Caso Miranda escrita por Caroline Marinho


Capítulo 9
Indomada


Notas iniciais do capítulo

Miranda ainda não sentia remorso. Ninguém aí ainda espera que ela sinta, né? Se tornou fria e imprevisível. Talvez alguém a ajude. Ou a ajude com o que ela quer...



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Calmaria. Palavra bonita, não?

Assim como algumas pessoas que gostam das palavras paraíso, alma e Deus, eu gosto de calmaria.

Porque é aquela palavra que causa uma sensação arrepiante quando sai da ponta da língua. É assim pra mim, não pra você que tá aí sentando só vendo o desenrolar da história.

Porque paraíso, alma, e Deus são palavras clichês. Mas não um clichê comum, é um baita clichê. Pois são as três palavras que saem da boca sem a gente ter ideia do que seja.

Não sei o que é calmaria, assim como você não sabe o que é alma, paraíso ou Deus. Vai, eu deixo você concordar, ninguém está vendo mesmo, não é?

Acontece que eu não conheci a calmaria. Já cheguei perto, vez ou outra. Mas nada satisfatório. É trágico não poder conhecer totalmente o sentido de uma palavra tão simples.

Sei o que é, mas não sei como se sente.

Assim como Deus, alma, paraíso e todas as suas fantasias medíocres.

A verdade é que o ser humano nunca se contenta com o que tem. Mas não acho que isso seja um defeito.

É isso que impulsiona a vida. É isso que faz a gente levantar da cama. Sem aquele famoso pensamento "minha vida tá uma merda", a gente não corria atrás de nada.

Afinal, quem quer ser mais feliz quando acha que já tá feliz o bastante?

A resposta é: qualquer um.

Quem quer mais dinheiro quando já tá rico? Ter as reservas na dispensa sempre cai bem, né?

Só que tem gente que tem que economizar pra não morrer de fome.

A felicidade é do mesmo jeitinho. Claro, já que dinheiro e felicidade são quase a mesma coisa. Nem venha tentar provar o contrário.

Você que conhece ambiguidade vai entender a piada: Eu não tenho dinheiro nenhum.

Agora, pra variar, estava presa dentro de um carro. Quando digo presa, digo com algemas e tudo. Mas eu não estava indo pra cadeia. Claro que não. Isso é Brasil. Santa até os dezoito graças a uma coisa linda chamada justiça. 

Justiça. Tá naquela lista de palavras super clichês, né?

Puseram essa porra nas minhas mãos quando tentei arranhar a vagabunda da Carla. Já devo ter dito que odeio simpatia forçada.

Ela parou de forçar assim que cuspi na cara dela.

- Avisa pra Cibelle que é pra deixar essa menina em observação lá por uma semana - ela disse no telefone, estava sentada no banco do passageiro - Claro que tem chances. A menina é perigosa...

- A menina tem nome. Bom ter respeito - Interrompi.

- Miranda precisa de cuidados... Especiais - silêncio - Sim, ela é. Eu sei, nunca tivemos uma assim. Mas temos que tentar ajudar. Ela é muito jovem pra desenvolver... - silêncio - O quê? Não, levá-la para lá está fora de cogitação. Ainda mais que nesse ponto nem temos permissão pra isso - silêncio - Isso seria uma possibilidade. Mas não dá pra ter certeza se ela faria algo do tipo - silêncio - Eu sei que Cibelle se preocupa com elas, mas... - silêncio - Tudo bem. Vamos esperar pra ver.

Não é porque não perguntava, que não ficaria curiosa pra saber do que se tratava. Eu queria saber não só pra onde eu iria em seguida, como também qual era o lugar em que "me levar estava fora de cogitação".

Provavelmente um lugar bem mais legal que a "casa para meninas que precisam de ajuda".

Meninas com pena de si mesmas. Eca.

Acontece que algo me pareceu claro. Eu precisava provar pra eles que eu era o que eles esperavam que eu fosse, assim seria considerada vítima de um transtorno psíquico e não uma criminosa. Assim não ia pro xadrez.

