estreitei os olhos para ele, acusadora. – E então, que horas Seth vem me buscar?

— Do que está falando? – indagou, repentinamente imóvel da cabeça aos pés.

— Não seja cínico. – Bati com a palma na superfície da água, levantando meia dúzia de bolhas de sabão. – Bella está protegendo seus pensamentos, você está nervoso feito gado na entrada do matadouro e o meu prisioneiro imprinted vai me contar tudo assim que chegar ou é o que me dizem as visões. Portanto, não tem necessidade de se fazer de desentendido comigo.

Os olhos escuros pela sede se reviraram.

— Pensei que estivesse bloqueando suas visões, Anna-Cabeça-de-Vento.

— Não mais. – Não desde que David apareceu, completei sozinha. – Me manter sob vigia foi ideia sua ou de Seth?

— Considere uma ação conjunta – confessou sem nem um pingo de culpa. – Ele também anda preocupado, apesar de eu não ter conseguido tirar nada da mente dele, pois tem evitado ficar perto de mim sem a sua presença. Acabou que tivemos que combinar tudo por telefone... – Edward me apontou o indicador. – Seth está lhe acobertando, não está, Anna?

Dei de ombros, ocultando um sorriso ardiloso atrás das páginas.

— Eu não pedi nada a ele.

— E nem precisa. – Edward me deu as costas, mas travou na soleira da porta, cauteloso. – Olhe... Pense bem antes de qualquer atitude nesse fim de semana com os Clearwater e os quileutes. Pese as consequências para não ceder a sua grande tendência em fazer tolices.

Ri com malícia.

— Está com medo de eu ser seduzida, meu irmão? – aticei.

— Você sabe que é o contrário o que me dá medo – censurou, ranzinza. – Seth é jovem e não sabe ver além da sua perversão.

— Não mesmo. – Ergui o dedo menor. – Já o tenho amarrado no meu mindinho.

— Claro que tem. Você o corresponde, ainda que não queira admitir.

Arremessei o livro mirando em sua cabeça, no entanto ele apenas o pegou e o lançou sobre a minha cama com um movimento simples da mão.

— Acredite no que quiser – retruquei, tentando soar indiferente. – Agora, ponha-se para fora do meu quarto ou eu juro por Deus que vou... – Não precisei terminar a ameaça; com um sorrisinho ridiculamente irônico, Edward me deixou sozinha para praguejar em paz e, ainda que ele não soubesse, fazer um planejamento decente.

Fim de semana em La Push. Decidi concordar em ir somente para não deixar ninguém desconfiado com minha insistência em ficar sozinha – eu voltaria correndo para Forks ao primeiro sinal de uma decisão concreta de David. Eu estava monitorando seus passos, procurando conseguir algum indicativo de localização para que eu pudesse ir atrás dele logo e dar um fim a esse suplício, mas as direções que ele estava tomando eram cada vez mais avulsas e indistintas – fragmentos de florestas sempre iguais e pequenas faixas de rodovia, raramente uma cidade – e deste modo eu estava de mãos atadas.

Não me restava muitas alternativas além de esperar.

Pela tarde, quando um Ford antigo cinza-chumbo estacionou diante da fachada da mansão Cullen, eu já estava sentada nos degraus da frente e arrumada com um blusão de lã dégradé, uma calça de couro preto e tênis All Star, pendurando no ombro uma mochila. Fechei e guardei o livro que estava folheando – outro título em francês, pois já havia terminado O Fantasma da Ópera—, crispando a testa assim que vi Seth sair do carro. Pensei que me deparar com ele seminu era o máximo do desconcertante, porém assisti-lo andando até mim usando jeans escuro e jaqueta de couro, sem dúvida ultrapassava de longe essa marca.

Seth carregava no olhar um ar ansioso de quem sentiu saudades, mesmo que ele viera me visitar no dia anterior, e me girou no abraço antes de me beijar na têmpora – eu já havia superado a fase de me importar com contato físico e ele se aproveitava disso sempre que podia. Propriamente como havíamos combinado, nossa relação sem nome específico seguia igual ao curso de um rio, fluente e natural.

Esperei pacientemente que ele me largasse para enfim questioná-lo:

— Conte-me, bad boy, vamos em alguma festa dos Hell’s Angels e ninguém me avisou? – Toquei seu cabelo lambuzado de gel. – Que roupa é essa?

— Humm... – Ele levantou os ombros, incerto e muito corado. – Ficou ruim?

Avaliei-o de cima a baixo duas vezes, contendo-me para não morder o lábio.

— Ficou um arraso. – Na verdade, quis dizer que ficou sensual, só que tal adjetivo jamais sairia da minha boca. Nunquinha. – Mas isso não é você. Foi ideia dos seus irmãos, não foi?

