Sobre o Silêncio escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo u(m)nico




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A história é curta: ela sorriu e mudou tudo.


Fazia uns setenta graus no Rio de Janeiro quando eu peguei o ônibus para ir pra escola. Eram sete da manhã e a impressão geral da nação era de que devia ser proclamada alguma lei de que todos os ônibus fossem direto para a praia.

A verdade é que eu poderia estar indo para lá nesse exato momento, afinal, é só o maldito segundo dia de aula e pra alguém que pouco se importa com a escola o ano todo o começo das aulas parece tão excitante quanto assistir leilão de gado. Infelizmente minha mãe não concorda muito com minhas ideias revolucionárias e ficou danada da vida por eu ter matado aula ontem para dormir porque tava com uma puta ressaca daquelas, culpa da garrafa de tequila que rodou na minha mão umas quatro vezes na festa do final de semana de reclame bebadamente pelas férias terem acabado.

O ônibus que eu pego é o mesmo nesses últimos três anos e, por alguma benção divina, nunca está muito cheio. Eu me enfiei na primeira cadeira com janela disponível, já suando feito um porco dentro do maldito uniforme. Ninguém vai acreditar se eu disser, mas hoje de manhã confundi meu shampoo com o do pulguento cretino da minha mãe – que ela sempre deixa muito claro amar mais do que a mim ou meus irmãos, claro. O fato é que, quanto mais eu suava, mais fedia a cachorro molhado. Já tava me dando até náusea.

Meu bom humor a essa altura já estava mais baixo que a envergadura da ereção do meu avô. Só de pensar que eu ainda precisava passar as próximas cinco horas trancado numa sala sem ar condicionado aguentando alguma senhora mal comida numa ladainha insossa sobre logaritmos ou o que quer que fosse, meus punhos já fechavam e meu estômago embrulhava. E ainda tinham as estúpidas aulas de reforço em que eu precisava aparecer depois da aula, por ter tomado bomba em quase todas as matérias ano passado. Muitos professores admitiram para mim que eu devia ter nascido com o traseiro para a lua já que não sabiam explicar como alguém tão “imprudente” e “desleixado” podia ter sido aprovado nos últimos dois anos do ensino médio. A professora de português foi mais legal e disse que eu devia ter sido reprovado no maternal e levado pra ser criado por macacos.

Normalmente eu dou menos atenção pras pessoas que estão comigo no ônibus do que pro preço do aipim, mas não tinha como não perceber o monte de carne gorducho da cadeira da frente, agitando as mãos menores que uma tangerina para mim e dando risada. Aquelas risadas bem de bebê, toda fofura e arco-íris. Ele fazia a festa, vez ou outra tentando se jogar do seu banco pro meu, com toda a farra de alguém que ainda nem tem um dente na boca ou um cacho de cabelo na cabeça.

Eu meio que sorri, sem querer. Não tem quem consiga ficar fazendo cara amarrada olhando pra uma bolinha de carne cor-de-rosa de sorriso banguela, isso já deve ser fato comprovado cientificamente. Mais alguns gritinhos de arco-íris puro e batidas dos punhos dele no banco e eu vi que a algazarra toda não era pra mim, mas pra pessoa do meu lado. Era uma garota, fazendo os dedos de orelhas e imitando um coelho com o nariz franzido e os dentes para fora. Era a coisa mais ridícula e absurdamente idiota que eu já vi alguém fazer em público. Ela fez um bico enorme e ficou vesga, o bebê quase foi à loucura. Eu mordi a bochecha e virei pra janela. Ela revirou os olhos e arreganhou a boca, imitando um camelo comendo macarrão. Ri em uma cuspida, sem conseguir mais segurar, e o bebê respondeu dando um gritinho mais alto ainda e agitando as mãozinhas para mim, contente por ter mais alguém pra fazer palhaçada. Por alguma sorte ela não me ouviu, imagino, já que começou a imitar uma galinha zangada. Eu virei totalmente pra janela, tentando disfarçar que eu já não conseguia não rir. Pensei em progressão aritmética. Ela imitou um elefante usando óculos, do jeito mais idiota que pode existir. Cuspi na janela e ri mais ainda.

Dois pontos depois a mulher com o bebê foi se levantar e a garota ao meu lado ficou completamente quieta. A mulher olhou sem entender o seu filho quase se jogar para a garota do banco de trás, oferecendo-se todo dengoso com os braços esticados e as mãos pequenas com dedinhos parecendo miniaturas de salsichas abrindo e fechando. Eu vi a garota apertar a boca para não rir e logo que a mulher e o bebê passaram ela se deixou levar, gargalhando sozinha sobre ela mesma. A risada dela não parecia nada que eu já tivesse ouvido antes. Eu juro que deixava no chinelo a do bebê. Era alta e extremamente gostosa de se ouvir. Se tivesse forma, seria um lamborghini vermelho reluzente com pneus estalando para serem usados e o cheiro de couro dos bancos e volante.