Pra quem não entendeu, ou eu provava que era uma psicopata e que precisava de "cuidados especiais" por não ter culpa moral pelo que fiz, ou era considerada sociopata e ia pra cadeia por ter matado duas mulheres a sangue frio por escolha própria.

Mesmo sabendo disso, não me considerava nenhum dos dois. A culpa era deles não minha.

Mas entre cela e manicômio, preferia manicômio.

Eu sei, você também preferiria.

Então preparei minha melhor encenação e comecei a balançar pra frente e para trás, forçando uns gemidos hora ou outra.

Carla, a vadia, olhou pelo retrovisor e perguntou:

- Está tudo bem?

Respondi.

- Estou com algemas, dentro de um carro, sem saber pra onde estou indo, ou o que fiz de errado. Não, querida, não está tudo bem.

Continuei balançando.

Porém, depois de 5 minutos...

- Chegamos - Carla avisou - Esse é o seu novo lar.

O lugar exalava tédio. Eu nem mesmo me lembro direito dos detalhes. Sei que as grades ajudavam na comparação à uma prisão e o lugar parecia velho.

O que aconteceu em seguida não foi muito relevante, e não vejo necessidade de descrever.

As meninas pareciam meigas e com aquele ar de "antes ninguém me amava", do tipo que eu não quereria por perto nem em sonho.

Essa era a impressão das que vieram me cumprimentar.

De outras no refeitório que se mantinham sentadas, três ou quatro me chamaram a atenção.

Eram as que não ligaram nem um pouco pra minha chegada. E naquele momento alguém que não prestasse atenção em mim se tornaria meu amigo fácil fácil, só por não ter questionamentos.

Me mostraram o dormitório que outras três garotas dividiriam comigo (apesar de eu recomendar que eu tivesse um quarto individual, visto que lacerações poderiam ser um efeito colateral matinal em algumas colegas de quarto).

Uma garota entrou no dormitório logo que a mulher saiu. E eu me senti um pouco mais aliviada. Ela era um rosto relevante na história. Porque ela ao menos olhou pra mim quando entrou no dormitório. Assim como fez quando entrei por aquela porta.

Aquela poderia ser minha amiga fácil fácil.

- Posso fazer uma pergunta? - questionei.

Ela demorou um pouco pra olhar pra mim em resposta, hesitante.

- Você gosta desse lugar? - perguntei.

- Sinceridade ou simpatia? - ela perguntou - Escolhe um e eu te respondo.

Me surpreendi com a resposta.

- ... Sinceridade - rebati.

- Então não. Eu não gosto desse lugar.

Ela tinha a pele morena, os cabelos enormes e cacheados, só que mais claros que o comum. Os olhos eram castanho claros como os cabelos e parecia ter uns dezesseis anos.

- Eu não gostei antes mesmo de chegar.

- Ah, meu bem. As meigas sempre mudam de ideia até experimentar o macarrão - ela respondeu, sem nem prestar muita atenção.

- Não gosto de macarrão.

Ela se virou novamente.

- Como veio parar aqui?

- Você é desse dormitório? - perguntei, evitando responder sua pergunta.

- Sim.

- Então é melhor que não saiba por que vim parar aqui.

Ela hesitou, mas depois perguntou:

- Por quê?

Eu forcei um meio sorriso.

- Meu bem, você não dormiria à noite.

- Não custa tentar.

- Matei uma vadia.

Ela abriu um enorme sorriso.

- Mal te conheço e já gostei de você. Meu nome é Kelly.

- O meu é Miranda.

Nos sentamos na cama mais alta da beliche e ela me contou tudo sobre a tal casa de horrores.

Contou sobre as fernandas, que eram chamadas assim lá dentro graças à garota mais velha do lugar, chamada Fernanda. Se tratava de um grupo de garotas "machões" lésbicas que, sem as supervisoras perceberem, mandavam no lugar. Acontece que por baixo das fernandas, estavam as marias (tais não sabemos por que eram chamadas assim).