Seth não conseguiu sustentar meu olhar, o que já serviu de resposta.

— Francamente, não devia escutar o que eles fuxicam. São um bando de perdedores. – Revirei os olhos e cruzei os braços, ciente que de que soltaria uma estupidez. – Gosto de você do jeito que é, se é o que precisa saber.

O passo que ele deu na minha direção pareceu quase automático.

— Gosta? – ecoou com um meio sorriso bobo, os olhos negros luminosos. Não imaginei que olhos negros pudessem brilhar tanto; pareciam estrelas.

— É – afirmei com o desinteresse mais falsificado da face da Terra, que foi denunciado pelas bochechas em chamas. – Já podemos ir? Está ficando tarde e quero passear na praia.

Pela primeira vez Seth mostrou notar a mochila que eu segurava.

— Você sabe do rapto de fim de semana – constatou, estupefato. – E está aceitando ir por livre e espontânea vontade. – O tom assombrado no final fez parecer uma pergunta.

— Deixa de ser rapto nessas condições, Seth – debochei, saltitando até a porta do carona.

— Espere, tem algo errado aí. – Ele me alcançou e me prendeu de costas contra o Ford, os braços um de cada lado não me dando escapatória. – O que está tramando?

Fiz minha melhor expressão de donzela inocente.

— Não acompanhei o raciocínio.

— Conheço você bem, Anna Masen, e sei que não iria se render assim sem uma briga. – Engoli em seco ao vê-lo se inclinar mais, os olhos ardentes. – Anda, pode ir abrindo o jogo.

— Santo Deus, você e Eddie são duas velhinhas paranoicas – reclamei, deslizando o indicador pela sua jaqueta. – O que eu poderia estar tramando, James Dean? Uma chacina em La Push?

— Sei de coisas que Edward não sabe – teimou, não se deixando tapear pelo falso ultraje. Sua mão interceptou a minha na metade do caminho, os dedos se entrelaçando aos meus.

— E vai guardá-las se não quiser que eu fique magoada com você – murmurei com voz doce, apertando os lábios em um biquinho suplicante.

Seth me encarou com reprovação ao perceber a chantagem descarada.

— Golpe baixo, Anna. Golpe muito baixo.

— Eu sei. – Beijei sua bochecha, sentindo-o se arrepiar e no minuto em que sua mão febril se fechou ambiciosa em minha cintura, evadi-me de seu abraço com um sorriso travesso.

Ele balançou a cabeça, parecendo inconformado.

— Você é terrível – sussurrou, indo para o lado do motorista.

— Ora, ora, alguém está acordando – celebrei ao entrar no veículo. – Não é que eu seja a pessoa mais correta para falar sobre responsabilidades e essas baboseiras todas, mas tem certeza de que devia estar dirigindo? Faltam alguns dias para o seu aniversário.

Ele rolou os olhos enquanto se sentava.

— É policial agora? Me mostre seu distintivo.

— Está bem. – Levantei as mãos em rendição. – Vamos lá, qual é o nosso itinerário?

Seth ligou o carro e o direcionou com velocidade de volta para a rodovia, seguindo para o litoral – a segurança e a firmeza com que ele manobrava o volante ou movia o câmbio eram estranhamente atrativas. Voltei os olhos para fora, encabulada com essas sandices.

— Bem, você disse que quer ir à praia. Podemos passar a tarde toda lá, mas pela noite os Anciãos marcaram uma festa na fogueira. Os garotos mais novos de Sam ainda não escutaram as histórias, as lendas dos lobos... pelo menos, não sabendo que são todas verdadeiras. O Sr. Black e o Velho Quil pediram que você estivesse presente.

— E para quê? – obstinei com o cenho unido. – Já conheço as lendas de cor e salteado e, como bem Paul esfregou na minha cara, eu sou uma forasteira.

— Paul é um idiota, não escute o que ele diz. E forasteiros já presenciaram uma reunião do Conselho antes. Pergunte à Bella, se quiser confirmar.

Praguejei entredentes. 

— Fizeram isso como a indireta menos sutil do mundo, tentando alertar Bella para o que ela se tornaria e para o que estavam preparados para fazer quando o Tratado fosse violado. Só não contavam com Renesmee na equação. Não se engane, Seth, eles têm uma segunda intenção com essa convocatória. Sempre têm.

Ele ignorou o meu repentino mau-humor.

— E o que poderia ser? Ainda que seja uma forasteira, você é um alvo de imprinting. A tradição diz que devemos familiarizá-la com nossos costumes.

— Pfff. Não é a hora mais adequada para me expressar – desconversei para evitar uma discussão inútil com minhas teorias conspiratórias. – E amanhã?