O seu riso foi silenciando aos poucos e terminou em um sorriso adorável que ela, egoísta das egoístas, dava para si mesma, com o rosto abaixado para ninguém ver e que eu espiava como um criminoso. Me ocorreu que deviam pagar alguém para fazê-la sorrir todos os dias e fiquei pensando em como ninguém que fizesse parte da sua vida tinha tido essa ideia ainda.

A garota, percebi um pouco depois, estava com o mesmo uniforme que o meu, escondido por um casaco preto que causava os fios de cabelo grudados na sua testa pelo suor. Não me lembro de tê-la visto antes mas isso é um detalhe desnecessário, ela inteira tinha cara de carne nova. Só de olhar o rosto sem maquiagem e o cabelo preso dava pra dizer: é uma das primeiranistas. Por algum motivo lembrei que fiquei com uma dessas na festa de domingo, que me deixou um chupão no pescoço digno de ser tratado por médico, e pensei um pouco comigo se não a teria visto por lá. Depois de um tempo só essa ideia já me pareceu absurda. A garota do meu lado, rindo sozinha da sua bobice, de fones de ouvido e abraçada com um caderno capa dura, não fazia o tipo das que iam nas mesmas festas que eu. O que é uma pena. É muito mais fácil encontrar elas já meio loucas na madrugada e usar pra fazer uma bagunça. O pensamento ficou rondando minha cabeça, com aquela sensação de indigestão gramatical, parecendo errado. Não, a garota do meu lado não parecia nenhum pouco o tipo que enchia a cara e saia com caras como eu. Ela parecia alguém perfeito pra se passar o dia inteiro sentado no sofá e comendo brigadeiro, parecia tanto que deveria colocar isso no seu currículo. Acho que se ela me percebesse do seu lado, fedendo a cachorro e com cara de bandido por causa da cabeça raspada no alistamento do exército, ia se assustar e rezar o pai nosso.

A escola apareceu no final da rua e ela levantou para descer, eu a segui. Enquanto ela andava percebi, meio desnorteado, que a garota tinha cheiro de iogurte de morango. Eu sei que parece idiota alguém ter cheiro de comida e nem estava com fome nem nada parecido pra ficar imaginando. Ela realmente tinha esse cheiro gostoso de iogurte, como se a sua pele fosse feita para ser bebida. Era tão bom que dava vontade de pedir que ela ficasse, só pra continuar sentindo. Ela desceu mesmo assim, ignorando o meu fungar prazeroso, e eu também tive que ir.

Cara, eu odeio a merda da escola. De coração. Não rola um sentimento melhor entre eu e a educação básica que o de obrigação. Dormi por quase os dois tempos de matemática inteiros já que embora eu seja obrigado a estar aqui não sou obrigado a estar acordado – provavelmente sou, mas a ideia continua a mesma. Durante o intervalo umas primeiranistas só sorriso cheio de brilho labial e saias curtas vieram dar um oi, a boca de ferro que marcou meu pescoço entre elas, como acontece todos os anos. As meninas mais novas olham os terceiranistas com uma admiração tão grande que parece que a gente ganhou o último Big Brother ou alguma merda do tipo. Eu até gosto, exceto quando elas começam a encher o saco. A garota do ônibus não estava entre as que vieram fazer excursão. Pensei em perguntar por ela para alguma das meninas, mas comecei a me achar muito babaca por pensar tanto em alguém que eu só vi uma vez e decidi ficar quieto

.

Eu a encontrei no ônibus no dia seguinte. Foi a primeira coisa que eu vi, depois do cara em um macacão cinza que fedia a fruta podre e xixi – como alguém pode feder às sete da manhã??? – e da senhora de óculos escuro roncando com o rosto na janela e a boca aberta o suficiente pra fazer uma obturação no molar. Eu já tinha decidido que era completa imbecilidade minha dar tanta atenção a alguém do ônibus quando achei a sua cabeleira ruiva aquecida sob o sol de oitenta graus matutino e caí de novo no seu encanto.

Sentei no banco alto de trás para poder observar sem ser percebido. Tenho consciência de que a coisa soa como uma perseguição bizarra, mas não consigo evitar. Ela não é exatamente ruiva, dá pra ver daqui. Seu cabelo é como cobre derretido e escorre pelas costas em um rabo de cavalo baixo e pelo rosto em uma franja torta que, do jeito que ela fica abaixada, faz meia cortina sobre o seus olhos. Não sinto o cheiro de iogurte hoje, mas em compensação a luz que vem pela janela faz a sua cabeça brilhar da cor de cerejas maduras, o que me parece tão fascinante quanto. Consigo pegar de relance o perfil dela quando se vira para olhar pela janela e vejo os olhos dela, perfeitamente arredondados e amarelos como duas moedas de ouro. O seu nariz tem a ponta arrebitada, como um escorrega de criança e está tão cor-de-rosa quanto as maçãs do rosto, por causa do calor. Não dá pra olhar tanto quanto eu queria já que ela, a egoísta-mor das egoístas, vira de volta e esconde todos os segredos dos seus traços de mim.