As marias eram as novatas bonitas e submissas. As fernandas se faziam de amigas e ajudavam as coitadas a conhecerem o lugar. Quando já estavam familiarizadas, eram designadas a uma das fernandas. Favorzinho aqui, favorzinho ali, as marias cediam às fernandas e se tornavam mais do que só amigas.

Assim as fernandas tinham carne fresca.

As "meigas" eram lerdas demais pra se meter com as fernandas ou dar uma de 171. Então só mantinham a educação com as novatas (que chegavam a todo instante) pra que as fernandas não pudessem chegar perto. Mas sempre tinha a presa fraca.

Volta e meia tinha fernanda parecendo "meiga", maria se tornando fernanda e fernanda se tornando maria. Pessoas como eu ou Kelly eram chamadas de deslocadas. Elas simplesmente ignoravam.

As fernandas me intrigavam. De onde elas tiravam tanta influência?

Kelly também me contou sobre as duas colegas de quarto. Duas meigas que sempre ignoravam a presença dela, como todas as outras. Com tanto problema ali dentro elas só conseguiam pensar em televisão e revistas de fofoca.

Mídia. Sempre entretendo as retardadas.

Quando abriam a boca pra falar com Kelly, costumavam ser rudes. Normalmente por algo no quarto que estivesse fora do lugar, ou uma toalha molhada.

Eu, por outro lado, fui com a cara de Kelly. Não que eu gostasse dela. Ela era empolgada demais e isso me incomodava. Mas ela me parecia suportável. Talvez ela só sentisse falta de alguém pra conversar.

Quando a noite chegou, as outras duas meninas apareceram. Uma era loira e a outra ruiva, como eu, só que com o cabelo bem curtinho.

Ambas passaram por nós sem ligar. E eu adorei isso. Bem melhor que a simpatia forçada de antes.

As duas conversaram um pouco e depois foram dormir.

Depois de meia hora já deviam estar babando no beliche do lado. Eu e Kelly estávamos só observando.

Depois Kelly se aproximou e sussurrou:

- Qual das duas você mataria?

-Faria uma matar a outra. A que sobrasse eu cortava a garganta.

Ambas começamos a rir.

- Ah, mas são tantas opções - ela respondeu.

- Seria melhor matar uma meiga de outro quarto. A suspeita seria menor. Talvez sufocando com um travesseiro. Até que descobrissem que é assassinato nem haveriam mais provas.

Kelly ficou séria. Acho que até aquele ponto, ela achava que a história de assassinato fosse uma brincadeira, que eu tivesse inventado aquilo pra causar uma boa impressão.

Eu não queria causar boa impressão.

- Você matou mesmo uma vadia, né?

- Amarrei numa cadeira e cortei a garganta - dei de ombros - tava falando demais.

Ela se recompôs depois de uns segundos.

- O que ela te fez?

- Nada demais. Eu era a fim de um cara e ela traiu ele. Daí inventei pra ela que meu irmão era gostoso, ela foi lá em casa e eu matei o tédio. E a vadia, é claro.

Ela assentiu.

- Tá - silêncio - Se tal vadia voltasse à vida e viesse pra esse inferno, de que "classe" ela seria?

Pensei.

- Fernanda. Aquela ali pra subir de classe viraria até lésbica.

Voltamos às risadas.

Kelly no fim era agradável. Quase agradável. Ao menos continuou falando comigo mesmo sabendo que matei alguém. No lugar dela eu dormiria com uma faca debaixo do travesseiro.

- Que tal a gente dar uma passadinha eu outro quarto um dia desses? Tô com vontade de fazer presunto.

Adorei a expressão "fazer presunto". Tornava as pessoas ao nosso redor tão insignificantes... Eu adorava isso.

Me fazia me sentir superior. E Kelly ainda ajudava.

- É, talvez seja uma boa ideia - respondi


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Notas finais do capítulo

Finalmente um capítulo grande o/ Felizes agora, Leitores?? ENTÃO COMENTA, PORRA! KKKKKKKKKK Amo vocês :*



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