— Não pude planejar nada. Leah quer tirar um dia de garotas.

Estremeci, esquecendo-me no ato da tal fogueira.

— Céus, me diga que ela não vai me arrastar para o cabeleireiro e fazer as unhas. Não consigo pensar em nada pior.

— Leah se recusou a me contar. Ouvi ela mencionar alguma coisa sobre Las Vegas, mas devia ser chacota, porque um assunto sobre o vômito no pé de alguém entrou no meio... – Deu de ombros, rindo ao que eu escondia um sorriso. – E no domingo, pensei de irmos...

— Domingo estarei em casa – interrompi. – Existe um limite de tempo em que consigo permanecer em locais onde sou indesejada.

— Você é muito bem-vinda lá em casa – contrapôs, meio confuso.

Bufei.

— Por você e Leah. Sei que sua mãe permitiu minha estadia de má vontade, afinal, Sue me considera uma péssima influência seu garotinho. O engraçado é que ela só foca em você, como se eu não fosse capaz de desvirtuar a Leah. – Gargalhei, sardônica. – Mas, enfim, pode ficar comigo se quiser continuar me fiscalizando no domingo. Tem um punhado de filmes de terror em cima da TV, doces e pacotes gigantes de Doritos nos armários da cozinha.

O convite o surpreendeu.

Só nós dois? – Os batimentos cardíacos dele se tornaram mais rápidos que os meus.

— Ficar sozinho comigo em uma casa grande lhe deixa nervoso, Seth? – ronronei com a sobrancelha arqueada.

Os olhos negros se estreitaram.

— Você está muito engraçadinha hoje – criticou, no entanto suas mãos no volante ficaram suadas. – Por que será que estou com a sensação de que está tentando me distrair?

— Vou interpretar isso como um sim.

O Ford percorreu a estrada margeada pela floresta até aparecer o contorno da primeira praia, onde o mar verde-escuro cintilante no sol quebrava em ondas espumosas nas rochas. Barcos de pesca pontilhavam a costa, rodeando em especial a ilha James, e grupos se ajeitavam em círculos na areia usando os troncos embranquecidos pela água salgada como bancos – muitos querendo aproveitar a trégua das chuvas, apesar do clima ameno de inverno. Inspirei a brisa, deliciada com os inúmeros cheiros.

Paramos ao lado da casinha de madeira dos Clearwater, aquela construção modesta de pintura azul-marinho descorada pelo tempo, e fiquei perto do carro enquanto Seth corria para dentro para guardar minha mochila e tirar a fantasia de Footloose — não quis passar pelo constrangimento de me encontrar com Sue tão cedo. Seth voltou vestindo uma bermuda bordô e uma camisa jeans – que ficavam infinitamente melhores nele – e seu cabelo preto rebelde, úmido e livre do gel, tremulava no vento frio da reserva. Embora não precisasse, ele me puxou pelos dedos até a praia.

— Anna, não quero ser enxerido, mas quantos idiomas você fala? – começou com uma ruga no cenho. Uma bola veio rolando até seus pés e ele a chutou devagar para o dono, um menino magricela escoltando o irmão menor.

— Catorze – respondi com cuidado. – Por que está me encarando esquisito? Muitas pessoas hoje em dia são poliglotas.

— Nem o Papa domina tantas línguas. – Ele coçou a nuca e somente então eu percebi que era aquilo que eu vinha tentando tirar dele com os meus joguinhos; era um gesto tão fofo! – É que o livro caiu da sua bolsa quando joguei na cama da Leah e vi que está em francês.

Oui, mas atente-se ao fato de que além de eu ser mais velha que o Bom Velhinho...

— O Bom Velhinho é o Papai Noel – corrigiu.

— ...nós, os sanguessugas, mudamos de lugar constantemente, assim sendo é importante estarmos preparados. O livro que você viu se chama Le tour du monde en quatre-vingts jours, de Jules Verne. Ou, na tradução, A volta ao mundo em oitenta dias. Uma boa pedida para espíritos aventureiros.

Seth sorriu.

— Fale outra vez.

— O quê?

— Em francês. É muito bonito.

Neguei com a cabeça. É claro que ele achava bonito; francês é conhecida como a língua do amor e a favorita de conquistadores baratos.

— Por favor? – pediu. – Se falar, ganha um presente.

Suspirei com a barganha e parei de andar, esquadrinhando sua mente sem nenhum pudor.

Non, merci. Je sais ce qu'il est et je sais ce que cela signifie.

Ele torceu o nariz, parando também.

— Isso não parece com o que você disse agora há pouco.

— É porque não foi. – Enfiei a mão no bolso do short dele e tirei a pulseira trançada, um símbolo de compromisso equivalente a um anel de noivado para os quileutes, abanando-a como se fosse uma prova criminosa. – Eu disse: Não, obrigada. Eu sei o que o é e sei o que significa.