Eu vejo mais ou menos ela mexer na mochila e tirar de dentro um desses blocos amarelos de folhas que grudam, ou post-its, tanto faz. Escreve em um. Ela levanta um pouco antes da escola, com o papel na mão, vai até no banco da frente, fingindo olhar pela janela pra saber onde está e desce. Eu esperei até ela descer para poder ir casualmente na frente do ônibus e fazer o mesmo, na melhor atuação que eu consegui fazer, que já não era grandes coisas. Vi o post-it amarelo grudado no banco ao lado do homem fedorento de macacão cinza, escrito “Rosas são vermelhas, violetas são azuis, tente passar um pouco de desodorante – com amor, resto do ônibus”. Eu dei aquela cuspida escrota involuntária e ri. Por coincidência do destino o cara de macacão também tinha acabado de ler e talvez não tenha achado tanta graça assim já que me olhou com a fúria de mil atendentes do mc donalds pra quem pediram um big bob e começou a falar sobre como eu era um moleque insolente e ele cheirava do jeito que um homem de verdade devia cheirar. Cheguei meio atrasado na escola esse dia.

Durante a aula de história eu penso em como de ser a vida da garota do banco da frente. Ela deve ser essencialmente o oposto de mim. Eu imagino que durma em um quarto cor-de-rosa. Que é chamada de princesa pelo pai e ganha um beijo dele todas as manhãs, antes que ele saia para trabalhar de terno e gravata. A mãe dela deve ser do tipo que faz café-da-manhã e pergunta se tem dever de casa e avisa sempre pra ficar longe de garotos do meu tipo. Ela deve ser acostumada a ganhar tudo o que quer, não por ser mimada, mas porque dar a ela qualquer coisa que peça parece ser a coisa mais natural a se fazer. Deve ser a preferida dos professores. Deve ter pela vida toda despertado em muitos garotos essa vontade de ficar com ela um dia inteiro assistindo Disney, e beijar as suas omoplatas, e dividir com ela um pacote de nuggets, deixando os maiores pra ela, sem nem perceber. Imagino quantos tiveram a coragem de se aproximar dela e entrar na sua atmosfera doce, tendo todo cuidado para não espantá-la, como se fosse um pássaro raro e arredio.

Olhando para ela no ônibus no dia seguinte, mexendo os lábios que pareciam pintados por giz de cera rosa claro para letras silenciosas e balançando a cabeça com fios dos fones-de-ouvido pulando de um lado pro outro, senti uma vontade incontrolável de socar todos os caras que já tivessem encostado na sua boca antes. Eu nunca fui do tipo ciumento. Caguei e andei pra todas as namoradas que já passaram pela minha vida e por isso era que elas mais se irritavam e me enchiam o saco. Mas tinha alguma coisa diferente. Eu não falei da garota do ônibus pros moleques da escola, não perguntei sobre ela pra boca de ferro que continuava aparecendo lá na sala e me chamava de “Rafinha” fazendo biquinho. Em parte por ter total certeza de que iam achar que eu estava virando um obcecado esquisito e que meus pensamentos era completamente estúpidos. Mas a verdade maior é eu queria guardar a garota do ônibus só pra mim.

Eu já tinha pensado em ir falar com ela, penso nisso todos os dias. Na verdade, penso em porquê eu não tenho a mínima coragem de levantar do meu banco e ir dar oi. Afundo no banco, zangado. É ridículo. Eu desenrolo garotas há mais tempo que as Rouges dançam ragatanga. Só que de alguma forma parece ser quase pecado levantar daqui e ir incomodar o silêncio dela. E ela está sempre com esses fones-de-ouvido, todo mundo odeia ser incomodado quando está ouvindo música. Faço um acordo comigo mesmo de que quando a encontrar sem os malditos fones, vou falar com ela. Até lá, tudo bem ficar só observando.


Descobri que espalhar recados pelo mundo é uma mania bonita dela. Às vezes ela escreve para alguém no ônibus e deixa o papel por perto, antes de sair. Às vezes deixa uma notinha colada na janela. “Hakuna Matata”, “Não pise na grama e nem nos outros”, “Você é feliz ou finge ser?”, “De bobo, tenha só a cara. Ah... e o coração”. Uma vez escreveu “Receita do dia: 1.Coma coxinha 2. Sorria!” e colou no banco ao lado de uma garota de no máximo treze anos, vestida de preto da cabeça aos pés feito um urubu e com cara de enterro. Escreveu “Eles saberiam a cor dos seus olhos se você não andasse mostrando o útero” para uma loira platinada que entrou de minissaia jeans e que eu mal notei que tinha olhos. E “Obedeça a mamãe, você foi adotado” na mochila de um menino com meias brancas na canela e pés de chuteira que chorava fazendo birra enquanto a mãe ignorava e mexia no celular. Ela sempre deixa a sua arte e sai de perto mordendo um sorriso na boca de giz de cera.

Os melhores dias são quando o ônibus está meio cheio e posso dar meu lugar para alguém e ficar em pé. Consigo vê-la melhor assim. Vejo-a desenhar no seu caderno, transformando uma sóbria folha branca em um pássaro carregando metade de um coração no bico. Ou em uma sereia tomando café. Ou rabisca em uma nota um cachorro com tarja de censura no peito e escreve em cima “seja sexy sem ser vulgar”, e deixa-a pregada no assento ao seu lado. Eu gosto de imaginar a cara das pessoas quando encontram as notas. O menino da chuteira chorou. 

