Caso Miranda escrita por Caroline Marinho


Capítulo 17
Controlada


Notas iniciais do capítulo

Miranda se fortaleceu. Aprendeu a exercitar o auto-controle e pensar duas vezes antes de agir. Talvez a pior coisa agora fosse a vida desafiando-a. Talvez ela ainda não estivesse pronta pra algumas coisas.



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Eu nunca esperei que essa parte da minha vida aconteceria. Nunca imaginei que manteria a calma. Nunca imaginei que passaria mais de uma semana sem perder a paciência.

Imagine eu, Miranda Lima, respirando e contando até três.

Não era eu, não era do meu feitio. Eu me controlava por conveniência.

Por sobrevivência.

Machucar alguém significaria o caminho certo ao manicômio.

Voltar ao manicômio seria a queda certa ao precipício.

Foi assim os meus dois primeiros meses depois de sair daquela prisão, após a visita ao meu pai: sorrindo quando convinha, falando em questão de necessidade e constantemente comendo pelas beiras.

Me tornei o que eu temia.

O primeiro mês foi um porre. Ter que ir ao colégio, ver gente que eu não gostava. Mas ali era o lugar em que eu não precisava sorrir e acenar. Ninguém ligaria se eu me enfurnasse no canto da sala e abaixasse a cabeça. Ninguém olharia pra mim. Essa era a parte agradável.

Em casa, no mês seguinte, as coisas se tornaram mais amenas. Percebi o quanto de Rebeca havia em mim.

Ela enojava as pessoas que a rodeavam, ela não estava satisfeita com o que via fora da janela. Mas não se manifestava. Não por medo, por estar acomodada ou por conveniência. E sim por esperteza. Ela sabia que nem tudo poderia ser do jeito dela. Não era pegar um cliente, cortar a garganta e limpar a faca.

Ambas precisávamos sobreviver.

Eu só tinha Rebeca. Ela não me parecia ter ninguém. Apesar de que, eu nunca sabia quase nada sobre ela. Ela também não se dava ao trabalho de me perguntar sobre mim.

Ambas estávamos extremamente confortáveis com isso. Ela não precisava saber do meu passado. Eu não precisava saber nada da vida dela.

Eu nunca questionava seu trabalho. Não me interessava o modo que ela pagava as contas. Que moral eu teria de dizer "largue teu trabalho e seja minha mãe"? Até porque achava interessante essa coisa de conviver com uma "mulher da vida".

É nessa hora que o leitor pensa: "Mas ela transa com homens desconhecidos".

Ora, e desde quando é problema meu com quem minha mãe transa?

Uma vez ou outra na semana víamos um filme. Nunca terminávamos porque ficávamos entediadas e ia uma pra cada lado.

Ela falava algumas vezes comigo sobre livros, notícias, política e história. Mas na maioria das vezes se mantinha calada. Não olhava muito pra mim, era sempre vaga e fria. Quando estava em casa arrumava o que fazer dentro do quarto, lia um livro, resolvia assuntos pendentes no telefone.

Eu a entendia porque eu era do mesmo jeito. Eu não queria olhar pra ela, não queria ter que puxar assunto. 

Ambas não necessitávamos daquele laço de mãe e filha, não precisávamos falar mais do que "passa a manteiga" no dia inteiro e convivíamos muito bem com isso.

Eu já me sentia confortável com as coisas do jeito que estavam. Fui capaz de me acomodar em um terreno irregular mais fácil do que em todas as terras planas que ocupei.

Mas o que me doeu foi aquela terça. Acho que nada nunca me doeu tanto. Nada no mundo inteiro.

Eu estava em casa, lia um livro, não me lembro qual. Ouvi a porta bater bruscamente, e Rebeca correu descalça até a porta do meu quarto.

- Miranda, por tudo que é mais sagrado, se esconde agora e cala a boca! - ela falou em um desespero e correu para o seu próprio quarto, e começou a abrir todas as gavetas da cômoda.

Não era típico de Rebeca o desespero, então me joguei dentro de uma das portas do closet sem questionar e me encolhi, evitando respirar muito rápido pra poder ouvir o que acontecia.

É a última vez, sua vagabunda - ouviu-se o grito abafado, a voz de um homem. Eu não era muito boa em identificar assim, mas imaginava que a vos vinha da sala.

Houve o estrondo de um tiro. 

Eu tremi. Parecia estúpido pensar isso naquele momento, mas de todas as loucuras da minha vida, nunca ouvira um tiro tão de perto.

Eu torcia com todas as forças que o tiro tivesse vindo de Rebeca. Torcia pra que ouvisse ela dizer "pode sair agora" ou "Miranda, ligue para o coveiro". 

Mas esperei por minutos, e o silêncio era perturbador.

Não sabia se havia passado minutos ou horas dentro daquele closet, respirando pela brecha da porta. Mas sei que tive medo. Essa é outra parte de mim que era inesperada. A parte do medo, a parte do desespero, a parte da insegurança. Eu me sentia despreparada pra tudo que estivesse ali fora.

No fundo sabia que aquilo ali era o fim do conforto.

Eu não tinha mais ninguém pra cuidar de mim.

Ninguém pra confiar.

A única pessoa a quem aprendi a amar, de verdade, mesmo meio torto, mesmo sem dizer muito, poderia estar jogada no chão do corredor naquele exato momento.

Eu só queria ouvir qualquer coisa, qualquer uma, que não fosse o silêncio naquela hora. Um telefone, um grito, um bater de porta, vidros quebrando, a TV ligada.

Mas aquele silêncio era perturbador. Aquele era o som da morte, afinal?

Impressionante como pela primeira vez em toda a jornada, a morte me assustava. 

Abri devagarinho a porta. Andei de fininho e devagar pelo quarto. Quando olhei para o corredor, meu medo se concretizou.

Lá estava o corpo inerte de Rebeca. Não gravei os detalhes. Não quis gravar. Sabia que não havia pulso. Sabia que não havia respiração. Qualquer outro detalhe pesaria.

Dali pra frente eu estava sozinha. Completamente sozinha.

Na mão de Rebeca havia um revólver. 

O homem tinha sido mais rápido que ela.

Peguei o revólver. 

Eu não entendia de armas. Nada mais do que via nos filmes, o que era muito pouco.

Não sabia se aquilo estava travado ou não. Eu só supunha que estava carregada, mas tinha receio de confirmar. Apenas pensei "talvez seja útil".

Pior do que lidar com uma mãe morta, seria lidar com uma mãe morta no manicômio.

Então mesmo em prantos e lágrimas, arrumei uma bolsa com minhas coisas.

Liguei para o número da assistente de Rebeca pelo seu telefone, tentando tirar alguma informação que me viesse a calhar.

- Querida, a ligação está péssima. Poderia me passar o nome completo do meu último cliente novamente? Preciso conferir umas coisas aqui.

Ela me respondeu. Não me lembro o nome completo, ou se seu tom era de desconfiança ou não.

Me lembro do nome Wagner. E do ódio. Do ódio mortal.

Eu havia anotado o nome em um papel e jogado dentro da bolsa.

Tranquei o apartamento e lutei pra que todas as lembranças ficassem lá. Mas já deu pra ver que foi em vão.

Deixei que a última lágrima caísse. Era a última vez que eu enfraqueceria. Jurei pra mim que nunca mais sentiria medo, desespero ou insegurança.

Por mim.

E por Rebeca.

A única coisa que me faltava era vingar sua morte. Eu iria até o inferno se preciso, procurar o desgraçado.


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Notas finais do capítulo

Desculpem a demora. De novo.