Seus braços voaram para o alto e ele grunhiu de frustração. Argh, que garota difícil!

— Você nem faz ideia – rebati para o pensamento. – Me recuso a exibir essa coleira no pulso para todos acharem que sou propriedade de alguém.

— Qual é, Anna! Jacob deu um desses a Renesmee e ninguém fez esse estardalhaço todo. E desde quando se importa com o que dizem?

— Não me importo, mas também não gosto de rótulos. E isso— indiquei a pulseira – com certeza vai me rotular.

— Está dizendo que não aceita ser “minha noiva”? – E cruzou os braços, divertido com a minha relutância. – É algo meio irônico vindo da garota que há uma hora atrás estava me provocando dentro de um carro fechado, não acha?

Fiquei sem fala. E vermelha. Não necessariamente nessa ordem.

— Relaxa, é brincadeira! – esclareceu ao ver um arco-íris de emoções atravessando meu rosto. – E você conhece minhas intenções. Sabe que não estou lhe presenteando com esse sentido. Isso — ele encaixou o cordão marfim em torno do meu pulso – simboliza a ligação. Somos amigos e amizade é uma ligação muito forte.

Senti meus músculos tensos se soltando aos poucos e acabei sorrindo torto.

— É linda – admiti a contragosto, analisando os padrões intrincados do que era um trabalho manual dele. – Mas saiba que essa brincadeira não vai sair de graça. Minha vingança será impiedosa.

— Até parece que eu não sei. Venha cá, estressadinha... – Ele me puxou para junto dele, fechando-me em seus braços e cheirando meu cabelo. – A pulseira foi a solução que encontrei para que não a importunassem mais. Verá que ninguém em La Push voltará a faltar com o respeito.

— Em outras palavras, você marcou território. – Respirei fundo, fingindo lamentar. – É uma pena. Parece que não verei a serenata de Stu Bennett debaixo da minha janela amanhã.

Seth me segurou pelos ombros para ler minha expressão.

— Diga que é uma piada.

Gesticulei com teatralidade, bem ao estilo caricato de um ilusionista.

— Vou lhe deixar esse mistério.

Imaginei que ele fosse resmungar ou algo do gênero, entretanto Seth sorriu largo, um tipo de sorriso que eu ainda não tinha visto curvar seus lábios. Era calmo e ao mesmo tempo esfuziante, tanto doce quanto apimentado, generoso e possessivo. Um sorriso apaixonado. Senti-o adentrar na floresta feroz do verde dos meus olhos e, por mais que eu estivesse tentando bloqueá-lo, pequenas curiosidades de súbito fervilharam por sua mente; como deveria ser sentir a maciez de meus lábios, se o beijo tinha o sabor de morango que meu hálito prenunciava, se a pele da clavícula era tão fina e sedosa quanto parecia... E, para o meu espanto e choque, devaneios nada cavalheirescos começaram a se embaralhar com essas especulações. Eu sem fôlego e entregue, suspirando seu nome entre um beijo e outro... Ele se enterrando entre meus cachos para mordiscar a curva tentadora do pescoço e depois trilhar um caminho a partir dali, cedendo à vontade violenta de me tocar toda vez que me via arrebitar o nariz ou sorrir com petulância, exatamente como ali, naquele instante...

— Primeiro, não sou petulante – protestei, interferindo antes que a criatividade dele ficasse específica demais. – Segundo, se controle, rapaz. Essa é uma praia de família.

— Desculpe. – Os olhos de obsidiana baixaram para a areia. – Você me desorienta.

— Não... Não é isso. É que tem alguém se aproximando. – Franzi a testa, lendo os novos pensamentos mais a fundo. – E é um amigo seu. Um colega de classe, ao que parece.

— O quê? Ah, diabo, essa não... – sobressaltou-se ao virar para o recém-chegado, porém rapidamente seus olhos lampejaram para os meus, esperançosos e triunfantes. – Espere! Está dizendo que se ele não estivesse aqui, nós podíamos...? – e levantou a sobrancelha, deixando a continuação sugestiva no ar.

— Bem... – Fiquei na ponta dos tênis, as mãos espalmadas no seu peito, até alcançar sua orelha com os lábios. Mal o toquei e Seth se arrepiou inteiro, parecendo mais quente que o normal. – Eu sei o que eu disse. E sei o que você entendeu. Qualquer coisa entre esses dois pontos é uma área nebulosa. – Afastei-me, tombando a cabeça de modo angelical. – Agora, já ouviu falar que a vingança é um belo de um sorvete?


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Notas finais do capítulo

Nem vou fazer promessa, que já vi que não rola!



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