Às vezes ela lê, livros grossos com os nomes do Machado de Assis ou José de Alencar, escrevendo qualquer coisa de lápis nos cantos das páginas ou no rodapé, como se quisesse se sentir parte do autor. Às vezes ela canta, sem som nenhum e ao mesmo tempo gritando tão alto que fica sem fôlego e de rosto vermelho. Às vezes ela dorme, e se encosta sem querer na pessoa do lado, como se fosse um velho amigo. Quando chove, ela corre pela rua, sem capuz nem guarda-chuva, pulando poças d'água - já vi ela levar um tombo mais de duas vezes e não deu pra não rir. Quase todos os dias, para minha satisfação, ela sorri. E eu, idiota, quase sem perceber, sorrio junto, e levo comigo o sorriso dela até a hora de dormir.

Eu a encontrei na escola outro dia. Aconteceria mais cedo ou mais tarde e não é como se eu não estivesse discretamente procurando esse tempo todo, dando espichadas no pescoço sempre que passava pelo corredor e olhando dentro de todas as salas pelas quais passava. Eu a encontrei cheia de sorrisos, sentada em um degrau, com algum moleque imbecil só cabeção e ossos falando qualquer coisa e gesticulando muito do lado. Algum idiota pé-rapado cabeludo demais. Babaca demais. Que tanto ele podia querer com ela? Fiquei olhando mais tempo do que devia, segurando a vontade de ir lá dar uma mão fechada no pulmão do moleque e mandar ficar longe. Demorou até cair a ficha de que ela não existia só pra mim e podia ter a vida que quisesse, com o babaca que quisesse. Fechei a cara. Fiquei tão puto comigo mesmo que até prestei atenção na maldita aula sobre logaritmos.

Decidi que já tinha passado bastante tempo brincando de idiota apaixonado. Tentei dormir no ônibus ou qualquer coisa que me fizesse não prestar mais atenção nela. Mas ela, cretina das cretinas, sempre me acordava quando a escola estava perto, dando um beliscão no meu braço e abrindo um sorriso silencioso entre os fones-de-ouvido, para sumir em seguida. E todas as noites eu ficava pensando se por acaso aquele garoto do cabeção seria o seu namorado. Se ele teve a honra de virar um dos desenhos no seu caderno, um pensamento frequente na sua cabeça, o motivo dela sorrir antes de dormir. Se ele passava a mão pelo rosto dela, dizendo o quanto ela era bonita e a fazendo corar. Se ele sorria depois de cada beijo dado, como o bastardo sortudo que era. Pensava e socava o travesseiro, furioso. Na terceira noite, voou algodão pra todo lado.

Em alguma quinta-feira, depois da aula sobre células troncos e a ovelha Dolly ou qualquer porcaria dessas, as primeiranistas de excursão apareceram lá na sala, como era de costume. A boca de ferro – eu nunca lembro o nome dela – veio dando beijinho no rosto, deixando minha bochecha grudenta de batom rosa chiclete. Ela é sempre a que mais fala, com a voz cheia de manha, e eu achava que não combinavam muito o seu crucifixo pendurado no decote da blusa desabotoada, menos ainda o anel de castidade com símbolo do infinito que ela e as amigas mostravam pra todo mundo, fingindo risinhos inocentes, como se fosse um desafio. Eu fiquei com ela mais umas duas vezes, depois de encher demais a cara com os moleques e ela chegar beijando meu pescoço e me chamando de Rafiiinha. Acontece.

Começou então duas conversas paralelas, alguns garotos enchendo de atenção as meninas que faziam charminho e o resto dos caras arrumando para comprar algumas caixas de cerveja pro final de semana. Eu estava no segundo caso, mas sem querer peguei uma frase avulsa da outra conversa, saída da boca de ferro: “Ai gente, cês viram? O caderno da esquisitinha foi parar no vaso. Foi milagre divino, só pode”, seguida de várias risadinhas. Inevitavelmente meu pensamento foi para a garota do ônibus, rabiscando o sombreado de um peixe de cartola, tão concentrada que franzia o seu nariz arrebitado. Meus nervos queimaram.

– Desenrola a história – Pedi, e boca de ferro pareceu muito contente por receber a minha atenção. Ela se empertigou toda, com a mão na cintura, antes de falar:

– Pegaram o caderno da mina esquisita da minha turma e ele apareceu hoje entupindo o banheiro das meninas. Nossa, eu até ia consolar ela, mas a garota é super do capeta, não fala com ninguém, só senta lá perto da janela e fica com a cara de bunda morta dela. Acho que fica fazendo macumba pra todo mundo! – falou, arregalando seus olhos cheios de rímel preto.

– Já pegaram o babaca que fez isso?

As amigas primeiranistas deram uma risadinha e boca de ferro olhou pra elas com um sorriso afetado.

– Ih, relaxa, amor, a esquisitinha levava aquele troço pra todo lado, ela é tão bizarra que deve ter deixado cair enquanto fazia xixi. – As outras primeiranistas riram alto e boca de ferro fingiu censurá-las - Tadiiiinha, gente!

– Quem é a garota? – perguntei, fingindo que todos os músculos do meu corpo não se contraíam de raiva e urgência de esganar Boca de Ferro até a sua risadinha afetada morrer de vez dentro da garganta.

– Acho que é Lílian – disse uma primeiranista bronzeada, bagunçando o cabelo liso pra um lado.

Lílian. Combinava com ela.

– Tem nome não. – interrompeu Boca de Ferro, com o sorriso que precedia uma maldade educada. – Na umbanda dela ainda não inventaram essas coisas. É só chamar esquisitinha e ela olha.

As outras meninas riram. Eu saí de perto antes que o sangue do meu corpo fervesse até explodir.

Me despedi dos moleques e matei as aulas de reforço pra poder sair cedo da escola. Eu fiquei esperando no ponto de ônibus até que Lílian – eu até gostei do seu nome - aparecesse. Ela andava com os olhos baixos e com um pesar tão grande no rosto que parecia prestes a chorar. Meu estômago automaticamente fez um embrulho gelado ao passo que meu sangue ferveu de sede de socar as pessoas que lhe fizeram mal. A sua tristeza tinha algo de errado. É idiotice, mas parecia pecado. Por mais idiotice ainda, eu não consegui falar com ela. Ao invés disso, passei o tempo todo vendo-a encostada na janela do ônibus, no seu silêncio sofrido, com os fones pendurados caindo pelo seu corpo. Sentia dentro de mim, muito além de nos meus intestinos ou coisa parecida, que era meu dever fazer de tudo pra consolá-la, mas também me sentia completamente inútil e incapaz disso.

Continuei no ônibus quando ela desceu. Não sei se ela me viu. Desci um pouco depois, onde eu sabia que tinha uma livraria enorme, cercada por lanchonetes com gordura nos azulejos e cheia de pessoas na calçada oferecendo exame de vista de graça. Procurei por algum caderno que me parecesse digno de ser desenhado e amado pela garota que eu conhecia sem conhecer e acabei escolhendo um capa dura com o desenho de pássaros da cor do céu fugindo de uma gaiola quebrada. No caminho pro caixa vi um desses estandes de promoção cheio de livros de bolso por quinze reais, e entre eles um que eu já tinha a visto ler de manhã no ônibus. Meio hesitante, peguei Dom Casmurro e levei comigo.

Meu irmão mais novo achou minhas compras novas – um caderno de mulherzinha e um livro sem figuras – e fez questão de anunciar pro resto da casa que eu estava virando uma bichinha. Um dos meus irmãos mais velho perguntou se eu estava tentando comer a professora de português com aquilo. Meu pai só fungou e abriu outra cerveja. Minha mãe achou tão estranho que eu entrasse em casa com um livro que chamou um padre. Ela tentou disfarçar dizendo que fazia tempo que não conversava com seu Elmar e que o chamou pra jantar. Eu fingi que não vi quando ele jogou água benta no meu quarto.

Durante o intervalo no dia seguinte eu dei meu jeito de fugir de todo mundo que eu conhecia e subir as escadas o mais furtivo que eu pude até a sala da Boca de Ferro e da Garota do Ônibus, levando na memória a imagem de partir o coração dela mais cedo, fazendo círculos flácidos na janela do ônibus, com olhos magoados vertendo ouro em tristeza. Me ocorreu que eu não fazia ideia de onde Lílian devia se sentar, mas não foi muito difícil achar a cadeira dela. Uma única cadeira, ao lado da janela, tinha o tampo da mesa completamente rabiscado, uma confusão enorme de coelhos, barcos e monstros marinhos com “Veni, vidi, vici” escrito pelo meio. Deixei o caderno alí e saí parecendo um criminoso mas me sentindo bobo feito um anjo-da-guarda.

Ela estava sorrindo novamente no dia seguinte e essa foi a melhor recompensa que eu poderia receber. Eu podia ver suas bochechas rosadas, sorrindo agradecidas para o mundo inteiro, enquanto os fones balançavam saindo da sua cabeça, o caderno novo abraçado ao seu corpo como se fosse um filhote. Depois de um tempo cheguei a vê-la tirar o bloco de notinhas amarelas da mochila e escrever alguma coisa, olhando ao redor, e a guardou consigo. A escola foi chegando e eu vi a notinha ser amassada e cair no chão desprezada quando ela levantou pra sair, coisa que ela nunca, nunca fez antes. Eu quase me senti mal pela nota esquecida. Estava atrás de Lílian, pronto para sair quando me veio uma necessidade mórbida: eu precisava saber o que diabos estava na notinha. Tudo o que está escrito merece ser lido, e ponto! Em um movimento brusco e pouco pensado eu voltei para pegá-la, mas acabei batendo de frente com uma senhora de laço prendendo o cabelo crespo que levava mil sacolas de feira e deixou todas caírem pelo chão.

– Ave Maria cheia de Graça! – A senhora gritou, ao que dúzias de laranjas, limões e toda horticultura brasileira rolavam para os quatro cantos do ônibus. E apressou-se, puxando os sacos vazios– Meu santo, minha feira todinha! Olha o tomate! Pega, menino, pega!

Antes dela falar eu já estava abaixado no chão, como alguns outros passageiros, catando tudo o que eu podia e que rolava para a liberdade. Na pressa, minha mão agarrou e puxou outra mão ao invés de um dos maracujás enrugados e quando vi, eu estava segurando Lílian.

Ela olhou para mim, de olhos arregalados, talvez pelo puxão bruto que eu tinha lhe dado. Carregava uns treze limões no outro braço, deixando escapar um ou outro desajeitadamente, então me olhou e todos limões fugiram ao mesmo tempo, rolando pro outro lado do ônibus. Na surpresa também deixei cair qualquer coisa que eu segurava e a senhora atrás de mim gritou, desesperada:

– Misericórdia, menino, isso é melão, não é bola de futebol! Isso não quica não!

Eu não sabia exatamente porquê, mas mal conseguia me mexer. Os olhos de moeda da garota do ônibus me encaravam, curiosos e atentos como os de um gato, e percebi que eu podia me ver inteiro refletido neles. Eu cheguei a dizer alguma coisa, lutando para reprimir um sorriso inconveniente e escancarado que tentava me arreganhar as bochechas. Acho que foi “ei”. Nem “oi”, só um maldito “ei”. Lílian balançou a cabeça devagar e apontou com um gesto rápido seus fones de ouvido. Atrás de mim, a senhora da feira gritava, esganiçada:

– Namora depois, menino, pega o tomate primeiro! Olha aí o pepino rolando. Alguém segura o esse pepino, pelo amor de Deus! Não moço, vai pisar no mamão! Olha lá, pisou no mamão! Piedade, Senhor!!!

Voltei a mim e recomecei a agarrar o máximo de coisas que podia alcançar e enfiá-las o mais depressa possível nos sacos de plástico. A senhora agradeceu pela ajuda, mais calma mas ainda agarrada ao seu rosário pra conseguir uma paz. Quando olhei novamente, Lílian já não estava mais por perto. Só quando eu já entrava pelos portões da escola percebi, idiota, que esqueci de pegar o seu bilhete amassado.

O calor do verão carioca, por alguma misericórdia, começou a ir embora, trazendo sinais frescos do outono. Eu não falei com Lílian depois do dia da feira, como já dá pra imaginar. Embora agora perguntasse mais sobre ela pros outros, do modo mais discreto que eu conseguia. Como eu suspeitava, Lílian realmente era uma das melhores da sala. Eu ainda a via todos os dias conversando com seu amigo cabeção, só que agora ela tinha o cuidado de deixar o seu caderno guardado, e eu, muito idiota, chegava a me sentir meio mal por ela não carregar uma parte minha consigo.

Eu decidi que ia falar com ela. Já estava na hora de tomar uma atitude de homem. Mas, não agora. Tentei dormir menos nas salas e me esforçar mais, não queria que a garota me considerasse um jumento como a maioria da escola, da minha família e do exército da salvação fazia. Tratei de manter alguma distância de Beatriz – ou Boca de Ferro, para os íntimos, e sim, eu perguntei o nome dela pros meus amigos. Principalmente porque queria ter algo sobre o que falar que não fosse “oi, venho te perseguindo desde o início do ano, beleza?”, fiz um trato com Nicolas, meu irmão mais novo, pra que ele me ajudasse a roubar os livros que meu irmão Diogo deixava trancado no quarto. Não era muito difícil, já que o Diogo passa a maior parte da semana dormindo na república da faculdade, mas ele usa umas trancas bizarras e Nicolas sabe ser discreto e sorrateiro como um rato. Em troca, tive que prometer ensinar o moleque a lutar, porque ele estava a fim de arrumar briga com uns garotos abusados da rua e aguentar ele indo comigo pra escola de ônibus, falando demais sobre cada diabo de coisa que via, como se tivesse cinco anos e não doze.

A cada livro grosso que vinha parar na minha mão eu acabava me descobrindo acordado até tarde, ansioso para saber o final. Eu diria que Lílian tinha olhos de ressaca, mas não é a verdade. Lílian invoca algo muito mais sereno e cativante que uma ressaca cheia de destroços. Lílian tem olhos de oceano, capazes de tragar qualquer um de bom grado para sua imensidão.

Meu objetivo parecia cada vez mais completo e minha ansiedade de mandar o desconhecido Cabeção vazar, com todo o direito que eu tinha, era cada vez maior. Os dias eram infinitamente agradáveis, apesar de passar as tardes levando chutes mal posicionados de Nicolas e de ter que prestar atenção em algo que dona Cunha falava e não na enorme verruga pregada ao seu olho como um percevejo parasita. Tudo estava bem. Até que eu a vi chorar.

Aconteceu tão de repente quanto a chuva torrencial de fim de verão. Eu entrei no ônibus, sacudindo água para longe do meu rosto como um cachorro, e vi. Lílian, pálida feito um fantasma, tremia discretamente, sem som e sem consolo, como se não quisesse perturbar o resto do mundo com o seu pesar. Pelos seus olhos, todo o oceano escorria.

Eu podia sentir cada um de seus soluços frágeis e constrangidos na minha própria pele, os que ela tentava abafar na manga do casaco. Toda a compaixão que eu tinha por ela não demorou a ser substituída por ódio. Eu mal percebi o que estava fazendo até já ter o braço magro de Boca de Ferro, ou Beatriz, dane-se, sendo esmagado entre meus dedos e rosnar, furioso:

– O que você fez com ela dessa vez?

– Aiiiii! – Beatriz ralhou, tentando se livrar do meu aperto. Olhou ao redor procurando socorro de alguma amiga, mas todas elas já tinham ido embora porque ela mesmo as mandara dar um pouco de privacidade com um sorrisinho insinuante no rosto quando me viu chegar. – Rafinhaaa, isso dói!

Soltei o braço dela porque pressenti que se continuasse iria quebrá-lo como o de uma boneca de gesso. Beatriz massageou a mancha vermelha na pele, e perguntou, já lacrimosa:

– Credo, Rafinha, que aconteceu com você?

– Responde. O que você fez com ela agora? – Perguntei, quase rangendo os dentes de tanto ódio. Eu sabia, tanto por instinto quanto pelos outros, que era Boca de Ferro quem mais perturbava Lílian e chegava a ter quase certeza que foi ela quem tinha lhe roubado o caderno e dado descarga.

– Eu não sei do que você tá falando – ela disse, meio vacilante.

Eu bati com o punho o mais forte que podia na parede, para não mete-lo na cara dela. Beatriz deu um gritinho assustado.

– Você sabe, sim. A garota da sua sala. A garota que você roubou e fez chorar. O que você fez com ela?

Lágrimas grossas transbordaram para os olhos dela, que já não tentava mais parecer inocente.

– Sempre a merda da esquisitinha! – Ela gritou, e o palavrão pareceu sujo saído do seu rosto tão bonito. – Eu sabia que você tinha alguma coisa com ela, mas não quis acreditar! Não faz o menor sentido! Por que logo ela? Por que não eu, que sou perfeita?!

Seu choro quente de ódio escorria entre a maquiagem bem feita, abrindo rastros no pó e levando junto o rímel. Eu quase senti pena.

– Perfeita? Você é linda mas é ruim como uma fruta podre – eu disse, controlado, o que fez os olhos dela se arregalarem.

– Você não faz ideia no que tá se metendo, não é? – Ela soltou uma risada seca. – Você não sabe por que a esquisitinha não fala com ninguém, sabe? A Lílian é MUDA, seu IMBECIL! Ela é a PORRA de uma ABERRAÇÃO e vai ser aberração PRA VIDA TODA! Ela NUNCA vai poder dizer NADA pra você!! A garganta dela não passa de UM MONTE DE MERDA, MAIOR DO QUE VOCÊ!!

O choque foi como água fria jogada dentro do meu cérebro. Muda. Tanta coisa fazia sentido. O silêncio, os fones de ouvido, as notas com tudo o que ela não podia dizer. Muda.

O sangue fervente correndo pelas minhas veias falou mais alto que a minha confusão e eu agarrei Beatriz Boca de Ferro pelo pescoço, com tanto desprezo que mesmo meu olhar devia ser capaz de machucar.

– Ela ainda é uma pessoa muito melhor que você. –Sussurrei, da forma mais contida que eu pude, apertando mais – E se encostar mais uma dessas tuas unhas falsas na Lílian, eu mesmo vou fazer questão de quebrar cada um dos teus ossinhos de galinha.

Soltei. Beatriz estremeceu, levando as mãos à garganta, a cara uma confusão de pele vermelha pela raiva e pela falta de ar e maquiagem escorrida. Ela gritou, depois de se assegurar com as pontas dos dedos que ainda tinha tudo no lugar.

– Tudo bem! Vai lá com a sua aberraçãozinha então! – E chorou mais ainda. – Depois você vai me procurar e eu vou cagar pra você, ouviu, Rafael? CAGAR!!

Ela ainda gritou muita coisa pras minhas costas enquanto eu ia embora. Não fiz questão de ouvir.

Por mais que eu tentasse, o fantasma de Boca de Ferro gritando sobre Lílian não saiu da minha cabeça nem por meio segundo. Muda. Lílian era muda. Irremediavelmente, para todo o sempre, provavelmente desde que nasceu. “Ela nunca vai poder dizer nada pra você”, Boca de Ferro gritava ensandecida, durante a aula de geografia. “Ela vai ser uma aberração pra vida TODA”, ela continuava, enquanto eu virava de um lado para o outro na cama. Não consegui dormir de forma alguma, então, lá pras três horas, liguei a luz do quarto e peguei alguma coisa para rabiscar.

Eu a vi no dia seguinte. Lílian, a garota do ônibus, mais serena que no dia anterior, com os fones de ouvido se escondendo entre o seu cabelo. Ela olhava para fora da janela e fazia caracóis no vidro embaçado. Eu sentei do seu lado.

Não adiantava chamar, eu nunca ouviria Lílian dizer “oi” para mim. Nem “bom dia”, nem me chamar de babaca, dando um sorriso. Lílian nunca seria igual às outras garotas.

Lílian não era igual às outras garotas.

Respirei fundo e abri a mochila. Tirei de dentro um bloco de post-its azuis, que eu achei na livraria quando comprei um caderno para ela e deixei Dom Casmurro me mostrar os seus olhos de oceano.

“Ei”

Lílian tirou os olhos dos caracóis transparentes, olhou para a nota azul e para mim, de olhos arregalados. Eu arrumei os post-its nas minhas mãos e colei um, depois outro, tudo o que eu tinha escrito na noite anterior.

“Eu te vi chorar ontem”

“Na verdade, eu tenho te visto já faz um tempo”

“Não precisa chamar isso de perseguição nem chamar a polícia se não quiser”

“Mas se quiser, beleza”

“Eu fico gato com roupa de presidiário”

“Eu sei que a gente não se conhece ainda”

“E prazer, meu nome é Rafael”

“Só que eu sei muito sobre você”

“Eu sei que você gosta de fazer bebês rirem”

“Sei que escreve nos livros pra se sentir parte de algo importante”

“E que você é a garota mais”

“linda”

“gentil”

“e besta”

“Que esse ônibus já teve a sorte de conhecer”

“Por mais que eu seja só um estranho”

“Mesmo a gente se vendo todos os dias”

“Eu sei que você me vê, sou gato demais pra não ser notado”

“Sorria e concorde, por favor, ou vai ficar meio chato”

“Eu gostaria que você acreditasse em mim”

“E nas minhas palavras:”

“Ninguém tem o direito de ferir nada tão bonito”

“Não acredite em palavras ruins”

“Ter um coração feio é o pior defeito”

“que o ser humano pode ter”

“Por fim, preciso dizer que”

“Você fica horrorosa quando chora”

“Terrível”

“Tive até pesadelos”

“Não posso te deixar fazer isso nunca mais”

Quando eu terminei, toda a costa do banco da frente estava cheia de notinhas azul-claro com garranchos medonhos da minha letra em piloto preto. Pensei, meio orgulhoso, que aquilo lembrava o oceano. Eu esperei, ansioso como criança, enquanto os olhos de Lílian iam de cima a baixo e ela soltava um sorriso que cobria com o casaco, ou apertava os olhos, ou enrubescia até a raiz dos cabelos. Ela ficou um tempo no seu silêncio, mesmo depois de ter terminado de ler. Minha impaciência crescia urgente, com cada batida do meu coração, mas consegui controle o suficiente para esperar. Então ela, ao invés de se virar para mim, abriu a mochila, tirou de dentro o seu caderno, um livro e um estojo, e despejou em cima de mim dezenas, quase milhares, de bilhetinhos amarelos amassados. Eu olhei, sem entender. Conseguia ler palavras perdidas em alguns deles, uma maioria enorme de “oi”s. Lílian pegou o seu bloquinho inteiro, rabiscou nele e colou a nota no banco em frente ao meu.

“São pra você”

Eu olhei para os papéis no meu colo, tantos que fugiam para o chão com o balançar do ônibus. Ela estava vermelha como sangue enquanto escrevia.

“Eu também te vejo faz um tempo”

Escreveu mais um e colou, meio torto, com pressa.

“Você demorou!”

Eu ri, ela também. Seus olhos de oceano estavam sobre mim, excitados, enquanto eu pegava o que restou do meu bloco azul para escrever.

“Por que nunca falou nada?”

Ela escreveu, rápida, e outra nota amarela apareceu na minha frente.

“Você faz muito barulho”

Tentei parecer ofendido e ela balançou a cabeça exageradamente, como um desses cachorrinhos de enfeite com cabeça mole. Nós dois não aguentamos e rimos. A risada dela, eu percebi, era o único som que ela fazia, e era realmente diferente, mais aguda que as normais. Não deixava de ser bonita. Lílian talvez não concordasse, porque parou logo e mordeu o lábio, meio ansiosa. Escreveu.

“Não se importa que eu não seja como as outras garotas?”

Lílian me olhava com um sorriso triste e ar modesto, como se me incentivasse a ser sincero, porque tudo bem, ela já tinha aguentado muito nessa vida mesmo. Fiz um gesto pra que ela me desse a caneta e escrevi na sua nota amarela. Não.

- Sempre gostei mais de ruivas, mesmo – disse para ela, quando terminei meu garrancho.

Lílian sorriu, um dos seus sorrisos de arco-íris puro, cheio de filhotes de cachorrinho e bebês gorduchos fazendo algazarra. Sorri junto, com menos graça e mais humilde, e lhe beijei a testa, grudando fios de cobre seus à minha boca.

Alí, no ônibus, em uma sexta-feira nublada, já muito longe do ponto da escola, eu podia dizer com certeza que era o idiota mais feliz do mundo.




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